Racismo

STJ absolve homem negro que foi condenado com base só em reconhecimento facial

Para a Corte, que determinou a imediata soltura de homem preso desde 2020, não há como ‘ignorar a existência de racismo’

Crédito: Luiz Silveira/Agência CNJ

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a soltura de um porteiro que estava preso preventivamente desde 2020 e o absolveu da acusação de roubo. O homem negro é investigado por roubo em 62 processos, nos quais ele é acusado com base somente em reconhecimento facial de fotos retiradas das suas redes sociais. Para o ministro Sebastião Reis Júnior, não há como ignorar a existência de racismo também nas investigações criminais, já que “o preto pobre é o principal alvo da atuação policial”.

O homem negro, que nunca havia sido preso anteriormente, passou a ser acusado de roubo depois que a Delegacia de Belford Roxo (RJ) incluiu fotos das redes sociais do porteiro em seu mural de suspeitos. Em todas as 62 ações, ele é acusado com base somente em reconhecimento facial.

Em uma das ações, ele foi condenado à prisão tanto em 1ª quanto em 2ª instâncias, inicialmente a uma pena de seis anos e oito meses, que foi, posteriormente, majorada para oito anos. Ao defender o porteiro, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ) sustentou que a identidade visual do acusado foi construída durante a investigação, já que sua imagem era apresentada às vítimas ao lado de fotos de pessoas com características físicas diferentes.

A ministra Laurita Vaz, relatora, observou que é incontroverso nos autos que a descrição inicialmente apresentada pela vítima sobre o suspeito do crime, “jovem, pardo, com cavanhaque e magro”, já seria genérica, incapaz de particularizar uma pessoa sem outros elementos físicos, como a cor dos olhos e a estatura. Segundo a ministra, a vítima só compareceu na delegacia para uma nova identificação duas semanas depois do roubo e mudou, no relato, a descrição do sujeito, incluindo e retirando características.

“Aliás, merece destaque o fato de que, em audiência, a vítima não afirmou que havia reconhecido o paciente, em sede policial, com absoluta certeza. Ao contrário, alegou que, naquela ocasião, após visualizar as fotos, apenas sinalizou que possivelmente o réu seria o autor do crime”, ressaltou Vaz.

Como o segundo reconhecimento facial foi feito algum tempo depois do crime, a ministra destacou que é preciso levar em consideração o processo natural de esquecimento e a possibilidade de falsas memórias da vítima. “Em tais casos, se não há outras fontes de provas autônomas e independentes, é necessário adotar a regra de julgamento que decorre da máxima in dubio pro reo, tendo em vista que o ônus de provar a imputação, de forma isenta de dúvida razoável, recai sobre a acusação”, explicou.

O ministro Sebastião Reis Júnior entendeu que o caso é um exemplo de “ilegalidadade gritante” e lembrou que a análise da conformidade do reconhecimento fotográfico tem sido rotineiramente negligenciada no processo criminal. Segundo Júnior, mesmo que a discriminação não seja explícita, não há como ignorar a existência de racismo também nas investigações criminais.

O ministro Rogerio Schietti Cruz, em seu voto, afirma que o processo revela “desprezo pelo ser humano” em uma ação conduzida a partir de reconhecimento fotográfico feito em total desacordo com as formalidades prevista na lei. “A mim, particularmente, me envergonha, por ser integrante desse sistema de Justiça – um sistema de moer gente. É uma roda viva de crueldades. Nenhum de nós pode avaliar o que representa três anos dentro de uma cela fétida, insalubre e apinhada de gente, como é a situação desse rapaz”, ressaltou.

Assim, a 3ª Seção determinou que em todos os 62 processos, estejam eles em tramitação ou em fase de execução condenatória, o juízo ou o tribunal avalie se a situação tratada nos autos é a mesma examinada pelo STJ no caso que levou à absolvição. O homem deve ser solto mesmo que exista condenação transitada em julgado.

O caso julgado tramita como HC 769.783.

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