Sistema Penitenciário

PCC – O Primeiro Comando da Capital

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Capítulo 1

As palavras de um dos fundadores da facção criminosa

A facção criminosa PCC, que nasceu nos presídios de São Paulo, sem dúvida alguma foi o maior problema que enfrentei na Secretaria da Administração Penitenciária. Quando assumi o cargo já se falava muito dessa organização, mas de maneira velada, porque o secretário que me antecedeu entendia que não devia divulgar sua existência, para não glamourizar um grupo nascido para praticar crimes e extorquir, embora sob o pretexto de defender direitos dos presos contra a opressão do Estado.

Muito já foi escrito sobre o PCC. Daquilo que se conhece, consta que foi formado em 1993, possivelmente no dia 31 de agosto, no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté, unidade de segurança máxima, conhecido “Piranhão”. Esse anexo foi construído na gestão do secretário de Justiça José Carlos Dias, com a finalidade de abrigar os presos mais perigosos do Estado, uma espécie de RDD da época. José Carlos Dias, que posteriormente foi ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, conta que o apelido “Piranhão” surgiu porque havia alguns criminosos tão violentos que matavam seus desafetos e bebiam, literalmente, o sangue das vítimas, tal como as piranhas. Era um estabelecimento necessário à manutenção da ordem e da disciplina no sistema.

Os presos, evidentemente, não aceitavam uma unidade prisional com esse rigor. Ficavam em celas individuais, a maior parte do tempo isolados, sem visitas íntimas e sem TV ou rádio. Consta, ainda, que o diretor dessa penitenciária, José Ismael Pedrosa, exagerava no rigor disciplinar, e havia muitas reclamações contra ele, inclusive de prática de tortura. Nada foi oficialmente provado sobre essas acusações, mas a verdade é que os rumores sobre os excessos eram muitos.

Lembro que logo no início da minha gestão recebi um extenso dossiê da Ordem dos Advogados do Brasil denunciando as irregularidades e os desvios que estariam ocorrendo no “Piranhão”, pedindo providências. Enquanto as apurações estavam em curso, no final de 2000 houve uma violenta rebelião, com destruição de todas as dependências, fato que nos obrigou a esvaziar por completo o estabelecimento. Na época presos notórios como “Pedrinho Matador”, Hosmany Ramos, “Maníaco do Parque”, “Sombra”, “Marcola”, e outros lá se encontravam. Nessa rebelião nove inimigos do PCC foram mortos e vários deles tiveram a cabeça decepada, numa demonstração incrível de selvageria.

Desativado o anexo, os presos foram espalhados em outras unidades prisionais, indo seis para a Casa de Detenção de São Paulo, onde teve início uma série de assassinatos e de ameaças, sem precedentes no sistema. Nas vésperas do Natal de 2000 começaram a surgir rumores de que o PCC faria uma grande rebelião no Complexo Carandiru, com potencial de parar a cidade de São Paulo. Padres da Pastoral Carcerária telefonavam alertando para o fato de que parentes de presos estariam sendo aconselhados a não fazerem visita naquele final de ano, em face da iminência da rebelião. A imprensa começou com o sensacionalismo, publicando matérias dando como certa a megarrebelião, entre o Natal e o réveillon de 2000. Os diretores, ao contrário, me asseguravam que tudo estava tranqüilo e sob controle. Não aconteceu nada no Natal, mas as notícias prosseguiam, assegurando que não passaria do final do ano.

No último dia útil do ano, 29 de dezembro de 2000, uma sexta-feira, decidi ir pessoalmente ao Carandiru para pôr tudo em pratos limpos. Se for para enfrentar o problema vamos nos preparar, foi o que pensei. Convoquei o coordenador Sérgio Salvador, telefonei ao diretor-geral e logo pela manhã estávamos no Carandiru para tomar as medidas que deveriam ser tomadas, caso realmente houvesse alguma ameaça pairando no ar.

A conversa, com diretores, funcionários e presos, foi tranqüila. Atendi a todos e por volta de meio-dia retornei ao gabinete, certo de que os boatos não procediam.

No dia seguinte, para minha surpresa, o Diário Popular estampava em manchete que eu fora ao presídio para “fazer um acordo com o PCC”. Em editorial, no dia seguinte falava em “capitulação do Estado” ante a organização criminosa.

Rebati veementemente essas notícias, mas a história do “acordo” rolou por muito tempo e ainda hoje há quem a ressuscite.

Atendendo meu pedido, o diretor-geral da Casa de Detenção, Jesus Ross Martins, que acompanhou tudo o que aconteceu naquela manhã, elaborou um texto que transcrevo a seguir, em resumo, descrevendo o que realmente aconteceu:

 

Nagashi negociou com PCC?

Jesus Ross Martins

 

“Já ouvi falar, não poucas vezes, que há gente de todo o tipo, inclusive nas diversas profissões. No meu trabalho, tenho sempre que considerar as coisas que ouço das pessoas. Sempre há algum fundo de verdade nas frases populares. Há, até, quem se dedique a estudar determinados ditados ou pensamentos populares para encontrar suas origens ou o fundo de verdade que elas venham conter ou não. (….) Não importa se o conceito anunciado é fato ou não. Foi isso o que aconteceu naquela sexta-feira, dia 29 de dezembro de 2000. Era o último dia útil do ano 2000. Milhares de pessoas andavam ansiosas sobre o que aconteceria na passagem do milênio. Muita controvérsia quanto ao anunciado fim do mundo, o que estaria por acontecer no ano 2000, segundo os profetas da calamidade. Diziam que estava escrito na Bíblia “A mil chegarás, mas de dois mil não passarás”. Isto nunca esteve escrito na Bíblia, mas juravam que estava lá. O ambiente na Casa de Detenção também estava conturbado, mas por outras razões. A bem da verdade, o ambiente ali era sempre tenso, por um motivo ou por outro. Para entendermos o que aconteceu naquele dia – e porque lembrei de profissionais bem e mal intencionados, retrocederemos um pouquinho no tempo.

Havíamos recebido, bem recentemente, seis presos que participaram de uma cruenta rebelião na Casa de Custódia de Taubaté, situada 130 km a nordeste de São Paulo. Tratava-se de presos desajustados, envolvidos com facções criminosas.

(…..)

Desde a chegada daqueles seis homens, o número de presos que pediam para ser transferidos para a ala de segurança pessoal crescia (….) algo de diferente estava acontecendo e, coincidência ou não, tudo depois que chegaram os “seis amigos” vindos de Taubaté.

Nas minhas conversas com o secretário da Administração Penitenciária, Doutor Nagashi Furukawa, compartilhava das enormes dificuldades para conduzir aquele gigantesco presídio.                         (….)

Foi neste contexto que, depois de algum tempo, recebemos a visita do Dr. Nagashi Furukawa (….) sua assessoria anotava tudo e depois ele dava as diretrizes aos administradores das prisões. Estas orientações vinham no mesmo dia, ou dias depois, mas ele nunca deixava nada cair no esquecimento. Aquela visita estava acontecendo numa hora muito oportuna, pensei, e me alegrei. (….) Era dia 29 de dezembro de 2000, sexta-feira. Último dia do ano e da semana. Que ótima forma para um Diretor terminar o expediente.

(…..)

O grupo de funcionários já estava esperando. Conversaram com o secretário e entregaram uma lista com algumas reivindicações escritas. Em seguida, nos dirigimos ao refeitório, que ficava nesta mesma área, a Divinéia. Ali já estavam alguns presos dos seis pavilhões da Casa de Detenção. Alguns dos seis presos que eu havia recebido de Taubaté, dentre eles, o conhecido por “Sombra”, um dos líderes do PCC. O Dr. Nagashi ouviu as reclamações. Algumas poucas eram muito pertinentes, mas a maioria sem o menor sentido ou razão de ser, mesmo assim, ele os ouviu pacientemente. O Secretário falou também. Sem perder a postura de um líder sereno, mas que sabia se impor, falava firme com os presos. Quando falava, fazia com que eles silenciassem e pensassem. Os presos reclamaram de tudo o que podiam lembrar e, quando um vacilava no discurso, era socorrido com o cochicho de outro. Muito ordeiro e positivo era o clima em que o encontro estava ocorrendo. Os presos se portavam muito respeitosamente. Nem gírias estavam usando!

(….)

Mas o fato é que aquela reunião foi muito “refrescante” para o presídio, para quem trabalhava ali e para quem cumpria pena. O secretário terminou a reunião e foi enfático em dizer que não estava prometendo nada. Que os pedidos que fossem razoáveis poderiam ser atendidos, por serem de direito, dependendo da demanda administrativa, ouvida a direção da cadeia e que outras absurdas ele nem pretendia considerá-las.

A maioria dos presos entendeu a fala do secretário. O encontro terminou e eles foram levados pelos agentes de segurança penitenciária de volta a seus pavilhões, às suas celas. No dia seguinte receberiam visitas e precisavam limpar e arrumar suas coisas para o encontro com a família. Tive certeza que levaram boas impressões de volta aos companheiros encarcerados, muito embora não levassem com eles nenhuma decisão concreta ou promessa de mudanças imediatas. É assim mesmo na cadeia. Nem sempre os problemas são resolvidos na hora, mas todos concordamos: como faz bem uma boa conversa com quem nos inspira algum alento, alguma confiança!

Na saída, o Dr. Nagashi atendeu novamente alguns outros funcionários que ainda não havia conseguido conversar com ele. Em seguida se despediu e seguiu com sua comitiva. Não retornou para meu gabinete. Foi embora direto, passando pelo corredor que conduzia ao pátio frontal de estacionamento, pois o horário era avançado. Eu o acompanhei até seu carro. Ele me desejou sorte, partiu e eu voltei para as entranhas da maior prisão da América Latina. (…) As pessoas envolvidas com a Casa de Detenção, funcionários e presos, comentavam sobre o despojamento do Dr. Nagashi em visitar a prisão e atender funcionários e presos, sem pressa e demonstrando atenção. Para falar a verdade, nenhum de nós conseguiu se lembrar de outros secretários de Estado que visitassem os organismos sob seu comando com a mesma disposição e dedicação.

(…)

Outro ditado popular que sempre ouvimos é aquele que diz que nem tudo é perfeito. Prova disso aconteceu nos dias seguintes. Alguns jornalistas (…) noticiaram que o Secretário havia estado na prisão para fazer acordo com os presos e, mais do que acordo com os presos, acordo com o PCC. Meu Deus! Como podem escrever tão levianamente assim? Eu estava lá. Outras tantas pessoas estavam lá e ficaram espantadas com o que se escrevia sem nenhum compromisso com a verdade. Li que estes jornalistas teriam falado com presos por meio de telefones celulares e que estes lhes teriam dito que havia sido feito acordo entre eles, os presos, e o secretário. Acreditavam mais em uns poucos maus presos que mentiam (…) Aquelas notícias nojentas, mentirosas, mais destruíram que construíram. A discórdia foi regada num solo fértil. Quem escrevia do lado de fora, não imaginava, suponho, os prejuízos que causaram à paz interna da cadeia. As pessoas com quem eu convivia na Casa de Detenção, presos e funcionários – comentavam (…) que há profissionais de todo tipo. Uns bons, que ajudavam (…) e outros, que não ajudavam em nada, ao contrário, criavam, do lado de fora, problemas terríveis (…) Mas, é como se diz: há gente boa e ruim. Bons e maus profissionais. Por outro lado, nós sabemos o que aconteceu lá dentro naquela sexta-feira, último dia útil do último ano do milênio. Ninguém mais sabe e jamais saberá. A Casa de Detenção não existe mais”.

 

Esta é a transcrição do que escreveu Jesus Ross Martins sobre os fatos ocorridos na manhã de 29 de dezembro de 2000 na Casa de Detenção de São Paulo. Suprimi alguns trechos menos importantes, indicando as partes “cortadas” com (…). Jesus descreve com exatidão o que aconteceu. Tudo o mais não passou de fofoca, de mentira escrita por maus jornalistas, que confiaram em “fontes” desqualificadas, sem preocupação de apurar a verdade.

*     *     *     *

Voltando às origens do PCC, todos os registros confiáveis indicam que a organização criminosa foi fundada no final do mês de agosto de 1993, por 8 presos, durante uma partida de futebol que se realizava no “Piranhão”. Foram estes os “fundadores” da facção:

José Márcio Felício, “Geleião”,

César Augusto Roriz da Silva, “Césinha”,

Misael Aparecido da Silva, “Baianão” ou “Misa”,

Vander Eduardo Ferreira, “Cara Gorda”,

Isaías Moreira do Nascimento, “Isaías Esquisito”,

Antonio Carlos dos Santos, “Bicho Feio”,

Ademar dos Santos, “Dafé” e

Antonio Carlos Roberto da Paixão, “Paixão”.

Consta, ainda, que o grupo foi formado logo após uma partida de futebol, quando alguns detentos brigaram e vários foram assassinados. Como forma de escapar da punição, teriam feito entre si um pacto de confiança, dando ao grupo o nome PCC – Primeiro Comando da Capital, que era a denominação da equipe de futebol, composta por presos da capital, que disputava o jogo contra os presos do interior – “Comando Caipira”.

Foi, portanto, sob o signo da morte e da violência que a facção nasceu, embora seus componentes insistam em dizer até hoje que querem “combater a opressão dentro do sistema prisional paulista”.

Não há novidade nisso que acabei de escrever. Muitos e muitos artigos registram estes fatos. O livro “Cobras & Lagartos”, do jornalista Josmar Jozino, também registra estes e outros fatos sobre o PCC. Fátima de Souza, repórter policial atualmente trabalhando na Record, também divulga que lançará um livro, com o título “PCC, A Facção”, valorizando a obra com a afirmação de que teria sido a primeira a falar do PCC, em 1997. Em recente entrevista concedida ao “Observatório da Imprensa”, referida jornalista diz que:

“Pelo fato de eu ter sido a primeira a denunciar e a colocar no ar, eu passei a ser procurada pelos integrantes do PCC. Durante muitos anos eu falei com vários deles pelo telefone…” “… Tudo o que está lá é absolutamente verdadeiro, é absolutamente o que aconteceu, o que acontece. Ele é atual, vai até os ataques de maio. Aliás, até os ataques de maio, julho e agosto do ano passado (2006). Já estou escrevendo o segundo, porque o PCC, como eu previa, continua investindo. E tem material para o segundo livro” (“Observatório da Imprensa”, entrevista a Mauro Malin, em 12.01.2007).

*     *     *     *

O “Observatório da Imprensa” deveria ter analisado, sob o ponto de vista ético, a conduta de Fátima de Souza. “Durante muitos anos eu falei com vários deles por telefone”, foi o que ela disse. Trata-se de expressa confissão de participação em fato que configura grave irregularidade administrativa. Embora não seja crime possuir telefone celular em presídio, o fato é capitulado no Regimento Interno Padrão da Secretaria da Administração Penitenciária, como falta grave, sujeitando o preso à regressão de regime, com todas as suas conseqüências. A administração pública luta há muito tempo para extirpar esse mal do sistema penitenciário e até apresentou projeto no Congresso Nacional para tipificar como delito essa conduta (depois que escrito este capítulo, em 28.03.07, foi editada a Lei nº 11.466, transformando em crime o fato de possuir aparelho celular em presídio).

Apesar disso, a jornalista declara que “durante anos falou com presos por telefone”, como se fosse a coisa mais natural do mundo. É certo que a imprensa tem liberdade de informar e essa liberdade é uma das coisas mais importantes numa democracia. Sabendo que o uso do telefone celular é proibido nos presídios, um profissional da imprensa pode falar com presos que estão cometendo grave transgressão disciplinar?

Desconheço os limites da ética jornalística, mas, como cidadão, não consigo deixar de repelir uma conduta como essa. Se um jornalista não tem o dever de denunciar suas fontes, tem ao menos o dever – se não jurídico, ético — de buscar suas informações usando instrumentos não proibidos pelas normas administrativas.

*     *     *     *

Como dizia, muito já se escreveu e muito vai se escrever sobre o PCC. Da minha parte, quero registrar alguns fatos sobre pessoas envolvidas nessa organização criminosa, de pouco conhecimento público.

Dos oito “fundadores” do PCC há hoje apenas um vivo: José Márcio Felício, alcunhado “Geleião”. Eu o conheci durante uma audiência judicial no Fórum da Barra Funda, creio que em 2003, quando era testado um novo sistema de audiências com vídeo conferência. Depois que sua mulher foi presa, “Geleião” decidiu abandonar a facção e passou a testemunhar contra a organização.

A mulher de “Geleião”, Petronilha Maria de Carvalho Felício, tem uma história singular. Era viúva de um militar do Exército, de alta patente, e depois da morte do marido começou a fazer trabalhos assistenciais na cidade de Sorocaba. Consta que um padre teria convidado Petronilha para distribuir cestas básicas aos presos das penitenciárias daquela cidade. Durante as visitas conheceu José Márcio, apaixonou-se, renunciou à pensão que recebia do marido e casou-se oficialmente com ele, no interior do presídio.

Na matéria publicada pela revista “Época”, edição nº 255, de 05 de abril de 2003, consta que: “Petronilha testemunhou contra Rosângela Lendramandi, a Fia, uma mulher que subiu na organização por conta própria. Seu poder não emana do marido, Zampa, soldado raso. Ela conquistou seu naco por dedicada folha corrida aos donos do bando: administrava contas bancárias e coordenava a comunicação. Rosângela foi presa um dia depois de Petronilha denunciá-la como intermediária na ordem dada por Marcola para executar o juiz” (Antonio José Machado Dias, de Presidente Prudente) (…) “O motivo do assassinato, segundo Petronilha, foi um pedido de transferência recusado pelo juiz. Tinha sido feito um pedido e, se ele negasse, era para sentar o pau (matar). A ex-madrinha do PCC também contou que a organização sempre sonhou em matar o doutor Nagashi Furukawa, secretário da Administração Penitenciária de São Paulo”.

Sobre José Márcio Felício existem muitas histórias. Contam que foi abandonado, ainda bebê, dentro de uma caixa de cimento e que passou a maior parte da vida em prisão, tanto na Febem, como no sistema penitenciário. “Geleião” é um sujeito forte, alto, com mais de 100 quilos e dizem que tinha o costume de fazer mais de 2 mil flexões de braço por dia. Possui características de um líder nato e foi, durante bom tempo, o dirigente máximo do PCC. Nada era feito pela organização sem o seu aval.

Hélio Reis Soldá, que foi diretor-geral da Penitenciária de Presidente Bernardes na época em que “Geleião” passou por lá, conta uma história incrível e jura ser verdadeira: em certo domingo se realizava o jogo final do campeonato paulista de futebol: Corinthians e Palmeiras disputavam o título, com cerca de 90% dos presos torcendo pelo Corinthians. Ao final do jogo, ganhando o Corinthians, a penitenciária teria entrado em clima de festa. “Geleião”, palmeirense roxo, colou uma pequena bandeira verde, com cerca de 10×15 cm na porta da sua cela e ficou olhando para os corintianos com cara de quem não estava gostando. Em menos de 10 minutos — garante Hélio que é verdade — a penitenciária inteira ficou num silêncio sepulcral, recolhendo-se todos às celas.

Verdade ou exagero, muitas histórias cercam a vida desse preso. Numa audiência realizada no Fórum da Barra Funda, aquela do teste de vídeo conferência, ouvi seu depoimento. Estava lá para conferir a qualidade do equipamento que o Governo de São Paulo cogitava adquirir. A certa altura a magistrada que presidia o ato perguntou a “Geleião” se era verdadeira a acusação de que o PCC exercia poder de vida e de morte perante outros detentos. Diante da resposta positiva, a juíza continuou:

— “Consta aqui dos autos que um preso, conhecido por “Andinho” teve sua morte decretada por não cumprir uma determinação da facção. Isso é verdade”?

— Esse Andinho não é de nada. Só contribuía com dinheiro para o PCC. Nunca apitou nada. Um dia mandamos ele providenciar a fuga de um preso em Campinas e ele falhou. Daí decretei sua morte”.

— “Sim – disse a juíza – mas ele continua vivo”.

— “Acontece que ele pediu tantas desculpas pela falha, eu fiquei com dó e o anistiei” – foi a resposta, na maior naturalidade.

As pessoas presentes no Fórum se entreolharam, perplexas com a afirmação, mas, mais ainda, com a naturalidade do depoimento. Parecia mesmo uma pessoa que se sentia dona da vida e da morte, com poderes de matar, mandar matar, perdoar e anistiar.

Ao final da audiência, fui falar com ele na cela do Fórum. Aconselhei-o a abandonar de vez a vida do crime, do envolvimento em facções e que cumprisse a pena obedecendo às regras da lei. A dignidade no cumprimento dessa pena, dentro do possível, vou procurar assegurar – disse-lhe.

“Geleião” falou que iria me mandar uma carta contendo um pedido.

Hoje ele está ameaçado de morte pelos seus antigos companheiros do PCC e pelos inimigos de sempre das outras facções. Cumpre pena na Penitenciária de Oswaldo Cruz, unidade destinada a autores de crimes sexuais, onde tem certa garantia de que ninguém atentará contra sua vida.

De lá me enviou a carta, escrita de próprio punho, dizendo o seguinte:

“Senhor secretário,

Não estou escrevendo esta carta para justificar meus erros, porque não sou homem de não admitir aquilo que cometi.

Porém, o motivo desta é, sim, para expor realmente a verdade de todo esse caminho que trilhei. Não vou culpar a sociedade ou o sistema prisional, porque quando entrei neste mundo não podia esperar absolutamente nada das pessoas que dirigiam o sistema. Essas pessoas visavam apenas o metal, valorizando só suas contas bancárias. Nada era feito para melhorar o preso. Todos (…) só visavam interesses próprios. Conheci todos. Vários tramaram minha morte, porque eu tinha uma visão real das coisas que aconteciam. Nestes 25 anos de prisão meu único erro foi de confundir; de pensar que jamais haveria uma melhora nesta administração, porque eu mesmo não acreditava em nada.

O senhor não tem noção como realmente funcionava o sistema naquela época. Como as pessoas queriam de mim uma educação se eu vejo (…) montar uma facção criminosa como o CDL em Avaré para me matar? Outros que só praticavam o mal, me internando em Taubaté, porque eu sabia dos roubos que eram cometidos dentro da administração deles. Como eu podia me ressocializar, sabendo que meus educadores eram piores do que eu?

Errei sim, estou pagando e talvez pague com a vida todos os meus erros. Mas as pessoas da época erraram mais que eu e isso ninguém pode negar.

Por não acreditar que haveria melhora, eu cometi vários erros na administração do senhor. Não digo isso hoje porque estou nessa situação, não. Digo, simplesmente porque é verdade. Eu imaginava que esta secretaria jamais iria melhorar. Foi um engano meu e paguei por esse erro. Mas também não me arrependo, porque foi a única administração que me internou em castigo sem cometer abuso de poder, sem cometer injustiça. Fui porque mereci.

Agora, minhas outras internações em Taubaté, foi pelo simples fato de questionar na época porque (…) teria aceitado 500 mil do Abdiel Rabelo para deixar ele ir ao dentista lá fora e fugir. Eu não podia ter um dentista particular por falar a verdade.

Passei quatro anos sendo espancado, privado de tudo e perseguido por diversos diretores que hoje querem mostrar honestidade, mas que na época faziam parte da corrupção que existia.

Pergunto eu: como podia ver tudo isso e ficar quieto, se as próprias pessoas que dirigiam o sistema faziam de tudo e o preso tomava a culpa? – sendo espancado com cano de ferro para calar? Isso é certo?

Porém, acredito no ser humano, sei que hoje minha morte é questão de honra até por parte de certas autoridades. Mas isso são conseqüências da vida. Não estou aqui querendo culpar ninguém, mas também não sou culpado sozinho. Não quero jogar confete no senhor, porque esse não é meu feitio. Porém, sua administração foi e está sendo das melhores em todos os tempos. Só peço desculpas por não ter avaliado isso antes.

Por isso, peço que o senhor analise este pedido que segue junto com esta carta e me conceda a oportunidade de trilhar meu caminho em algum desses Estados citados neste ofício. Sinceramente, tenho essa opinião formada: se for para eu morrer nas mãos de presos, prefiro morrer nas mãos da polícia. Mas isso só Deus irá decidir.

Peço desculpas pelo desabafo e espero contar com o espírito de justiça do senhor.

Atenciosamente, eu interno

José M. Felício – matrícula 52.163”

 

Fiz a transcrição corrigindo alguns erros e procurando dar melhor compreensão ao texto, sem alterar a essência. Omiti os nomes mencionados na carta, porque não sei se as acusações são verdadeiras.

Após receber a carta enviei cópia às autoridades competentes para apuração das denúncias e consultei os secretários dos Estados para onde o preso queria transferência, sem obter resposta positiva.

Pelo teor da carta parece que “Geleião” está definitivamente fora da facção criminosa que ajudou a criar. Parece que deseja, sinceramente, cumprir corretamente o restante da pena distante de São Paulo. É o único fundador sobrevivente desse monstro em que se transformou o PCC. Nascido em 1993, a facção, 13 anos depois, em 2006, deu efetiva demonstração do tamanho que atingiu.

Ao longo desses 13 anos produziu uma história de mortes, de violência, de desgraças, tanto dentro, como fora das prisões. Não se sabe com exatidão qual o tamanho desse mostro. O diretor do Deic, em depoimento oficial na CPI do Tráfico de Armas disse que são 500 mil seus integrantes. Fátima de Souza, a jornalista que afirma ter sido a primeira a falar da facção, garante que são 130 mil. Não sei de onde saem esses números, mas creio que são do “achômetro”, esse instrumento comumente utilizado por muitas pessoas. No meu “achômetro”, dentro das penitenciárias de São Paulo não devem passar de 1% os presos efetivamente responsáveis pela organização, ou seja, cerca de 1.400 a 1.500. Embora muitos outros acabem participando das ações criminosas, o fazem mais por medo das ameaças e constrangimentos do que por outro motivo.

A verdade é que penitenciárias grandes, com mais de mil presos, não funcionam: são escolas, ou universidades do crime, para repetir o jargão. Não há condições materiais de o Estado evitar a cooptação dos mais fracos pelos mais fortes. É impossível controlar o que acontece atrás das grades, na calada da noite.

Imagine o leitor: se um dia tiver a infelicidade de ir parar numa prisão, será colocado em uma cela com 25 pessoas. Alguém daquele grupo já assumiu a liderança e você estará em um ambiente desconhecido, temido e hostil. Os demais presos estarão obedecendo às regras ditadas pelo líder e que lhe serão transmitidas na escuridão da noite, dentro da cela apertada. Uma dessas regras é a da proteção, sua e de sua família. Provavelmente cobrarão um depósito semanal ou mensal na conta de um desconhecido para que sua vida não fique pior do que já está. Exigirão participação nas ações da organização criminosa, sempre com ameaças. Preso pela primeira vez, no meio de pessoas que lhe parecem (e muitas vezes são) agressivas e perigosas, você dificilmente terá outra saída que não a de colaborar. E essa colaboração vai engordando os cofres e o número de adeptos dos criminosos, que se organizam cada vez mais. Contratam advogados e dão assistência aos que não podem pagar; socorrem os que não têm dinheiro para sustentar a família. Organizam e exploram o tráfico de entorpecentes e ganham cada vez mais dinheiro. Matam, ou mandam matar, os que denunciam ou recalcitram em obedecer às suas ordens.

É uma situação dramática. Principalmente nos Centros de Detenção Provisória e nas penitenciárias, onde há quase o dobro de presos em relação à capacidade, o controle é impossível. Para combater esse mal procurei humanizar as prisões, trabalhar pela soltura daqueles que não representam maior risco para a sociedade e tentei incutir na mente dos diretores e funcionários que a liderança nas unidades prisionais tinha que ser do Estado, por intermédio da firme atuação dos servidores. Esse trabalho de conscientização, porém, é de longo prazo e não traz resultado imediato. A superlotação dos presídios, em um Estado onde há aumento médio mensal de mais ou menos 900 presos, dificilmente terá solução em curto prazo.

Também tentamos mostrar aos líderes das facções criminosas que o Poder Público tinha resposta, dentro da Constituição e da Lei, para punir os que insistiam em subverter a ordem nas prisões. A criação do RDD durante algum tempo serviu de freio ao PCC e a outras facções criminosas. Na outra linha, ampliamos os Centros de Ressocialização e conseguimos mostrar que neles o crime organizado não tem êxito.

No entanto, os Centros de Ressocialização, unidades pequenas para criminosos de menor periculosidade, com capacidade média de 210 presos, não são suficientes para solucionar um problema com a magnitude do PCC. O RDD, enfraquecido pelas exigências burocráticas para sua aplicação, com o tempo está se mostrando insuficiente para combater com eficiência as organizações criminosas (nas conclusões destas minhas reflexões apresento algumas sugestões que podem ajudar a amenizar a situação).

Enquanto não se encontra uma solução razoável, vão surgindo mais e mais “geleiões”.

Pessoas que têm capacidade de liderar e que, ao invés de usar esse dom para vencer no caminho do bem, fazem opção pelo crime. Quando se arrependem, normalmente é tarde demais, não há como voltar.

Fica apenas o triste epílogo: “se for para eu morrer nas mãos dos presos, prefiro morrer nas mãos da polícia. Mas isso só Deus irá decidir”. Com esta frase o homem que se julgava com poder de Deus, para decretar a morte de companheiros e de anistiá-los, vive hoje seu drama final. Os outros sete, que com ele fundaram essa famigerada facção, estão todos prestando contas de seus atos perante o Criador. Seus sucessores, mais dia, menos dia, seguirão o mesmo caminho.

É pena que José Márcio Felício, o “Geleião”, não tenha sido capaz de perceber, enquanto ainda exercia liderança junto aos demais presos, que eventual mau exemplo por parte de servidores públicos que diz ter testemunhado, jamais poderia servir de desculpa para os delitos que praticou. Duvidou que pessoas decentes e honestas pudessem estar trabalhando, ou que viessem a trabalhar em seu favor e de seus companheiros. Tivesse percebido isso antes, talvez contribuísse para melhorar a realidade prisional de São Paulo, que ajudou a deteriorar.

Sua posição de hoje, embora tardia, quem sabe leve os líderes que o sucederam na facção a refletir melhor sobre o mal que estão fazendo aos companheiros presos e à sociedade brasileira.

*     *     *     *

* * * 17.02.2007 * * *