Justiça

Uma comparação entre o sistema carcerário brasileiro e inglês

Pular para conteúdo
Whatsapp
comentários

Capítulo 1

Oxford

No mês de junho de 2003 participei de um evento internacional realizado na Universidade de Oxford, na Inglaterra, denominado “Promovendo os Direitos Humanos Através da Boa Governança no Brasil”, organizado pelo Conselho Britânico e pelo Centro de Estudos Brasileiros daquela universidade. Fui convidado oficialmente pelo Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido para proferir palestra cujo título era: “Reforma no Sistema Penal Brasileiro e Alternativas à Prisão”.

Nunca fui muito ligado em fazer viagens de trabalho para o exterior, porque os serviços na secretaria me impediam de sair (além da Inglaterra, estive uma vez nos EUA e outra na Costa Rica). Mesmo viagens para descanso foram muito poucas. Só consegui sair em licença por duas vezes em seis anos e meio. Na primeira, o governador me autorizou a faltar por cinco dias e fui com meu filho Hélio pescar no Amazonas.

Por uma dessas peças que o destino nos reserva, no segundo dia da viagem minha mãe faleceu. Só conseguiram nos localizar mais de 12 horas após o falecimento, em plena selva amazônica, num barco pesqueiro que havia parado no Rio Negro, onde não chegava sinal de telefone e mal se falava no rádio. Um mensageiro teve que subir o rio por mais de cinco horas com a triste notícia. Descemos o rio durante a madrugada fria, em um pequeno e inseguro barco até Barcelos, uma pequena cidade cujas ruas estavam totalmente desertas quando chegamos, por volta das 3 horas. Apesar do esforço do pessoal da minha assessoria e da ajuda do ministro da Justiça, [simple_tooltip content=’Ministro da Justiça de 2003 a 2007, durante o primeiro mandato do presidente Lula’]Márcio Thomaz Bastos[/simple_tooltip], não conseguimos chegar a tempo para o sepultamento. O ministro mandou um hidroavião da polícia federal nos apanhar em Barcelos. Por este gesto de solidariedade serei eternamente grato ao ministro. Foi um dos dias mais tristes da minha vida…

*     *     *     *

Pouca gente sabe, mas secretário de Estado em São Paulo não tem sequer direito a férias remuneradas. Se quiser sair por alguns dias para descansar, tem que fazê-lo mediante autorização do governador na forma de licença sem vencimentos. O povo imagina que alguns cargos públicos são rodeados de vantagens e altamente remunerados. Não são. Não há vantagem nenhuma, a não ser um veículo de representação que fica à disposição do secretário.

Nas secretarias da Segurança Pública e da Administração Penitenciária, além do veículo, existe a assessoria militar, que faz a segurança pessoal dos secretários. No meu caso eram dois policiais que me acompanhavam nos deslocamentos durante o serviço. Fora do trabalho nunca tive ninguém fazendo minha segurança e nem dos meus familiares.

O salário do secretário é outro problema: na minha opinião muito baixo levando-se em conta a responsabilidade das funções. Minha remuneração líquida mensal era de 4 mil e oitocentos reais para dirigir uma pasta com quase 30 mil funcionários em 144 unidades penais com mais de 125 mil presos. Os demais secretários têm a mesma remuneração. O da Fazenda, por exemplo, cuida de um orçamento anual de 80 bilhões de reais e ganha esse salário.

Agora, fora do governo, fico à vontade para dizer que um secretário de Estado deveria ser mais bem remunerado.

Sem essa remuneração mais compatível, especialmente os mais jovens que ainda têm filhos em idade escolar, ficam impossibilitados de dar sua contribuição para o serviço público. Deixo esta informação registrada apenas a título de esclarecimento, porque, no meu caso, sendo juiz aposentado, não tive problemas de natureza financeira e nem fui ser secretário para ganhar bem. Sei que o assunto é uma espécie de tabu, em que ninguém quer falar abertamente, por parecer mesquinharia ou busca de vantagens pessoais. No entanto, o assunto é sério, pois é muito difícil encontrar pessoas talentosas e eficientes com uma remuneração desse nível. O que acontece hoje é que muitos são independentes financeiramente. Os que não estão nessa situação vão para o sacrifício pessoal e familiar, em nome do idealismo. Não me parece que esta seja a melhor fórmula de se buscar excelência no serviço público.

*     *     *     *

Voltando ao convite, embora não seja fanático por viagens, fiquei muito honrado e até envaidecido em poder falar na famosa Universidade de Oxford. Teria, ainda, oportunidade de conhecer o sistema penitenciário inglês, o que tornava o convite irrecusável.

A viagem, além de muito agradável, foi bastante instrutiva.

Fui sozinho e preocupado porque não sei falar inglês. Porém, as autoridades britânicas são muito organizadas. Não tive dificuldade alguma. No Aeroporto de Londres, quando me preparava para descer, a comissária de bordo anunciou meu nome no microfone e eu, tentando saber o que ela dizia, fui descobrir que a intérprete já se encontrava na porta do avião. Nem precisei descer as escadas para encontrá-la:

— “Muito prazer. Sou Nadia Cerecuk, do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido, à sua disposição. Seja bem-vindo, em nome de Sua Majestade a Rainha da Inglaterra. Espero que tenha uma agradável estada entre nós”.

Era uma brasileira residente há muitos anos em Londres, nascida no Paraná. Uma senhora muito culta e distinta, estudiosa da história, com cerca de 50 anos de idade. Tinha os cabelos grisalhos que contrastavam com a pele morena, meio baixinha e gordinha, com fortes óculos de grau. Falava um português irrepreensível, inclusive com perfeito domínio dos termos técnicos. Não é fácil para quem não é da área dominar expressões como “inimputabilidade”, “responsabilidade penal”, “jurisprudência”, “carta precatória”, “audiência por vídeo conferência”, etc. E Nadia não escorregava em nada. Também, antes de mudar-se para a Inglaterra foi professora e é doutora em língua portuguesa.

Fiquei encantado não só pela recepção, como pela cultura da intérprete, que no caminho do aeroporto ao hotel foi dando os nomes de tudo o que víamos pelo caminho, contando resumidamente a história de cada um dos belíssimos castelos que avistávamos. Até o final da minha estadia no Reino Unido, de cinco dias, aprendi muita coisa que certamente jamais teria acesso se a viagem fosse de turismo.

*     *     *     *

Visitei e fiz contato com as principais autoridades penitenciárias de lá: Centro Internacional de Estudos de Prisões; Escritório Central do Serviço Penitenciário; Grupo de Administração Penitenciária; Unidade de Planejamento e Desenvolvimento de Penitenciárias; Penitenciária de Woodhill, na cidade de Milton Keynes; Faculdade de Serviços Penitenciários; Ouvidoria do Sistema Penitenciário; Inspetoria Geral das Penitenciárias; Comitê de Reforma Penitenciária; Penitenciária de Latchemere House e ainda com breve passagem pela Casa dos Lordes, no Parlamento Inglês.

Com base nos dados oficiais que me foram fornecidos pelas autoridades, todos devidamente documentados, registro alguns que certamente levarão os leitores a refletir:

1.- O sistema penal do Reino Unido (Inglaterra, Irlanda, Escócia e País de Gales, com cerca de 80 milhões de habitantes), tinha 73 mil presos. No Estado de São Paulo, com aproximadamente 40 milhões de habitantes, em maio de 2006, a população prisional era de 141 mil, sendo 125 mil na SAP. O aumento de presos na  [simple_tooltip content=’Secretaria de Administração Penitenciária’]SAP[/simple_tooltip], nos seis anos e meio da minha gestão foi de 72 mil presos (quase o número do Reino Unido inteiro);

2.- O aumento mensal médio nos últimos 12 anos (1991 a 2003) no Reino Unido foi de 231 presos. Em São Paulo, na SAP, de 923 (falo SAP porque não estou incluindo a [simple_tooltip content=’Secretaria de Segurança Pública’]SSP[/simple_tooltip]);

3.- Número de funcionários nas prisões públicas (lá existem 10 estabelecimentos privados): 45 mil para mais ou menos 66 mil presos. Em São Paulo, 30 mil funcionários para 125 mil detentos;

4.- O custo anual do preso: 25 mil libras, cerca de 123 mil reais, ao câmbio de 2003; mais ou menos 10 mil reais por mês. Em São Paulo, o custo médio mensal em 2005 foi de 700 reais;

5.- O custo médio de uma vaga nas penitenciárias do Reino Unido era de 100 mil libras, ou seja, 493 mil reais (achei que eles se enganaram no número de zeros e perguntei se não seria de 10 mil libras, mas não havia engano). As últimas penitenciárias que inaugurei em São Paulo tiveram o custo médio da vaga em torno de 14 mil reais. A penitenciária de segurança máxima de Presidente Bernardes, com 160 vagas, inaugurada em 2002, custou R$ 7.700.000,00 (sete milhões e setecentos mil reais): 48 mil reais a vaga;

6.- O número de suicídios no sistema inglês, com 73 mil presos, em 2002, foi de 90. Em São Paulo, em 2005, com 121 mil presos, suicidaram-se 14 presos. É isto mesmo, sem engano: no Reino Unido cometem suicídio 14 vezes mais do que em São Paulo. Não me forneceram os números dos homicídios e das mortes naturais;

7.- O número de fugas no regime fechado, em 2002, foi de 50 no Reino Unido. Em São Paulo, em 2005, de 138. Neste item os britânicos estão bem melhores do que nós. Em percentuais, seria o seguinte: 0,11% em São Paulo e 0,07% no Reino Unido;

8.- A reincidência lá era de 60% para os jovens e de 40% para os idosos. Aqui é de 58%, sem separação entre jovens e idosos;

9.- O salário médio mensal de um agente penitenciário no Reino Unido: 1.300 libras, ou R$ 6.409,00. Em São Paulo um agente recebe R$ 1.200,00 por mês.

Estes são os dados mais relevantes e que mais chamam a atenção. Existem outras peculiaridades no sistema inglês que ainda vou relatar mais adiante.

*     *     *     *

Na tarde do dia anterior ao seminário Nadia e eu fomos de trem para Oxford. Foram cerca de 30 minutos de viagem. Belíssimas paisagens, mais e mais explicações da intérprete sobre fatos históricos, monumentos, castelos. Gostaria de ter guardado tudo o que vi e ouvi, mas não foi possível, tal o volume das informações que ela despejava nos meus ouvidos.

Fiquei em um hotel pequeno perto da universidade, instalado em um casarão medieval. Era uma casa de cor amarela, com várias árvores ao redor. Depois da grande sala na parte inferior, havia uma bela escada de madeira que levava aos quartos. Uma leve brisa fria dava um toque especial ao cenário. No hotel se encontrava Andy Barclay, um estudioso inglês do sistema penitenciário que eu já conhecia. Ele vem promovendo em São Paulo, há mais ou menos 3 anos, um curso de melhoria na gestão de penitenciárias, com as despesas totalmente custeadas pelo governo inglês. Embora Andy venha regularmente ao Brasil há vários anos, não consegue falar uma palavra em português. A intérprete me deixara no hotel e nosso reencontro se daria depois do encerramento das conferências. Meu entendimento com Andy foi muito complicado.

Fomos juntos encontrar um grupo de brasileiros num restaurante à beira de um rio. Lá estava Fiona Macaulay, pesquisadora de Oxford para assuntos brasileiros, pessoa que me indicou para fazer a palestra, minha conhecida há alguns anos. Ela fala muito bem português e foi minha salvação. Marcos Rolim ex-deputado petista do Rio Grande do Sul, também participou do jantar. Ele estava fazendo um curso de especialização em Oxford. Sua única reclamação era o alto custo de vida na Inglaterra. A bolsa que recebia mal dava para as despesas domésticas, foi o que me contou. Realmente as coisas são caras por lá. A diária do hotel era de 150 libras, cerca de 750 reais. O jantar foi agradabilíssimo, com um delicioso peixe na brasa, e, é lógico, cerveja quente inglesa.

*     *     *     *

No dia seguinte pela manhã fui à famosa Universidade de Oxford para a palestra. Mais um brasileiro estava inscrito e falou antes de mim: o sociólogo e pesquisador Túlio Kahn, que dirige hoje o Centro de Planejamento e Análises da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. Ele fez uma ótima apresentação, recheada de dados estatísticos sobre o Brasil e sobre a questão dos direitos humanos em nosso País.

Quando chegou minha vez de falar, a fita de vídeo que havia levado com imagens da implosão da Casa de detenção de São Paulo não pode ser exibida. Houve um problema com o aparelho. Falei cerca de 40 minutos, expondo minuciosamente as dificuldades em administrar um sistema penal que cresce tanto como em São Paulo. Descrevi as ações do governo paulista nesta área, as dificuldades orçamentárias de um País com tantas outras prioridades e encerrei contando a experiência dos Centros de Ressocialização que são administrados com participação das ONGs. Os participantes estavam impressionados com a grandeza dos números. Não conseguiam entender como era possível administrar um sistema que recebe mais de 900 presos todos os meses.

Falei das penas alternativas, que seriam um caminho natural para diminuição da população prisional. Todavia, expliquei que esse caminho, ao contrário do que muitos pensam, não é solução para todos os problemas. Na verdade, os criminosos que recebem esse tipo de punição não são os que ocupam vagas no sistema penitenciário. No Reino Unido também é assim: só recebem penas alternativas os que cometem delitos insignificantes, punidos com até seis meses de detenção, como dirigir sem habilitação ou embriagados; que se envolvem em pequenas brigas sem maiores conseqüências ou em pequenos furtos. Os autores de crimes graves também lá são punidos com privação da liberdade.

Outros palestrantes de outros países descreveram suas realidades. Não vi quase nada de novo.

Em todos os lugares do mundo o sistema penitenciário é mais ou menos igual: um pouco mais eficientes em alguns e menos em outros. As taxas de reincidência são altíssimas: quase sempre em torno de 60% a 80%.

Encerrado o seminário, passei os demais dias conhecendo o sistema penal da Inglaterra. A primeira visita foi a uma penitenciária de segurança máxima na cidade de Milton Keynes, denominada “Woodhill”. Houve breve revista na entrada, com aparelhos detectores de metal, nada muito rigoroso. Percorremos as dependências da penitenciária e vi poucos presos fora das celas. Perguntei se não existiam oficinas de trabalho e me responderam que naquele dia, por haver uma atividade especial, que não explicaram o que era, as oficinas estavam fechadas. Eram 750 detentos, provisórios e condenados, com um setor especial para 16 presos, uma espécie de RDD inglês. As celas dos presos são para 3 ou 4 pessoas. Nenhuma delas, mesmo as individuais de segurança máxima, tem chuveiro na parte interna. Há um banheiro de uso comum.

Informaram que 750 funcionários trabalhavam na penitenciária e que o custo anual do detento é de 29 mil libras, ou seja, 142 mil reais, mais ou menos 12 mil reais por mês. Os agentes penitenciários estavam todos rigorosamente uniformizados, com uma farda de cor azul, muito elegante. Achei curiosa a forma como servem as refeições: ao invés de passar o “marmitex” pela portinhola que existe nas nossas prisões, cerca de 4 agentes vão levando as refeições em um carrinho, postam-se a certa distância da porta da cela e os presos, um a um, vão saindo para apanhar suas “quentinhas”. É uma forma muito mais trabalhosa e sem utilidade prática. Melhor é o nosso jeito, que usa menos funcionários, oferece mais segurança e rapidez.

Confesso que fiquei um pouco decepcionado. Não vi absolutamente nada de excepcional. A grande preocupação é com a segurança e quase nada existe com relação à reabilitação (pelo menos não me foi mostrado). Há câmeras para todos os lados e em uma sala grande vários funcionários ficam monitorando as imagens. Desse jeito, também no Brasil, com tantos funcionários e tantos equipamentos, certamente não teríamos boa parte das dificuldades que enfrentamos. Aqui, por força de Lei, são obrigatórias as oficinas de trabalho, as salas de aula, os momentos de recreação; o direito ao exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas. A visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos, inclusive a chamada “visita íntima” é assegurada legalmente (art. 41 da LEP).

Creio que a nossa legislação está correta. Temos que ter, porém, consciência das dificuldades que decorrem da tentativa de implantar todos os direitos dos presos visando sua reabilitação, sem as condições materiais e humanas adequadas. Se no Reino Unido, que prioriza a segurança e a disciplina, há necessidade de um funcionário para cada preso, imaginem quantos seriam necessários aqui, onde, além da segurança e da disciplina, a prioridade é para as atividades de reabilitação.

Outra penitenciária que visitei foi a “Latchmere House” em Londres e se destinava aos presos do regime semi-aberto, com 196 vagas e 196 presos. Disseram que procuram evitar, a todo custo, a superlotação. No Reino Unido os presos são classificados em quatro níveis, por periculosidade: “A”, “B”, “C” e “D”. No primeiro estão os mais perigosos e no último os do regime semi-aberto. Informaram que só havia mais uma unidade para o regime semi-aberto, também com cerca de 200 vagas.

Embora com máquinas industriais mais sofisticadas que as nossas, também não vi nada de excepcional em suas oficinas de trabalho. Os presos ficam recolhidos em alojamentos muito semelhantes aos nossos e trabalham nessas oficinas.

Perguntei qual era o critério para cumprimento de pena naqueles estabelecimentos, já que eram pouquíssimas vagas (cerca de 400) em um universo prisional de 73 mil presos (em São Paulo temos 12 mil presos em regime semi-aberto). Explicaram que somente os que moram nas proximidades da penitenciária, em fase final de cumprimento da pena e que cometeram delitos de menor gravidade são autorizados a ficar naquele regime. E os demais, que moram longe, também cometeram delitos de menor gravidade e também estão no final da pena? Não há o que fazer, estes cumprem pena no regime fechado, foi o que me responderam.

Afinal, o sistema não é tão justo e nem tão perfeito como imaginamos.

Algumas práticas inglesas, porém, são muito avançadas em relação ao que ocorre no Brasil. Existe uma modalidade de prisão domiciliar, destinada aos que estão em fase final de cumprimento da pena e quando não representam perigo para a sociedade. O monitoramento é feito com uso de pulseiras eletrônicas. Esta teria sido uma das fórmulas para enfrentar o problema da superlotação.

Outra coisa muito interessante diz respeito à atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público nas prisões. Esses dois órgãos não exercem nenhuma atividade na execução da pena, porque todas as decisões são administrativas, inclusive as progressões de regime e as autorizações para cumprimento em regime domiciliar. A Ouvidoria do Sistema Penal, órgão do poder executivo, é que tem a incumbência de acolher e apurar as reclamações individuais dos presos e de recomendar providências às autoridades competentes. Somente quando o preso não se conforma com as medidas tomadas, recorre ao Poder Judiciário.

Esta forma de administração possibilita muito mais eficiência do que o sistema jurisdicionalizado, como o nosso. Em outro capítulo estarei falando sobre a “administracionalização da execução penal”, onde coloco as razões pelas quais entendo que o sistema inglês é melhor que o nosso.

Fiquei bastante chocado com a informação de que a responsabilidade penal no Reino Unido inicia aos 10 anos de idade. As prisões que acolhem crianças e adolescentes são separadas dos adultos, mas estão sob a responsabilidade da mesma autoridade, que é o Ministro do Interior. Não há, como aqui, secretaria da Justiça cuidando dos adolescentes e a da Administração Penitenciária, dos maiores de idade. Pelas informações que me deram não são poucas as crianças com 10 ou 12 anos cumprindo pena. Não consegui obter o número, nem mesmo aproximado.

*     *     *     *

–        Recentemente, a “Folha Online” de 03 de abril de 2006 publicou interessante matéria com o título “ONG britânica denuncia superlotação nos presídios da Inglaterra”. Consta que a organização não-governamental “Prison Reform Trust” divulgou um relatório denunciando uma iminente crise no sistema penitenciário britânico em razão da superlotação.

“O informe – prossegue a notícia – traça um quadro formado por sentenças irregularmente prolongadas, detenção de jovens e infratores de baixa periculosidade, utilização excessiva da prisão preventiva, além da alta incidência de dependência de álcool e de doenças mentais entre os detentos. O número de prisioneiros da Inglaterra subiu significativamente desde a queda comum registrada na época do Natal. O sistema prisional inglês ultrapassou novamente a marca dos 77 mil detentos, se aproximando de uma cifra recorde. O Ministério do Interior do Reino Unido enfatizou, no ano passado, a necessidade de reduzir a reincidência dos prisioneiros por meio da criação de empregos, do tratamento dos dependentes químicos e da manutenção de ligações dos detentos com suas famílias. Em março de 2006, a população prisional da Inglaterra e do País de Gales era de 77.004 pessoas, uma alta de 2.603 em relação ao ano anterior. Nos últimos dez anos, o número de prisioneiros nestes locais sofreu uma elevação de mais de 25 mil pessoas”.

“Estes fatos e números sobre o estado de nossas prisões deve ter a função de chamar a atenção do governo, preocupado com outras coisas. As prisões devem ser lugares para se manter com segurança e para se promover todos os esforços a fim de reabilitar os criminosos mais perigosos e violentos. A rápida alta destes números reduziu muitas prisões a depósitos trancafiados, em que as autoridades penitenciárias acabam atuando como simples carcereiros, transferindo pessoas de prisões superlotadas para prisões superlotadas. Ninguém pode ficar satisfeito com um sistema prisional que leva pessoas a cometer cada vez mais, e não menos, crimes. As prisões superlotadas estão transformando pequenos infratores nos velhos presidiários do futuro”, afirmou Juliet Lyon, diretora da “Prison Reform Trust”.

*     *     *     *

O aumento médio de 200 presos por mês nos últimos 10 anos fez acender as luzes de alerta dessa entidade inglesa, que adverte as autoridades sobre a “iminência de uma crise no sistema penitenciário britânico”. Aqui entre nós, suportando um aumento mensal de mais de 900 presos nos últimos seis anos, com todas as dificuldades financeiras e orçamentárias, quando ocorreu a grande crise de maio/2006, quase toda a sociedade paulista e brasileira se espantou. Vejo agora, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, a demagogia barata que se faz em torno de um assunto tão sério como esse, somente para obter alguma vantagem eleitoral. Sério e difícil, não só no Brasil, mas no mundo inteiro.

Espantado fico eu com a irresponsabilidade e o descaso com que o assunto é tratado.

A notícia da Folha Online, do início deste ano, só me fez reforçar a impressão que trouxe da Inglaterra na visita de 2003: embora com gastos inimagináveis para nossos padrões, os ingleses também não conseguem obter grandes resultados com as suas prisões. Afinal, a reincidência para os jovens gira em torno de 60% e para os mais idosos, em 40%. Esses números são muito parecidos com os nossos e não devem ser muito diferentes do que ocorre na África ou na Ásia. O percentual de fugas na Inglaterra é um pouco menor que o nosso, mas os suicídios atingem 14 vezes mais.

A razão é elementar: privar o ser humano do mais precioso valor, só abaixo da vida, atenta contra seus instintos naturais e só pode torná-los piores. Há evidente contradição entre o objetivo de reabilitar para a vida social e a privação do convívio social. Não se consegue ensinar alguém a nadar a não ser dentro da água. Não se consegue ensinar alguém a obedecer as regras sociais retirando-o da vida em sociedade.

Já que não se inventou ainda uma maneira de preservar a segurança da sociedade e de punir os que violam as regras dessa convivência pacífica, a única maneira de tornar, ou tentar tornar a vida carcerária menos inútil e menos nociva, é levando a sociedade para dentro das prisões, como se vem tentando com algum êxito em São Paulo, nos Centros de Ressocialização (contada em outro capítulo).

*     *     *     *

No dia da minha volta Nadia fez a gentileza de me comprar um singelo presente. Em retribuição, deixei com ela a fita com as imagens da implosão da Casa de Detenção de São Paulo e, dentro do envelope, coloquei uma cédula de 20 libras. Escrevi um bilhete dizendo mais ou menos o seguinte:

“Agradeço, sensibilizado, a atenção que me dispensou nestes últimos dias. Jamais esquecerei desta viagem e das coisas que você me ajudou a conhecer. A cédula que acompanha representa um velho costume japonês: é o sinal de que, um dia, voltaremos a nos encontrar. Muito obrigado”.

*     *     *     *

(24.10.06)


* O autor esclarece, ante a dúvida de muitos leitores, que os textos que estão sendo publicados foram escritos no segundo semestre de 2006 e que não foram atualizados.