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Capítulo 1

Introdução

O Brasil é um país adorável. Faz sol na maior parte do ano, a trilha musical é ótima e as pessoas, no geral, são amistosas e têm alegria de viver. Muitos dizem que a vida aqui é uma festa. E de fato ela pode ser. O problema é que se você for pobre, mulher, negro ou gay, é muito provável que não tenha sido convidado. Por trás do mito do “brasileiro cordial” e da democracia racial, esconde-se uma história de injustiça e discriminação. A desigualdade extrema é marca profunda da formação social do Brasil. Somos herdeiros de uma sociedade escravocrata – fomos o último país do continente americano a abolir a escravidão –, acostumada a distinguir entre senhores e servos, brancos e negros, ricos e pobres. Fomos criados em uma cultura em que a origem social está acima do mérito e da virtude, e na qual, na percepção dos cidadãos e dos agentes estatais, parece existir superiores e inferiores.

A despeito desse cenário desolador, temos feito extraordinário progresso nas últimas décadas. A mudança mais revolucionária e que merece maior destaque foi o surgimento de uma consciência social. Quando o primeiro coautor deste trabalho era jovem – em outra vida, portanto –, a elite brasileira, tal como a classe dominante latino-americana em geral, tinha planos de fazer um país só para si e para os seus. Organizava uma festa opulenta, mas bem pequena. Pequena em todos os sentidos. A exclusão social era uma ideologia professada ora abertamente, ora de modo subreptício. E mesmo quando não se manifestasse em declarações expressas, poderia ser detectada nas políticas públicas que invariavelmente beneficiavam os que se encontravam no topo da pirâmide.

Felizmente, esse tempo já se foi. Nossa geração foi contemporânea de uma mudança profunda de consciência e percepção. No Brasil de hoje, é possível identificar projetos progressistas, liberais ou conservadores de inclusão social. Mas nenhum grupo politicamente relevante cometeria a ousadia de não ter um. Esse é um avanço notável. É verdade que ele veio mais por medo do que por generosidade, na medida em que os índices de violência e criminalidade dispararam. Mas o fato incontestável é que descobrimos que não é possível fazer um país, digno desse nome, somente para alguns. Ou a festa é para todos, ou não haverá festa. Como intuitivo, o despertar de uma nova consciência não muda a realidade no curto prazo, nem conquista todos os corações e mentes de uma vez. Trata-se de um processo que precisa de valores, persistência e paciência. E de gente disposta a empurrar a história.

As anotações que se seguem procuram trazer uma reflexão sobre os desafios da igualdade na realidade brasileira. Nos tópicos iniciais, faz-se uma breve digressão teórica acerca das dimensões da igualdade – formal, material e como reconhecimento –, com comentários sucintos sobre as duas primeiras. O foco principal do texto, porém, recai sobre a igualdade como reconhecimento, explorando três de suas vertentes: (i) a discriminação racial; (ii) a discriminação contra as mulheres; e (iii) a discriminação em relação à orientação sexual e à identidade de gênero. A conclusão a que se chega é a de que percorrermos, com sucesso, um longo caminho. Mas ainda estamos atrasados e com pressa.

Capítulo 2

Uma nota teórica: três dimensões da igualdade

A igualdade constitui um direito fundamental e integra o conteúdo essencial da ideia de democracia. Da dignidade humana resulta que todas [simple_tooltip content=’Uma das formulações do imperativo categórico kantiano tem a seguinte dicção: toda pessoa, todo ser racional existe como um fim em si mesmo, e não como meio para o uso arbitrário pela vontade alheia V. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 71 e 68′]as pessoas são fins em si mesmas[/simple_tooltip], possuem o mesmo valor e merecem, por essa razão, [simple_tooltip content=’Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997, p. 181. A primeira edição é de 1977′]igual respeito e consideração[/simple_tooltip]. A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as desequiparações infundadas, mas impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais, bem como o respeito à diferença. Em torno de sua maior ou menor centralidade nos arranjos institucionais, bem como no papel do Estado na sua promoção, dividiram-se as principais ideologias e correntes políticas dos últimos séculos. No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que funciona como proteção contra a existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem estar social; e a igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e sua diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras.

A Constituição brasileira de 1988 contempla essas três dimensões da igualdade. A igualdade formal vem prevista no art. 5º, caput: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Já a igualdade como redistribuição decorre de objetivos da República, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3o, I) e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3o, III). Por fim, a igualdade como reconhecimento tem seu lastro em outros dos objetivos fundamentais do país: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3o, IV).

Não será o caso aqui de se aprofundar a análise teórica dessas três dimensões. O objetivo dessa apresentação é destacar a evolução da matéria na experiência brasileira recente. Todavia, é pertinente enfatizar, antes de prosseguir, que esses três planos não são independentes um do outro. A igualdade efetiva requer igualdade perante a lei, redistribuição e reconhecimento.

Capítulo 3

Igualdade formal: ainda não chegamos lá

Igualdade formal

A igualdade formal é a do Estado liberal, cuja origem foi a reação aos privilégios da nobreza e do clero. Na sua formulação contemporânea, ela se projeta em dois âmbitos diversos. Em primeiro lugar, na proposição tradicional da igualdade perante a lei, comando dirigido ao aplicador da lei – judicial e administrativo –, que deverá aplicar as normas em vigor de maneira impessoal e uniforme a todos aqueles que se encontrem sob sua incidência. Em segundo lugar, no domínio da igualdade na lei, comando dirigido ao legislador, que não deve instituir discriminações ou tratamentos diferenciados baseados em fundamento que não seja razoável ou que não vise a um fim legítimo. Esta é uma página virada na maior parte dos países desenvolvidos, mas ainda existem problemas não resolvidos entre nós. É certo que a maior parte das dificuldades nessa área têm mais a ver com comportamentos sociais do que com prescrições normativas. O Brasil é um país no qual relações pessoais, conexões políticas ou hierarquizações informais ainda permitem, aqui e ali, contornar a lei, pela [simple_tooltip content=’Roberto DaMatta. O que faz o brasil, Brasil. Rocco: Rio de Janeiro, 1986. p. 12 e 63′]“pessoalização”, pelo “jeitinho” ou pelo “sabe com quem está falando”[/simple_tooltip]. Paralelamente a isso, as estatísticas registram que os casos de violência policial injustificada têm nos mais pobres a clientela natural. Sem mencionar que certos direitos que prevalecem no “asfalto” nem sempre valem no “morro”, como a inviolabilidade do domicílio e a presunção de inocência.

É inegável, todavia, que no plano normativo também subsistem resquícios aristocráticos e pouco republicanos. Cabe lembrar que até a Constituição de 1988, juízes e militares eram [simple_tooltip content=’Sobre o tema, v. Ricardo Lobo Torres, Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia, 1999. p. 376-380′]imunes ao pagamento de imposto de renda[/simple_tooltip]. Já sob a vigência da nova Constituição, e até a aprovação da Emenda Constitucional nº 35/2001, não era possível instaurar ação penal contra parlamentares, independentemente de qual fosse o crime, sem prévia licença da casa legislativa a que pertencesse. Atualmente, não é possível a decretação de prisão, salvo em caso de flagrante delito, mesmo quando presentes os requisitos da prisão preventiva. Por fim, com intensa gravidade, subsiste o foro privilegiado para diversas autoridades e para parlamentares, que respondem a ações penais perante o Supremo Tribunal Federal. Nesse particular, uma jurisprudência leniente do STF tem permitido a manipulação corriqueira da jurisdição, com renúncias e eleições para cargos diversos, fazendo com que processos subam e desçam, gerando prescrição e impunidade.

A igualdade formal é um ponto obrigatório de passagem na construção de uma sociedade democrática e justa. Porém, notadamente em países com níveis importantes de desigualdade socioeconômica e exclusão social, como é o caso do Brasil, ela é necessária, mas insuficiente. A linguagem universal da lei formal nem sempre é sensível aos desequilíbrios verificáveis na realidade material. Tomem-se dois exemplos históricos. O princípio da igualdade está presente nas constituições brasileiras desde a Constituição Imperial de 1824. Sob sua vigência, porém, o país conviveu, sem que se assinalassem perplexidade ou constrangimento, com o voto censitário, os privilégios aristocráticos e o regime escravocrata. Já a Constituição de 1891, a segunda constituição do país, editada após a proclamação da república, aboliu a necessidade de comprovação de renda para votar. No entanto, como o sufrágio não era estendido aos analfabetos, que correspondiam à esmagadora maioria da população, na prática, o voto permanecia censitário. A igualdade de todos perante a lei convivia perfeitamente com a exclusão dos pobres, dos negros e das mulheres da vida social. A miopia da igualdade formal é perfeitamente captada pela irônica observação do escritor francês Anatole France, em passagem frequentemente lembrada: [simple_tooltip content=’Anatole France. Le Lys Rouge, 1894. p. 81. No original: “la majestueuse égalité des lois, qui interdit au riche comme au pauvre de coucher sous les ponts, de mendier dans les rues et de voler du pain”’]“A majestosa igualdade da lei, que proíbe ricos e pobres de dormirem sob pontes, de mendigarem pelas ruas e de furtarem pão”[/simple_tooltip].

Capítulo 4

Igualdade e redistribuição: a luta contra a pobreza

Igualdade e redistribuição

Foi precisamente esse contraste entre pobres e ricos que conduziu, ao longo do século XX, a uma percepção crítica da dimensão puramente formal da igualdade. Surge, assim, historicamente, o conceito de igualdade material, ligado a demandas por redistribuição de riqueza e poder e, em última análise, por justiça social. Nesse novo ambiente, o Estado liberal incorpora um amplo sentido social: não basta proscrever os privilégios, é preciso atuar ativamente contra a desigualdade econômica e pela superação da miséria. Mais do que a igualdade perante a lei, procura-se assegurar algum grau de igualdade perante a vida. Antídotos contra as situações de desequilíbrio e de exploração incluem a proteção jurídica do polo mais fraco de certas relações econômicas, a criação de redes de proteção social e mecanismos de redistribuição de riquezas. Um dos cursos de ação necessários à promoção de justiça material é a satisfação de direitos sociais fundamentais, mediante a entrega de prestações positivas adequadas, em matérias como educação, saúde, saneamento, trabalho, moradia, assistência social. Também desempenham função relevante os programas de transferência de renda e criação de empregos.

Como já mencionado ao início, a pobreza e a desigualdade extrema são traços indeléveis da formação social brasileira. O coeficiente GINI, um índice que mede a distribuição de renda nos países, dá ao Brasil um desconfortável 79º lugar em distribuição justa de riqueza. Passando do mundo das estatísticas para o mundo real, não é difícil identificar, em múltiplas situações, algumas consequências dramáticas dessa desigualdade. Um exemplo emblemático é o do sistema de justiça criminal, que é manso com os ricos e duro com os pobres. Entre nós, é muito mais fácil enviar para a prisão um jovem de 18 anos portando 100 gramas de maconha do que um empresário ou político que tenha cometido uma fraude milionária. O sistema é perversamente “de classe”, concebido contra os pobres e para a proteção dos ricos. O problema não está apenas no ordenamento jurídico, mas também em uma atitude cultural da sociedade e dos tribunais. [simple_tooltip content=’Na pertinente análise de Oscar Vilhena Vieira: “(A) exclusão social e econômica, decorrente de níveis extremos e duradouros de desigualdade, destrói a imparcialidade da lei, causando a invisibilidade dos extremamente pobres, a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade dos privilegiados, aos olhos dos indivíduos e das instituições” (A desigualdade e a subversão do Estado de Direito. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos (Impresso), v. 6, p. 29-52, 2007)’]A desigualdade extrema torna invisíveis os muito pobres e dá imunidade aos privilegiados[/simple_tooltip].

É preciso reconhecer que tem havido progressos nessa área, mas a velha ordem conta com defensores poderosos. A despeito das críticas pertinentes veiculadas acima, o fato é que entre 1985 e 2012 – isto é, desde o retorno à democracia –, aproximadamente 30 milhões de pessoas ultrapassaram a linha de pobreza. Nas últimas três décadas, o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH do Brasil, medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi o que mais cresceu entre os países da América Latina e do Caribe. Segundo o IPEA, os brasileiros ganharam 11,2 anos de expectativa de vida e viram a renda aumentar em 55,9%. Na educação, 98,4% das crianças em idade compatível como o ensino fundamental (6 a 14 anos) estão na escola. Além do crescimento econômico do país, merece registro o Programa Bolsa Família, que unificou e ampliou diversos programas sociais existentes, sendo um programa de transferência condicionada de renda mundialmente aclamado. Conforme dados de 2014, ele atende cerca de 13,8 milhões de famílias, o equivalente a 50 milhões de pessoas, quase um quarto da população brasileira. Os avanços são notáveis. Porém, alguns indicadores ainda são muito ruins: o analfabetismo atinge 13 milhões de pessoas a partir de 15 anos (8,5% da população) e existiam, em dados de 2012, aproximadamente 10 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza.

Antes de encerrar este tópico, merece registro a vertiginosa ascensão social e institucional do Poder Judiciário e, particularmente, do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos. Neste cenário, têm sido ajuizadas no país um conjunto amplo de demandas relativas à concretização dos direitos sociais. Em matéria de educação fundamental, por exemplo, existem decisões determinando (i) a efetiva realização do investimento mínimo em educação exigido pela Constituição (que é de 25% da receita de impostos, no caso dos Municípios), (ii) a obrigatoriedade da matrícula de crianças em creches e em pré-escolas próximas da residência ou do trabalho dos pais ou responsáveis, (iii) o oferecimento de transporte da residência até a escola, (iv) a contratação de professores e (v) a realização de obras de recuperação de prédios de escolas. A Constituição prevê a educação fundamental como um direito constitucional e juízes e tribunais, em diversos casos, têm entendido ser seu papel dar concretude a esse direito.

Em questões envolvendo o direito à saúde, as decisões judiciais são mais numerosas ainda. Há julgados determinando (i) o fornecimento de medicamentos para portadores de AIDS/HIV, (ii) o fornecimento de medicamentos de alto custo a pessoas que demonstrem sua necessidade e a impossibilidade de adquiri-los com recursos próprios, (iii) a realização de tratamentos médicos complexos, mesmo quando não oferecidos na rede de hospitais públicos, (iv) a contratação de médicos e técnicos para hospitais públicos e (v) o aumento da oferta de vagas e UTI em hospitais públicos. A judicialização da saúde e seus limites tornou-se um importante debate público no Brasil. Este fenômeno da judicialização da tutela dos direitos sociais tem complexidades e ambiguidades, sofrendo a crítica de que nem sempre os atendidos são os que estão na [simple_tooltip content=’Sobre o ponto, v. Ana Paula de Barcellos, Sanitation rights, public law litigation, and inequality: a case study from Brazil, Health and Human Rights Journal 16:35, 2014, p. 42′]parte mais pobre da pirâmide social brasileira[/simple_tooltip]. Seja como for, a persistência do abismo social e da enorme concentração de renda [simple_tooltip content=’Cf. IBGE, Censo 2010′](os 5% mais ricos respondem por cerca de 40% da renda total)[/simple_tooltip] faz com que o tema da igualdade material e da redistribuição de riquezas ocupe lugar relevantíssimo na agenda política do país.

Capítulo 5

Igualdade e reconhecimento: diferentes, mas iguais

Igualdade e reconhecimento

O discurso da igualdade material, historicamente centrado na questão da redistribuição de riquezas e de poder na sociedade, recentemente passou a ser acompanhado por uma nova concepção, relacionada à ideia de igualdade como reconhecimento. [simple_tooltip content=’Na observação de Daniel Sarmento, A igualdade étnico-racial no direito constitucional brasileiro: discriminação “de facto”, teoria do impacto desproporcional e ação afirmativa. In: Marcelo Novelino (org.), Leituras complementares de direito constitucional: direitos humanos e direitos fundamentais, 2007, p. 194: “A ênfase predominante na dimensão econômica da igualdade, tributária do pensamento marxista, acabava relegando a um plano secundário as demandas por reconhecimento de certos grupos portadores de uma identidade própria”’]O discurso de base marxista acerca da igualdade se demonstrou insensível às minorias[/simple_tooltip]. A busca pela homogeneidade não era capaz de perceber o reconhecimento das diferenças étnicas ou culturais de diversos grupos e a necessidade de afirmação da sua identidade. A injustiça a ser combatida nesse caso tem natureza [simple_tooltip content=’Nancy Fraser. Redistribution, Recognition and Participation: Toward an Integrated Conception of Justice. World Culture Report 2000, Cultural Diversity, Conflict and Pluralism. UNESCO Publishing, 2000. pp. 48-57′]cultural ou simbólica[/simple_tooltip]. Ela decorre de modelos sociais de representação que, ao imporem determinados códigos de interpretação, recusariam os “outros” e produziriam a dominação cultural, o não reconhecimento ou mesmo o desprezo. Determinados grupos são marginalizados em razão da sua identidade, suas origens, religião, aparência física ou opção sexual, como os negros, judeus, povos indígenas, ciganos, deficientes, mulheres, homossexuais e transgêneros.

A questão, portanto, não é propriamente econômica – embora possa ter implicações dessa natureza. Seu remédio seria a transformação cultural ou simbólica. Nas palavras de Nancy Fraser, uma das principais teóricas da perspectiva do reconhecimento, o objetivo é constituir um mundo aberto à diferença (“a difference-friendly world”), onde a assimilação aos padrões culturais dominantes ou majoritários não seja o preço a ser pago pelo [simple_tooltip content=’Nancy Fraser. Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and Participation. The Tanner Lectures on Human Values, 1996, p. 3. No original: “Here the goal, in its most plausible form, is a difference-friendly world, where assimilation to majority or dominant cultural norms is no longer the price of equal respect”’]mútuo respeito[/simple_tooltip]. Portanto, diversamente do que se passa em relação às demandas por redistribuição, a luta pelo reconhecimento não pretende dar a todos o mesmo status por meio da eliminação dos fatores de distinção, mas pela superação dos estereótipos e pela valorização da diferença. Nas palavras felizes de Boaventura Souza Santos: [simple_tooltip content=’Boaventura de Souza Santos. As tensões da modernidade. Texto apresentado no Fórum Social Mundial, Porto Alegre, 2001′]“As pessoas têm o direito de ser iguais quando a diferença as inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade as descaracteriza”[/simple_tooltip].

A igualdade material requer, assim, tanto redistribuição, quanto reconhecimento. Nenhum desses eixos isoladamente é suficiente. A adoção de uma concepção bidimensional de justiça que acomode ambas as demandas é mais eficaz porque [simple_tooltip content=’Nancy Fraser. Redistribution, Recognition and Participation: Toward an Integrated Conception of Justice. Op. cit’]tais eixo de injustiça se interpenetram[/simple_tooltip]. As mulheres e os negros, por exemplo, sofrem injustiças cujas raízes se encontram tanto na estrutura econômica, quanto na estrutura cultural-valorativa, exigindo ambos os tipos de remédio. Mesmo no caso dos homossexuais e transgêneros, cuja discriminação tem origem cultural ou simbólica, também é necessário remediar as injustiças econômicas sofridas por tais coletividades, que decorrem diretamente do não reconhecimento. Ademais, tais eixos de injustiça que decorrem do gênero, classe, raça e sexualidade sofrem interseções no próprio indivíduo (e.g., uma mulher negra e homossexual), exigindo também a integração das demandas por redistribuição e por reconhecimento.

A seguir, procede-se ao exame objetivo de três áreas em que a igualdade como reconhecimento ainda apresenta desafios relevantes: negros, mulheres e homossexuais/transgêneros.

V.1. Igualdade racial: a herança da escravidão

Em 2001, uma revista alemã divulgou que, em uma conversa com o então presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso, em Washington, George W. Bush teria lhe perguntado: [simple_tooltip content=’Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2106200311.htm’]“Vocês também têm negros no Brasil?”[/simple_tooltip]. Na verdade, o Brasil é o país com a maior população negra fora do continente africano. Porém, a pergunta do Presidente norte-americano revelava uma inocultável realidade: nas posições de poder, nos meios de comunicação e nos espaços públicos elitizados, a imagem do Brasil era – e, de certa forma, ainda é – a imagem de um país de formação predominantemente europeia. Isso porque, apesar de o país ser altamente miscigenado, a convivência entre brancos e negros se dá majoritariamente em relações hierarquizadas, de subordinação e subalternidade. Os brasileiros estão acostumados a ver a população afrodescendente desempenhar determinados papéis, como os de porteiro, pedreiro, operário, empregada doméstica e também o de jogador de futebol. Salvo exceções – felizmente, cada vez mais frequentes –, os negros não ocupam os estratos mais elevados da sociedade, os cargos de prestígio político e as posições sociais e econômicas mais elevadas.

Este fato é, sem dúvida, um dos estigmas deixados pela escravidão. Após a abolição da escravatura, a ascensão do negro à condição de trabalhador livre não foi capaz de alterar as práticas sociais discriminatórias e os rótulos depreciativos da cor de pele (muito embora, do ponto de vista biológico, não existam raças humanas). A falta de qualquer política de integração do ex-escravo na sociedade brasileira, como a concessão de terras, empregos e educação, garantiu que os negros continuassem a desempenhar as mesmas funções subalternas. Assim, no Brasil, criou-se um aparato apto à manutenção da exclusão e da marginalização sem que fossem instituídas leis discriminatórias propriamente ditas. Diferentemente dos Estados Unidos, aqui, não houve a necessidade de aprovação de leis de segregação racial, as chamadas Jim Crow Laws, que institucionalizaram naquele país a doutrina “separados, mas iguais” (“separate, but equal”), obtendo, inclusive o beneplácito da Suprema Corte norte-americana, em [simple_tooltip content=’De acordo com o voto da maioria, a igualdade perante a lei não significava a abolição de todas as distinções baseadas na cor: The object of the (14th) amendment was undoubtedly to enforce the absolute equality of the two races before the law, but, in the nature of things, it could not have been intended to abolish distinctions based upon color, or to enforce social, as distinguished from political, equality, or a commingling of the two races upon terms unsatisfactory to either. Laws permitting, and even requiring, their separation in places where they are liable to be brought into contact do not necessarily imply the inferiority of either race to the other, and have been generally, if not universally, recognized as within the competency of the state legislatures in the exercise of their police power. (…) Legislation is powerless to eradicate racial instincts or to abolish distinctions based upon physical differences, and the attempt to do so can only result in accentuating the difficulties of the present situation. If the civil and political rights of both races be equal, one cannot be inferior to the other civilly or politically. If one race be inferior to the other socially, the Constitution of the United States cannot put them upon the same plane (Caso Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896))’]Plessy v. Fergusson[/simple_tooltip].

No Brasil, diversamente, nunca houve um conflito racial aberto ou uma segregação formal. O racismo nesses trópicos é velado, dissimulado, encoberto pelo mito da democracia racial e pela cordialidade do brasileiro. [simple_tooltip content=’O racismo também transparece em algumas expressões típicas brasileiras que importam na depreciação da negritude, como “a coisa está preta”, usada em situações ruins, “serviço de preto”, empregada para qualificar um serviço malfeito, ou “ele é um negro de alma branca”, expressão usada como um elogio, mas que tem embutida uma ideia de superioridade dos brancos.’]Este mito não resiste, porém, às análises estatísticas[/simple_tooltip]. Dados do IPEA demonstram que a população negra e parda, que corresponde a cerca de metade do total de habitantes, segue sub-representada entre os mais ricos e sobre-representada entre os mais pobres, [simple_tooltip content=’IPEA, Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. 4a ed., 2009.’]equivalendo a 72% dos 10% mais pobre[/simple_tooltip]. Recebe, ademais, em média, 55% da renda percebida pelos brancos e a taxa de desemprego é 50% superior em relação ao restante da sociedade. Na educação, enquanto 62,8% dos estudantes brancos de 18 a 24 anos cursam nível superior, apenas 28,2% dos negros nessa idade estão nas universidades.

Apesar da eloquência dos números, como apontou Florestan Fernandes, no nosso país os brancos ainda cultivam o [simple_tooltip content=’Florestan Fernandes. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Dominus Editora, 1965′]preconceito de não ter preconceito[/simple_tooltip]. Algo muito bem ilustrado por recente pesquisa de opinião, na qual, apesar de 92% dos brasileiros reconhecerem a existência de racismo, [simple_tooltip content=’Instituto Data Popular, 2014. Disponível em: http://www.datapopular.com.br/abert_pt.htm’]somente 1,3% se declarou racista[/simple_tooltip]. A ideia de democracia racial representa, assim, uma máscara que tem dificultado tremendamente o enfrentamento dos [simple_tooltip content=’Texto intitulado “Cotas e justiça racial: de que lado você está?”, publicado no site do Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-mai-06/luis-roberto-barroso-justica-racial-lado-voce’]processos históricos e culturais de discriminação contra a população afrodescendente[/simple_tooltip]. É preciso desconstruir a ideia romântica e irreal de que somos uma sociedade homogeneizada pela miscigenação e de que aqui transcendemos a questão racial, na linha da tese de doutorado de [simple_tooltip content=’A tese é intitulada Racial Justice in Brazil: Struggles over Equality in Times of New Constitutionalism, mimeografada, 2013. Participei como membro da banca de defesa e comentei o excelente texto em artigo intitulado “Cotas e justiça racial: de que lado você está?”, disponível em http://www.conjur.com.br/2013-mai-06/luis-roberto-barroso-justica-racial-lado-voce’]Adílson Moreira, apresentada na Universidade de Harvard[/simple_tooltip]. Nas palavras do juiz Blackmun, [simple_tooltip content=’Frase proferida em voto no caso University of California Regents v. Bakke (opinion concurring in part and dissenting in part), 1978. No original, “In order to get beyond racism, we must first take account of race. There is no other way”’]“a fim de superar o racismo, é preciso primeiro ter em conta a raça. Não há outro caminho”[/simple_tooltip].

Um parêntesis. Nos EUA, nas últimas décadas, após decisão seminal da Suprema Corte no caso Brown v. Board of Education, de 1954, que pôs fim à segregação racial nas escolhas públicas e ao modelo “separate but equal”, e decisões subsequentes que aprofundaram o [simple_tooltip content=’A título ilustrativo, cf: Browder v. Gayle, 142 F. Supp. 707 (M.D. Ala. 1956), que julgou inconstitucional a segregação racial em ônibus; Gomillion v. Lightfoot, 364 U.S. 339 (1960), na qual a Suprema Corte entendeu que a distritalização eleitoral tendenciosa feita para prejudicar negros é inconstitucional; Boynton v. Virginia, 364 U.S. 454 (1960), que declarou inconstitucional a segregação racial em todos os meios de transporte público; Loving v. Virginia, 388 U.S. 1 (1967), que declarou inconstitucionais leis que proibiam casamento interfacial’]processo de dessegregação[/simple_tooltip], pode-se dizer que lá também passou a vigorar um “racismo à brasileira”, mais camuflado e manifestado nas estatísticas e na seletividade do sistema prisional. Esta é, aliás, a tese do best-seller The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness”, que aponta que o encarceramento em massa de negros na Guerra às Drogas representa a recriação da segregação racial na América, na medida em que milhões de negros presos por crimes relativamente brandos são estigmatizados e excluídos após passarem pelo [simple_tooltip content=’Michelle Alexander. The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness. New York: The New Press, 2012′]sistema de justiça crimina[/simple_tooltip].

A igualdade formal é um ponto obrigatório de passagem na construção de uma sociedade democrática e justa.

Voltando ao Brasil, nas últimas décadas, nosso país iniciou uma trajetória de combate mais aberto à discriminação racial, tendo obtido notáveis avanços no tema. Em relação à igualdade formal, a Constituição de 1988 definiu a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível (art. 5o, XLII) e proibiu a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de cor (art. 7o, XXX). Já em relação à igualdade material, a maior conquista foi a introdução de políticas de ação afirmativa para acesso de negros e estudantes de escolas públicas às universidades públicas. Para nós, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, é motivo de grande orgulho que aqui tenha sido inaugurada, em 2003, a experiência brasileira com a política de cotas. Rapidamente, a iniciativa se espalhou por diversas [simple_tooltip content=’Desde 2013, por força de lei, todas as universidades públicas federais adotam a política’]instituições públicas de ensino superior do país, estaduais e federais[/simple_tooltip]. Em 2012, em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, afirmou a constitucionalidade da política de cotas em universidades públicas, entendendo que, em princípio, [simple_tooltip content=’ADPF 186/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 26.04.2012′]são admissíveis cotas socioeconômicas, cotas puramente raciais e combinações de ambas[/simple_tooltip].

A decisão do Tribunal brasileiro vai, é certo, na contramão da tendência restritiva da Suprema Corte dos EUA em relação às ações afirmativas que utilizam a raça como elemento de discrímen. Em Regents of University of California v. Bakke, julgado em 1978, a Corte invalidou política de cotas com recorte puramente racial, mas afirmou a validade de políticas de ação afirmativa que tenham a raça como um dos critérios, [simple_tooltip content=’Suprema Corte dos EUA, Caso Regents of University of California v. Bakke, 438 U.S. 265 (1978).’]à luz do pluralismo[/simple_tooltip] [simple_tooltip content=’Ainda sobre o tema, confiram-se as decisões da Suprema Corte dos EUA nos casos: Adarand Constructors Inc. v. Peña, 515 U.S. 200 (1995); e Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003)’](e não do princípio da igualdade)[/simple_tooltip]. Mais recentemente, em 2014, no caso Schuette v. Coalition to Defend Affirmative Action, a Corte, por maioria, declarou a constitucionalidade de emenda à Constituição do Estado de Michigan que proibiu a implementação de ações afirmativas com recorte racial nas escolas e universidades públicas estaduais.

No Brasil, apesar das resistências iniciais, a experiência das cotas tem logrado grande sucesso e tem sido um instrumento eficaz de enfrentamento da desigualdade racial. Segundo dados do Ministério da Educação, entre 1997 e 2013, o percentual de estudantes pardos e negros entre 18 e 24 anos que cursam ou concluíram curso de graduação subiu de 4% para 19,8%. Os receios de que a instituição da política de cotas fosse ameaçar a qualidade do ensino público e agravar a discriminação racial se mostraram infundados. Nossas universidades se tornaram um espaço de convivência não-hierarquizado entre todos os estratos da população e o ensino público apenas se beneficiou da criação de um ambiente de diversidade. Hoje, os negros egressos das universidades, de posse de um diploma, começam aos poucos a ocupar posições de prestígio e poder, tornando-se advogados, juízes e médicos, contribuindo para a eliminação de estereótipos sociais e raciais. E ainda quando tenham, eventualmente, maior dificuldade competitiva, o fato é que seus filhos iniciarão a vida em igualdade de condições. Os maiores beneficiários desse investimento são as próximas gerações.

É preciso ter em conta, porém, que a reserva de vagas no ensino superior não é uma fórmula suficiente e definitiva para suprir as demandas de redistribuição e de reconhecimento exigidas para superação da questão racial. O debate não pode se limitar às cotas que, de resto, não deve ser um modelo perene, mas transitório. Ensino público fundamental de qualidade e, antes disso, estruturas de apoio na primeira idade e na pré-escola são políticas que permitirão que pobres e negros tenham igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e na vida. Mais recentemente, iniciaram-se também experiências com a introdução de cotas para negros em concursos públicos, tema que ainda tem [simple_tooltip content=’A Lei nº 12.990/2014 reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos no âmbito da administração pública federal, direta e indireta’]gerado muitas controvérsias[/simple_tooltip]. Além disso, é necessário discutir e enfrentar seriamente a questão dos estigmas sociais e do racismo ainda persistente, inclusive praticado pelo próprio Estado, que se manifesta na violência policial e no fenômeno do genocídio da juventude negra, revelado de forma nítida pelas estatísticas (segundo dados, em 2011, a participação de jovens negros no [simple_tooltip content=’V. Mapa da Violência 2014, Os Jovens do Brasil, disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf’]total de homicídios no país foi de 76,9%[/simple_tooltip]).

V.2. Igualdade entre homens e mulheres em uma tradição patriarcal

A afirmação da condição feminina, com autonomia e igualdade, em sociedades patriarcais como a brasileira, tem sido uma luta histórica e complexa. “Protegida” por estruturas sociais e jurídicas criadas por homens, é relativamente recente o processo de conscientização e reação a uma visão estereotipada do seu papel social, que combinava submissão, maternidade e prendas do lar. Até a década de 1960, as mulheres casadas eram consideradas relativamente incapazes, [simple_tooltip content=’Somente em 1962, com a aprovação do Estatuto da Mulher Casada (a Lei 6.121/62), foi permitido o livre exercício de profissão e foi conferida a capacidade para o exercício de direitos pela mulher casada’]dependendo do consentimento do marido para trabalhar e para praticar atos da vida civil, como assinar cheques e celebrar contratos[/simple_tooltip]. A histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens institucionalizou a desigualdade socioeconômica entre os gêneros e promoveu visões excludentes, discriminatórias e estereotipadas da identidade feminina. Além disso, estimulou a formação de uma perniciosa cultura de violência física e moral contra a mulher.

Em termos de igualdade formal, a Carta de 88 é revolucionária na garantia dos direitos das mulheres. Ela prevê a igualdade de homens e mulheres em direitos e obrigações, inclusive os referentes à sociedade conjugal (arts. 5o, I, e 226, § 5º), proíbe a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo (art. 7o, XXX), reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar (art. 226, § 3º), estabelece o planejamento familiar como livre decisão do casal, (art. 226, § 7º) e institui o dever do Estado de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, § 8º). Tais conquistas não devem ser subestimadas. Porém, no plano da igualdade material, existe ainda uma agenda inconclusa, que engloba três grandes eixos: a participação da mulher no mercado de trabalho, o exercício de direitos sexuais e reprodutivos, bem como o combate à violência doméstica.

Em relação ao mercado de trabalho, a última década registrou um inegável aumento da presença feminina, com a conquista gradual de posições de prestígio e poder, que incluem até mesmo a Presidência da República. Estudo apresentado pelo IBGE em 2014 demonstra que, apesar do maior espaço conquistado pelas mulheres na realidade socioeconômica do país, [simple_tooltip content=’Estatísticas de Gênero – Uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010. Disponível em: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2747′]elas ainda estão longe de alcançar a igualdade[/simple_tooltip]. Estatísticas demonstram que, entre 2000 e 2010, o seu rendimento aumentou 12% (enquanto o dos homens apenas 8%). Apesar disso, a diferença salarial ainda é altíssima: mulheres recebem, em média, [simple_tooltip content=’As estatísticas também mostraram que na faixa etária de 18 a 24 anos, havia um contingente maior de mulheres nas universidades (57,1% do total). Muito embora o nível educacional das mulheres seja maior, a pesquisa identificou que as mulheres possuem formação em maior proporção em áreas com menor rendimento mensal médio entre as pessoas ocupadas’]68% do que ganham os homens[/simple_tooltip].

A desigualdade atávica e renitente é um problema grave, que tem acompanhado a formação social do Brasil desde o seu início como nação.

No tocante aos direitos sexuais e reprodutivos, as mulheres têm lutado pela liberdade e autonomia no exercício e na determinação de sua sexualidade e na possibilidade de controle do próprio corpo. A pauta de reivindicações sobre o tema tem incluído demandas relativas ao planejamento familiar, à saúde materna e neonatal e ao aborto. O primeiro coautor deste trabalho esteve à frente de um caso de grande complexidade teórica e filosófica debatido perante o Supremo Tribunal Federal: [simple_tooltip content=’ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 12.04.2012.’]a interrupção terapêutica da gestação em casos de anencefalia[/simple_tooltip]. O debate judicial teve final feliz. Por maioria, o Supremo descaracterizou o crime de aborto quando as gestantes optarem pela antecipação do parto nos casos em que o feto sofra de anencefalia, anomalia que impossibilita o nascimento com vida (cerebral). No caso, todos os ministros que compuseram a maioria destacaram que o direito à antecipação do parto decorre diretamente de um conjunto de preceitos fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana. No entanto, embora instados por via de memorial e na sustentação oral, os ministros não encamparam o argumento da liberdade reprodutiva das mulheres. O STF permanece, assim, sem reconhecer os direitos sexuais e reprodutivos como [simple_tooltip content=’Ressalte-se, porém, que no julgamento do HC 84.025-6, relativo também a caso de feto anencefálico, embora o HC tenha restado prejudicado, em razão do nascimento da criança, o Ministro Joaquim Barbosa se posicionou pela possibilidade de interrupção terapêutica do parto e reconheceu expressamente que os direitos reprodutivos são “componentes indissociáveis do direito fundamental à liberdade e do principio da autodeterminação pessoal”’]direitos fundamentais das mulheres[/simple_tooltip].

Como consequência, ainda não houve avanços na questão mais abrangente, referente à descriminalização do aborto. A interrupção voluntária da gravidez é uma questão moral altamente controvertida no Brasil e em todo o mundo. Porém, nenhum país desenvolvido – nem mesmo os de forte influência católica, como Itália, França e Espanha – lida com este problema com direito penal. Antes de ir para o STF, o primeiro coautor deste trabalho se manifestou extensamente sobre o tema. Em tais trabalhos, defendeu o argumento de que a criminalização é uma política pública equivocada e incompatível com a Constituição, com base em argumentos que incluem os seguintes: (i) autonomia da mulher: situa-se no âmbito da autonomia privada da mulher e, portanto, no núcleo essencial da sua liberdade básica, decidir por si mesma quanto à cessação da gravidez, ao menos até o momento em que o feto passe a ter potencialidade de vida fora do útero materno; (ii) igualdade de direitos: o aborto deve ser considerado no plano da igualdade de direitos entre homens e mulheres; na medida em que é a mulher suporta o ônus integral da gravidez, somente haverá igualmente plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não; e (iii) discriminação ilegítima contra as mulheres pobres: a criminalização produz uma discriminação de facto contra as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento, e. em razão disso, precisam recorrer a procedimentos precários e primitivos, que lhes causa lesões, mutilações e óbitos. As estatísticas demonstram que o número de abortos em países que o admitem não é maior do que o dos países em que ilegal. A principal diferença é, portanto, o [simple_tooltip content=’Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, “Aqui, lá e em todo lugar”: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional, Revista dos Tribunais 919:127-196, 2012, p. 183 e s’]número de abortos legais e de vítimas[/simple_tooltip].

Já no que se refere ao combate à violência doméstica, a maior conquista feminina foi, sem dúvida, a edição da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que instituiu regras diferenciadas para tratar da violência doméstica contra mulheres. A lei foi questionada perante o STF, que declarou a sua constitucionalidade, por entender que a criação de um regime diferenciado para esse tipo de crime seria perfeitamente compatível com o princípio da igualdade, tendo em vista a existência de uma [simple_tooltip content=’ADC 19/DF e ADIn 4.424/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. Em relação à regra que condicionava a ação penal à representação da vítima, a maioria dos ministros optou por conferir interpretação conforme aos dispositivos questionados para estabelecer que, nos crimes de que se trata, a ação penal será sempre incondicionada. Isso porque, nas relações domésticas, sobretudo nas classes mais desfavorecidas, não é raro que a dependência econômica estimule a complacência e conduza à impunidade reiterada. ponderou que a autonomia da mulher deveria ser respeitada em nome da dignidade da pessoa humana’]grave desigualdade material a ser compensad[/simple_tooltip]. Mais recentemente, foi aprovada a chamada Lei do Feminicídio, que modifica o Código Penal para incluir o assassinato de mulheres por razões de gênero entre as hipóteses de homicídio qualificado. Por fim, em um front ainda mais complexo e sutil, será preciso eliminar padrões discriminatórios, estereotipados e desrespeitosos em relação à mulher, que ainda expressam uma cultura machista e opressora. Para dar um exemplo simples, mas muito visível, o homem que vive sua liberdade sexual plena é exaltado (“o garanhão”), ao passo que a mulher que proceda da mesma forma é rotulada de maneira negativa e depreciativa (“a vadia”).

V.3. Igualdade de orientação sexual e identidade de gênero: machismo e violência

Por fim, cabe tratar da questão da discriminação em relação à orientação sexual e à identidade de gênero. Nas últimas décadas, culminando um processo de superação do preconceito e da discriminação, inúmeras pessoas passaram a viver a plenitude de sua orientação sexual e, como desdobramento, assumiram publicamente suas relações homoafetivas. No Brasil e no mundo, milhões de pessoas do mesmo sexo convivem em parcerias contínuas e duradouras, caracterizadas pelo afeto e pelo projeto de vida em comum. Paralelamente, iniciou-se um movimento de redefinição das identidades de gênero, em que pessoas passaram a manifestar os gêneros pelos quais se reconhecem, ainda que discordantes do sexo biológico. É o caso dos travestis, transexuais e demais transgêneros.

O movimento LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros, apesar de sua enorme diversidade interna, [simple_tooltip content=’V. Vera Lúcia Marques; Paulo D’ávila. O Movimento LGBT e os partidos políticos no Brasil. Revista brasileira de ciência política. n. 3, 2010′]ganha unidade a partir de duas dimensões principais[/simple_tooltip]. A primeira relativa à possibilidade de manifestar publicamente seus desejos, afetos e identidade, sem qualquer sorte de discriminação. Trata-se, assim, de uma demanda de reconhecimento, que atravessa as ordens cultural-valorativa e simbólica, pretendendo modificar determinados padrões de aceitabilidade social e conquistar a valorização da diferença. A segunda diz respeito ao acesso ao mundo dos direitos, seja por meio da extensão de direitos já reconhecidos aos heterossexuais (e.g., uniões civis), seja pelo reconhecimento de novos direitos decorrentes da legitimação das diferenças (e.g., direito à mudança de nome no registro civil).

No Brasil, o reconhecimento jurídico de direitos LGBT tem avançado a passos largos, sobretudo pela via judicial. Em relação à questão da orientação sexual, em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, as [simple_tooltip content=’ADPF 132/RJ e ADIn 4.277/DF, Rel. Min. Carlos Britto’]uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, em igualdade de condições em relação às uniões heterossexuais[/simple_tooltip], caso em que o primeiro coautor desse texto atuou como advogado, representando o Estado do Rio de Janeiro, proponente da ação. O precedente é histórico e constitui uma das atuações mais importantes do STF na proteção dos direitos fundamentais de minorias. Segundo o entendimento adotado enfaticamente pelo STF, a exclusão baseada na orientação sexual seria incompatível com o princípio da igualdade, o direito à busca da felicidade, a proibição do preconceito, a proteção à autonomia privada e com a própria dignidade da pessoa humana, que impede o Estado de impor determinada visão do que seja a vida boa.

Merece destaque, igualmente, que a decisão do STF abriu caminho para o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo no país. Embora não tenha havido manifestação expressa nesse sentido, trata-se de uma decorrência natural, já que a Constituição permite a conversão da união estável em casamento. O direito ao casamento veio a ser definitivamente assegurado por meio de resolução do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que [simple_tooltip content=’Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, do Conselho Nacional de Justiça’]proibiu que cartórios se recusassem a celebrar o casamento nesse caso[/simple_tooltip]. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte apenas se pronunciou definitivamente sobre o tema quatro anos depois da decisão do STF, em junho de 2015. Na mundialmente celebrada decisão no caso [simple_tooltip content=’Suprema Corte dos EUA, Caso Obergefell v. Hodges, 576 U. S. (2015)’]Obergefell v. Hodges[/simple_tooltip], o Tribunal decidiu, por 5 votos a 4, que a Constituição norte-americana exige que os [simple_tooltip content=’Em caso anterior, o United States v. Windsor 570 U.S. (2013), a Corte norte-americana manifestou-se sobre a constitucionalidade de Lei Federal (the Defense of Marriage Act – DOMA) que definia “casamento” como a união entre homem e mulher apenas, para fins de uma série de benefícios. Na decisão, a Corte entendeu, por maioria, que a lei é inconstitucional, sob o argumento de que os Estados têm competência para definir o que se entende por matrimônio e que, se alguns Estados, no legítimo exercício dessa competência, optaram por admitir casamentos homoafetivos, não poderia a lei federal discriminar os casais que se casaram ao abrigo dessas leis estaduais’]Estados licenciem e reconheçam legalmente casamentos entre pessoas do mesmo sexo[/simple_tooltip].

Além do casamento homoafetivo, uma importante demanda do movimento LGBT é a aprovação de leis que reconheçam o direito de adoção de crianças por casais do mesmo sexo, assim como a garantia de que a criança possa ser registrada em nome do casal na certidão de nascimento. Muito embora não haja no direito brasileiro impedimentos legais à adoção por casais em união homoafetiva, muitos ainda precisam recorrer ao Poder Judiciário para a garantia do direito. Recentemente, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal manifestou-se pela primeira vez sobre o tema em caso sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia, [simple_tooltip content=’RE 846.102, rel. Min. Cármen Lúcia, j. em 05.03.2015]tendo reconhecido a possibilidade de adoção por casais homoafetivos, sem restrição de idade[/simple_tooltip]. Outros dois itens importantes da pauta de reivindicações são a [simple_tooltip content=’Desde 2006, tramita no Congresso projeto que equipara a homofobia ao crime de racismo’]criminalização da homofobia[/simple_tooltip] e a distribuição de material educativo contra a homofobia nas escolas, como forma de combater a intolerância e o preconceito, ilustrados pelo recente caso de [simple_tooltip content=’V. http://vejasp.abril.com.br/materia/filho-casal-gay-morre-agressao-sofrida-colegio/. Embora a agressão tenha efetivamente ocorrido, não se confirmou que ela tenha sido a causa direta da morte. V. http://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/2015/03/laudo-aponta-que-filho-de-casal-gay-morreu-de-causas-naturais-diz-policia.html’]um jovem de 14 anos que faleceu após ser agredido por colegas por ser filho de um casal homossexual[/simple_tooltip].

Em relação à identidade de gênero, também há motivos para celebrar. O Superior Tribunal de Justiça já assegura aos [simple_tooltip content=’O Superior Tribunal de Justiça tem autorizado a modificação do nome que consta do registro civil, após a cirurgia de alteração do sexo. O primeiro recurso sobre o tema foi julgado pela 3a Turma do STJ em 2007 (REsp 678.933, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em 22.03.2007), que concordou com a mudança desde que o registro de alteração de sexo constasse da certidão civil. Posteriormente, em 2009, o STJ voltou a analisar o assunto e garantiu ao transexual a troca do nome e do gênero em registro, sem que constasse a anotação no documento, mas apenas nos livros cartorários (REsp 1008398, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 15.10.2009)’]transexuais a possibilidade de alteração do nome de registro civil após a cirurgia de mudança de sexo[/simple_tooltip]. Ademais, desde 2008, o Ministério da Saúde custeia operações de redesignação de sexo pelo [simple_tooltip content=’V. Portaria nº 457, de agosto de 2008′]Sistema Único de Saúde (SUS)[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’A título exemplificativo, cf.: Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AC 2001.71.00.026279-9, j. em 14.08.2007′]na esteira de decisões judiciais anteriores[/simple_tooltip]. No entanto, há diversas demandas relevantes ainda em discussão, como (i) a possibilidade de mudança do nome no registro civil de transexual mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo, [simple_tooltip content=’V. TJ-MG, Ap. Cível 1.0521.13.010479-2, DJ. de 07.05.2014; TJ-SP, Ap. Cível 0055269-67.2008.8.26.0576, DJ de 03.02.2015; TJ-RS, Ap. Cível 70060459930, DJ de 21.08.2014′]já permitida em várias decisões judiciais no país[/simple_tooltip], (ii) a possibilidade de uso do nome social nos espaços públicos, e (iii) o direito ao uso de banheiro adequado à identidade de gênero. Estas questões já foram colocadas perante o STF, [simple_tooltip content=’Elas são discutidas no âmbito do RE 670422, rel. Min. Dias Toffoli, e do RE 845779, rel. Min. Luís Roberto Barroso, ambos com repercussão geral reconhecida’]que deverá se manifestar sobre elas em um futuro próximo[/simple_tooltip].

A despeito das conquistas aqui noticiadas, a sociedade ainda precisa avançar muito no reconhecimento dos direitos e da identidade de travestis, transexuais e transgêneros. Para que se tenha uma ideia da gravidade do problema, o Brasil lidera o ranking de violência transfóbica, registrando o [simple_tooltip content=’V. http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012′]maior número de mortes no cenário mundial[/simple_tooltip], e a expectativa de vida desse grupo é de cerca de 30 anos, muito abaixo daquela apontada pelo IBGE para o brasileiro médio, de quase [simple_tooltip content=’V. http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2014/12/expectativa-de-vida-dos-brasileiros-sobe-para-74-9-anos-de-acordo-com-ibge’]75 anos[/simple_tooltip]. Além disso, estima-se que 90% dos travestis e transexuais no país estejam se prostituindo, já que não há [simple_tooltip content=’Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra)’]outras oportunidades de trabalho[/simple_tooltip]. Não por outro motivo, a agenda política desses grupos tem sido ocupada cada vez mais por demandas relacionadas ao combate à violência, à garantia do acesso e permanência nas escolas, e à criação de políticas de inserção no mercado de trabalho que promovam alternativas à prostituição.

 

Capítulo 6

Conclusão

Conclusão

Este, portanto, o painel sobre a situação da igualdade no Brasil, em suas múltiplas incidências. Algumas das ideias aqui apresentadas podem ser sintetizadas, de maneira sumária, nas cinco proposições objetivas que se seguem:

A. A desigualdade atávica e renitente é um problema grave, que tem acompanhado a formação social do Brasil desde o seu início como nação. Nada obstante isso, sobretudo nas últimas décadas, avanços significativos têm ocorrido;

B. No plano teórico, a igualdade pode ser considerada em três dimensões: igualdade formal, que veda privilégios e discriminações na lei e perante a lei; igualdade material, que expressa as demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem-estar social; e igualdade como reconhecimento, que se destina à proteção das minorias, sua identidade e diferenças;

C. A questão da igualdade formal é um tema relativamente superado na maior parte do mundo desenvolvido. No Brasil, todavia, ainda há problemas tanto no sistema normativo – como a abrangência do foro por prerrogativa de função –, como no plano da execução das leis: é mais fácil punir um jovem de 18 anos pela posse de 100 gramas de maconha do que um empresário ou político que tenha cometido uma fraude milionária;

D. No plano da igualdade material associada à redistribuição, o Brasil tem avanços notáveis a comemorar, com a recente inclusão social de aproximadamente 30 milhões de pessoas, bem como com a universalização do ensino fundamental. Nada obstante isso, ainda possuímos indicadores muito ruins em temas como analfabetismo, distribuição de renda e violência.

E. No âmbito da igualdade como reconhecimento, também existem inúmeras conquistas recentes a celebrar, em relação a negros, mulheres, homossexuais e transgêneros. Porém, em relação a todos esses grupos vulneráveis, ainda subsistem problemas dramáticos ligados ao preconceito, à discriminação e a violência.

Em suma: somos bem melhores do que éramos antes, e não devemos subestimar o longo caminho percorrido, que envolveu resistência, determinação e luta de muitas gerações. Porém, ainda estamos longe dos padrões mínimos de igualdade exigíveis em uma sociedade que se pretenda democrática, justa para todos e fundada na dignidade da pessoa humana.

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*Texto elaborado para apresentação no “Seminario en Latinoamérica de Teoría Constitucional y Política” – SELA, organizado pela Yale Law School, ocorrido no Rio de Janeiro, de 11 a 14 de junho de 2015.