Pergunte ao professor

Com a Covid-19, a rescisão contratual pode ser paga pelos governos locais?

Na prática, como se dá o chamado fato do príncipe, previsto no artigo 486 da CLT?

rescisão
Crédito Marcello Casal JrAgência Brasil

Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto “Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!” dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a Coordenação Acadêmica do Professor de Direito do Trabalho e Mestre nas Relações Trabalhistas e Sindicais, Dr. Ricardo Calcini.

O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas sempre às sextas-feiras. E a você leitor que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a  #pergunte ao professor.

Neste episódio de nº 33 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:

Pergunta ► Em tempos de Covid-19, é possível que parte da rescisão contratual seja paga pelos governos locais? Quais são as verbas rescisórias devidas ao ex-empregado? E, na prática, como se dá o chamado fato do príncipe?[1]

Resposta ► Com a palavra, o Professor Fabiano Coelho de Souza.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê no artigo 486 o instituto do fato príncipe. Trata-se de uma forma de responsabilização do poder público na hipótese da prática de algum ato da Administração que culmine por provocar a paralisação da atividade empresarial e, com isso, inviabilizar o empreendimento econômico.

O fato do príncipe constitui uma ressalva à assunção dos riscos da atividade econômica pelo empreendedor. Naturalmente, o empresário, ao buscar o lucro, assume os riscos inerentes ao empreendedorismo (princípio da alteridade – artigo 2º da CLT). Não será razoável, porém, impor ao mesmo o prejuízo provocado por uma ação discricionária do poder público. Deste modo, o caput do artigo 486 da CLT prevê que, “no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.”.

Entrementes, em tempos de crise econômica e sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, surge a dúvida se o fato do príncipe pode ser invocado pelo empresário que tiver que dispensar empregados neste momento. Aliás, a questão ficou mais evidenciada em dois momentos recentes: primeiro, uma declaração do presidente da República que comentou, de modo abstrato, que os governadores teriam que pagar as rescisões trabalhistas; o segundo, um caso concreto de uma grande rede de churrascarias que noticiou o fechamento de estabelecimentos, com a invocação do fato do príncipe, como justificativa para não pagar os acertos rescisórios.

É certo que o isolamento social inviabiliza alguns empreendimentos que acabam tendo uma perda definitiva de receita, como bares, restaurantes e pequenos comércios. Já em outros estabelecimentos, em especial do setor de saúde, a crise provoca uma escassez de demanda, a ser regularizada no futuro: pessoas adiam tratamentos e consultas que serão realizadas tão logo sejam suspensas as medidas restritivas ao seu funcionamento.

Mas, afinal, o fato do príncipe poderá ser invocado pelo empregador que despedir empregados neste momento?

Tenho a convicção de que a resposta é negativa!

Com e feito, o fato do príncipe parte da lógica de que o administrador público não pode, deliberadamente, prejudicar o particular. Assim, penso que só é possível invocar o instituto diante da prática de um ato discricionário pela Administração Pública. Imaginemos o exemplo clássico de que o poder público pretenda fazer uma estrada ou uma represa e, existindo opções que não causariam qualquer dano aos particulares, o gestor público faça a opção por fazer a obra num local que causa dano a diversos particulares. Assim, aqueles empresários atingidos poderão exigir que o ente público responsável pelo prejuízo arque com parte das rescisões contratuais, mas não todas.

Neste atual momento, é preciso lembrar que não há nenhum respaldo jurídico para a afirmação no sentido de que o poder público arcará com as indenizações rescisórias integralmente. Caso uma empresa adote este procedimento, dispensando os empregados com a informação de que o governo estadual ou municipal pagará o acerto rescisório, estaremos diante de uma conduta irresponsável e de absoluta má-fé patronal.

Caso prevaleça a tese pela ocorrência do fato do príncipe, é preciso identificar quais as verbas trabalhistas ficarão a cargo da Administração Pública. No caso, a obrigação do Poder Público abrange unicamente os valores diretamente resultantes da rescisão do contrato de trabalho, vale dizer, as indenizações previstas nos artigos 478, 479 ou 497 da CLT, quando aplicáveis; a indenização de 40% do FGTS; e, conforme parcela da jurisprudência, o aviso-prévio indenizado. As demais parcelas rescisórias são de responsabilidade do próprio empregador, porque relacionadas a fatos geradores anteriores à própria ruptura do vínculo. Com isso, a invocação de responsabilidade integral do poder público é desprovida de amparo legal.

Por outro lado, com base no § 1º do artigo 486 da CLT é importante explicarmos que, invocado o fato do príncipe pela defesa, o magistrado notificará a pessoa de direito público apontada para responder no prazo de 30 dias. Em seguida, na forma da legislação celetária (§ 3º do artigo 486 da CLT), a questão seria encaminhada para solução pelo juiz da Fazenda Pública, regra que compreendemos não ter sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Assim, a própria sentença trabalhista definirá se o ente público responde e qual seria o alcance de tal responsabilidade.

Retomando e concluindo, a aplicação do fato do príncipe exige que haja (i) a paralisação da atividade, e, sobretudo, que seja motivada por (ii) ato discricionário do poder público que concorre para a inviabilidade da atividade econômica.

No caso do novo coronavírus, em regra, é fato que os empresários não têm culpa do insucesso do empreendimento econômico no contexto atual. Por outro lado, a culpa não é do poder público, na medida em que os gestores estaduais ou municipais baixaram decretos de restrição à atividade econômica sem espaço de discricionariedade, buscando esvaziar os espaços públicos e privados como medida de contenção à propagação do vírus. Em arremate, as ações adotadas com o propósito inafastável de salvar vidas não enseja a responsabilidade do poder público.

 


[1] Para exame mais detalhado da matéria, sugere-se a leitura do livro DIREITO DO TRABALHO DE EMERGÊNCIA, de autoria de Antonio Umberto de Souza Júnior, Fabiano Coelho, Danilo Gaspar e Raphael Miziara.