Análise

Os 30 anos do STJ – Principais precedentes que marcaram sua evolução

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Análise

Histórico

O surgimento do Tribunal da Cidadania

1- Breve histórico acerca do surgimento do Tribunal da Cidadania1

O Superior Tribunal de Justiça, criado pela Constituição da República de 1988 para ser o guardião do direito federal, uniformizando a interpretação da legislação infraconstitucional, funciona, na verdade, como o grande “Tribunal da Cidadania”. Instalado em 7 de abril de 1989, ano seguinte à promulgação da Carta, a criação do Superior Tribunal de Justiça foi precedida de amplo debate, especialmente sobre o funcionamento do Judiciário no Brasil.

Em boa medida, o STJ é um desmembramento do Supremo Tribunal Federal, assoberbado naquela virada da história (1988)2 com os recursos extraordinários que tanto controlavam a constitucionalidade das leis como realizavam a adequada interpretação do direito infraconstitucional, sem contar o restante de sua grande competência originária e o controle concentrado de constitucionalidade.

Releva mencionar – para se ter ideia de tempo acerca deste debate sobre o grande volume de recursos para o STF – o evento histórico ocorrido em 1965, convocado pelo Conselho Diretor do Instituto de Direito Público e Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas, consistente em mesa-redonda composta por ilustres juristas para discutir a “Reforma do Poder Judiciário” e, nesse âmbito, o debate acerca da viabilidade da criação de um Tribunal Superior, para julgar recursos extraordinários relativos ao direito federal comum.

A proposta então apresentada pelo professor Miguel Reale recebeu apoio unânime dos participantes. Concluídos os trabalhos, constou nos itens 9 e 10 do extenso relatório apresentado pelo grupo de juristas:

9 – Decidiu-se, sem maior dificuldade, pela criação de um novo tribunal. As divergências sobre a sua natureza e o número de tribunais que a princípio suscitaram debates, pouco a pouco, se encaminharam por uma solução que mereceu afinal o assentimento de todos. Seria criado um único tribunal que teria uma função eminente como instância federal sobre matéria que não tivesse, com especificidade, natureza constitucional, ao mesmo tempo que teria a tarefa de apreciar os mandados de segurança e habeas corpus originários, os contra atos de Ministros de Estado e os recursos ordinários das decisões denegatórias em última instância federal ou dos Estados. 10 – Assim também, os recursos extraordinários fundados exclusivamente na lei federal seriam encaminhados a esse novo Tribunal, aliviando o Supremo Tribunal de uma sobrecarga.”

Por outro lado, embora não tenha substituído o extinto Tribunal Federal de Recursos – que era a mais elevada instância do sistema de Justiça Federal –, sobretudo porque o Superior é nitidamente um Tribunal de Superposição, não há negar que seu surgimento sofreu influência daquele Tribunal (antigo TFR), cuja criação ocorreu com a Constituição Federal de 1946. É que, já em 1965, a Emenda Constitucional 16, 26 de novembro de 1965, introduziu alterações à Constituição, dispondo em seu art. 6º a nova composição do Poder Judiciário, constando, como órgãos daquele Poder, o Tribunal Federal de Recursos e Juízes Federais, além do Supremo Tribunal Federal, Tribunais e Juízes Militares, Eleitorais e do Trabalho.

Destarte, antes mesmo que fosse promulgada a Constituição Federal – em outubro de 1988 -, o Presidente do Tribunal Federal de Recursos editou o Ato 1.141, de 6 de setembro daquele ano, por meio do qual foram criadas, em caráter temporário, comissões incumbidas de apresentar estudos e sugestões para a implantação do Superior Tribunal de Justiça, bem como dos respectivos Tribunais Regionais Federais.

Até a efetiva instalação da nova Corte de sobreposição, o Supremo Tribunal Federal foi incumbido das atribuições e competências definidas na ordem constitucional precedente (art. 27, § 1º, do ADCT).

Nesse passo, nos termos do art. 27, I e II, da ADCT da CF/1988 e da Lei 7.746, de 3 de março de 1989 (art. 2º), ficou definido que a composição inicial do Superior Tribunal de Justiça seria integrada pelos Ministros do extinto Tribunal Federal de Recursos, observadas as classes de que provinham quando de sua nomeação, bem como pelos Ministros necessários para completar o número estabelecido (33 Ministros).

Em 10 de abril de 1989 entrou em vigor o Ato Regimental 1, elaborado pelos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, que tratou da organização do Superior Tribunal de Justiça; da competência do Plenário, da Corte Especial, das Seções e das Turmas; e do registro, classificação e distribuição dos feitos.

Em 14 de abril de 1989, a Resolução 1 dispôs sobre a estrutura organizacional do tribunal e o Regimento Interno foi aprovado em Sessão Plenária de 22 de junho de 1989.

Assim, com sede na Capital Federal e jurisdição em todo o território nacional, o Superior Tribunal de Justiça compõe-se de trinta e três ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, entre brasileiros com mais de 35 anos e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.

Ainda sobre a Corte de Vértice, Marinoni acrescenta que a posição do STJ “no sistema lhe confere a última palavra no que pertine à atribuição judicial de sentido ao direito federal”. Conclui que não é o caso de simplesmente dizer que os tribunais inferiores estão submetidos ao STJ, mas de perceber que os tribunais inferiores devem respeito ao direito delineado pela Corte que, no sistema judicial, exerce função de vértice (O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2014, p. 158).

Em 2004, após treze anos de tramitação no Congresso Nacional, a Emenda Constitucional 45 – conhecida como Reforma do Poder Judiciário – cuidou de alterar os artigos da Carta Magna, notadamente quanto ao procedimento de escolha dos integrantes do Superior Tribunal de Justiça, assim como às atribuições a eles conferidas pelo Constituinte, bem como mudanças referentes ao funcionamento do Tribunal.

Além disso, a EC 45/2004 trouxe modificações nas competências do Tribunal Superior do Trabalho, Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais Regionais Federais, da Justiça Militar e dos Tribunais de Justiça (Exposição de Motivos/MJ 204, publicada na p. 8 do Diário Oficial da União de 16.12.2004, Seção 1).

Em relação ao Superior Tribunal de Justiça, a redação do art. 104, anterior à reforma promovida pela EC 45/2004, previa maioria simples do Senado como quórum para aprovação do pretendente indicado ao cargo de Ministro. Após a emenda referida, assim como para escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, a maioria absoluta dos membros do Senado passou a ser exigida. Na verdade, a alteração operou verdadeira padronização no quórum de escolha para indicações de Ministros do STF, STJ, TST (art. 111-A) e Conselhos Nacional de Justiça (art. 103-B, § 2º) e do Ministério Público (art. 130-A), estes últimos criados pela emenda.

A partir da promulgação da EC 45, outras importantes inovações se verificaram, tais como a transferência de competência do STF para o STJ no tocante à homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias (art. 102, I, h (revogada) e 105, I, i, e art. 9º da EC 45/2004). O Superior Tribunal de Justiça, da mesma forma, assumiu o julgamento de atos de governos locais contestados diante de leis federais (art. 102, III, d, e 105, III, b). 

Houve, ainda, a criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), abrigada pelo STJ, responsável por regulamentar cursos oficiais para ingresso e promoção na carreira de juiz, entre outras funções.

O Conselho da Justiça Federal, que já era ligado ao STJ, teve suas atribuições ampliadas, pois, além da supervisão administrativa e orçamentária, assumiu também poderes correcionais de caráter vinculante (art. 105, parágrafo único, I e II).

Em se tratando de recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar a alegada violação legal, poderá aplicar “o direito à espécie, com observância da regra prevista no art. 10 do Código de Processo Civil” (art. 255, § 5º, do RISTJ). Ao contrário do que acontece em Cortes de Cassação puras (por exemplo, França, Itália e alguns outros países da Europa Continental), onde o Tribunal Superior – equivalente ao STJ –, em regra, apenas proscreve a decisão para que outra seja proferida novamente pela Corte da instância anterior, no Brasil o Superior Tribunal de Justiça pode, ao apreciar o recurso, desde logo aplicar a regra jurídica ao caso concreto.

A Súmula 456 do Supremo Tribunal Federal já preconizava: “O Supremo Tribunal Federal, conhecendo do recurso extraordinário, julgará a causa, aplicando o direito à espécie.”

Esse entendimento foi incorporado ao art. 1.034 do Novo CPC (Lei 13.105/2015), estabelecendo o caput que, “[a]dmitido o recurso extraordinário ou o recurso especial, o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça julgará o processo, aplicando o direito”.

2- Os trinta precedentes mais relevantes3

Com efeito, uma das melhores formas de revelar a história do Tribunal da Cidadania – que completa 30 anos – é revisitando o passado e procedendo a análise dos principais precedentes que marcaram sua evolução.

A difícil tarefa foi sistematizar e eleger um julgado de cada ano, desde sua criação, como aquele que teve maior repercussão.

O trabalho não foi simples, pois, além da leitura de farto e denso material, foi preciso também verificar o impacto das decisões na vida social, política, econômica e jurídica em relação aos acórdãos produzidos, assim também o interesse do público em acessos ao sítio eletrônico do Tribunal, além da recorrência de pesquisas em revistas especializadas.

Eis a seguir os julgados, a contar de 1989 – ano da instalação do Superior -, destacando-se o tema e o trecho principal da ementa.

2.1.

1989

TEMA: DISTINÇÃO ENTRE COMPANHEIRA E CONCUBINA

DIREITO CIVIL – SUCESSÃO – LEGADO – VALIDADE DE INSTITUIÇÃO DE LEGADO A COMPANHEIRA. DISTINÇÃO ENTRE COMPANHEIRA E CONCUBINA. INTELIGÊNCIA DO ART. 1719 DO CODIGO CIVIL.

REFLETINDO AS TRANSFORMAÇÕES VIVIDAS PELA SOCIEDADE DOS NOSSOS DIAS, IMPÕE-SE CONSTRUÇÃO JURISPRUDENCIAL A DISTINGUIR A COMPANHEIRA DA SIMPLES CONCUBINA, AMPLIANDO, INCLUSIVE COM SUPORTE NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL, A PROTEÇÃO A PRIMEIRA, AFASTANDO A SUA INCAPACIDADE PARA RECEBER LEGADO EM DISPOSIÇÃO DE ULTIMA VONTADE, EM EXEGESE RESTRITIVA DO ART. 1719, III, DO CODIGO CIVIL.

IMPENDE DAR A LEI, ESPECIALMENTE EM ALGUNS CAMPOS DO DIREITO, INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA, TELEOLÓGICA E ATUALIZADA.

(REsp 196/RS, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 08/08/1989, DJ 18/09/1989, p. 14664)

2.2.

1990

TEMA: CLÁUSULA DE ARBITRAGEM VÁLIDA, DESNECESSIDADE DO COMPROMISSO

CLÁUSULA DE ARBITRAGEM EM CONTRATO INTERNACIONAL. REGRAS DO PROTOCOLO DE GENEBRA DE 1923.

1. NOS CONTRATOS INTERNACIONAIS SUBMETIDOS AO PROTOCOLO, A CLÁUSULA ARBITRAL PRESCINDE DO ATO SUBSEQUENTE DO COMPROMISSO E, POR SI SO, É APTA A INSTITUIR O JUÍZO ARBITRAL.

2. ESSES CONTRATOS TÊM POR FIM ELIMINAR AS INCERTEZAS JURÍDICAS, DE MODO QUE OS FIGURANTES SE SUBMETEM, A RESPEITO DO DIREITO, PRETENSÃO, AÇÃO OU EXCEÇÃO, A DECISÃO DOS ÁRBITROS, APLICANDO-SE AOS MESMOS A REGRA DO ART. 244 DO CPC, SE A FINALIDADE FOR ATINGIDA.

3. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. DECISÃO POR MAIORIA.

(REsp 616/RJ, Rel. Ministro CLAUDIO SANTOS, Rel. p/ Acórdão Ministro GUEIROS LEITE, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/1990, DJ 13/08/1990, p. 7647)

2.3.

1991

TEMA: LIBERAÇÃO DE CRUZADOS NOVOS, NÃO RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DOS AGENTES BANCÁRIOS

PENAL. “HABEAS CORPUS”. CRUZADOS NOVOS. LIBERAÇÃO. COMPETÊNCIA PARA AUTORIZÁ-LA. ART. 9. DA LEI N. 8.024, DE 12/04/90.

TENDO O ART. 9º DA LEI 8.024, DE 12.04.90, CONFERIDO AO BANCO CENTRAL A CONDIÇÃO DE GUARDIÃO DOS CRUZADOS NOVOS BLOQUEADOS DOS TITULARES DE CONTAS BANCARIAS, NÃO SE PODE RESPONSABILIZAR OS DEMAIS ESTABELECIMENTOS, ATRAVÉS DE SEUS AGENTES, PELA FALTA DE LIBERAÇÃO DE QUALQUER QUANTIA DAS IMPORTANCIAS RETIDAS, PORQUANTO, “EX VI LEGIS”, TAL PROCEDIMENTO SOMENTE PODE OCORRER MEDIANTE EXPRESSA AUTORIZAÇÃO DO BANCO CENTRAL.

“HABEAS CORPUS” DEFERIDO.

(HC 605/SP, Rel. Ministro WILLIAM PATTERSON, SEXTA TURMA, julgado em 25/03/1991, DJ 29/04/1991, p. 5278)

2.4.

1992

TEMA: PRIMEIRO PEDIDO DE INTERVENÇÃO FEDERAL ACOLHIDO

INTERVENÇÃO FEDERAL. DESOBEDIÊNCIA DE GOVERNADOR DE ESTADO, EM PROMOVER APOIO A EXECUÇÃO DE DECISÃO JUDICIAL. HIPÓTESE DE INTERVENÇÃO AUTORIZADA PELO ART. 34, INC. VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. REQUISIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL, A REQUERIMENTO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO, POR TRATAR-SE DE MATERIA INFRACONSTITUCIONAL (ART. 19, INC. I, DA LEI N. 8.038/90). DECRETO DE INTERVENÇÃO QUE ESPECIFICARA A AMPLITUDE, PRAZO E CONDIÇÕES DE EXECUÇÃO (PAR. 1. DO ART. 36 DA CARTA MAGNA). DEMONSTRADO QUE O GOVERNADOR, AINDA QUE SEM O DELIBERADO PROPÓSITO DE NÃO ATENDER A DECISÃO JUDICIAL, VEM, NA VERDADE, OBSTANDO A SUA EXECUÇÃO, DESDE QUE TEM NEGADO AO JUIZ DE DIREITO O APOIO DA FORÇA POLICIAL, POR ELE REQUISITADA. HIPÓTESE EM QUE, POR SUA RECUSA, NÃO SE CUMPRIU A MEDIDA LIMINAR DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE, CONCEDIDA PARA GARANTIA DE PROPRIEDADE AGRÍCOLA, INVADIDA POR TERCEIROS, EM COMARCA DO INTERIOR DO ESTADO. SEM ÊXITO. AS GESTÕES ADMINISTRATIVAS DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, JUNTO AO GOVERNADOR, DELIBEROU A CORTE SOLICITAR INTERVENÇÃO FEDERAL, AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, EM APOIO A EXECUÇÃO DA ORDEM JUDICIAL, OBSTADA DESDE O FINAL DO ANO DE 1988. PEDIDO DE INTERVENÇÃO FEDERAL JULGADO PROCEDENTE.

(IF 1/PR, Rel. Ministro JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO FILHO, CORTE ESPECIAL, julgado em 11/06/1992, DJ 26/10/1992, p. 18990)

2.5.

1993

TEMA: DANO AMBIENTAL, RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO POLUIDOR

DANO ECOLÓGICO. REPARAÇÃO. ROMPIMENTO DE DUTO. POLUIÇÃO AMBIENTAL. ARTIGO 14, PARAGRAFO 1, DA LEI N. 6.938/81. COBRANÇA DAS DESPESAS FEITAS PELA COMPANHIA DE SANEAMENTO. PROCEDÊNCIA.

É O POLUIDOR OBRIGADO, INDEPENDENTEMENTE DE CULPA, A INDENIZAR OU REPARAR OS DANOS CAUSADOS AO MEIO AMBIENTE E A TERCEIROS, AFETADOS POR SUA ATIVIDADE.

TENDO A COMPANHIA DE SANEAMENTO, ENCARREGADA DE ZELAR PELO MEIO AMBIENTE E GUARDIÃ DE UM INTERESSE DIFUSO DA COMUNIDADE, TOMADO AS MEDIDAS NECESSÁRIAS PARA O COMBATE A POLUIÇÃO OCASIONADA PELO ROMPIMENTO DE UM DUTO, DEVE SER RESSARCIDA, COMO TERCEIRA, DAS DESPESAS CORRESPONDENTES.

(REsp 20.401/SP, Rel. Ministro HÉLIO MOSIMANN, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/12/1993, DJ 21/03/1994, p. 5467)

2.6.

1994

TEMA: SOCIEDADE DE FATO E PARTICIPAÇÃO INDIRETA DA COMPANHEIRA-PARTILHA DE BENS

DIREITO CIVIL. SOCIEDADE DE FATO. RECONHECIMENTO DE PARTICIPAÇÃO INDIRETA DA EX-COMPANHEIRA NA FORMAÇÃO DO PATRIMÔNIO ADQUIRIDO DURANTE A VIDA EM COMUM. PARTILHA PROPORCIONAL. CABIMENTO. PRÁTICA QUE NÃO AFEIÇOA A NOVA REALIDADE CONSTITUCIONAL. RECURSO DA AUTORA PARCIALMENTE ACOLHIDO, PREJUDICADO O DO REU.

I – CONSTATADA A CONTRIBUIÇÃO INDIRETA DA EX-COMPANHEIRA NA CONSTITUIÇÃO DO PATRIMÔNIO AMEALHADO DURANTE O PERIODO DE CONVIVÊNCIA “MORE UXORIO”, CONTRIBUIÇÃO CONSISTENTE NA REALIZAÇÃO DAS TAREFAS NECESSARIAS AO REGULAR GERENCIAMENTO DA CASA, AÍ INCLUÍDA A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DOMÉSTICOS, ADMISSÍVEL O RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE SOCIEDADE DE FATO E DO CONSEQUENTE DIREITO A PARTILHA PROPORCIONAL.

II – VERIFICANDO QUE HAJA SIDO SIGNIFICATIVA PARA A FORMAÇÃO DE TAL PATRIMÔNIO A DIMINUIÇÃO DE DESPESAS (ECONOMIA) PROPORCIONADA PELA EXECUÇÃO DAS ATIVIDADES DE CUNHO DOMÉSTICO PELA EX-COMPANHEIRA, HÁ QUE SE RECONHECER PATENTEADO O “ESFORÇO COMUM” A QUE ALUDE O ENUNCIADO N. 380 DA SUMULA/STF.

(REsp 38.657/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 22/03/1994, DJ 25/04/1994, p. 9260)

2.7.

1995

TEMA: ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL EM CONTRATO DE SEGURO

SEGURO. INADIMPLEMENTO DA SEGURADA. FALTA DE PAGAMENTO DA ÚLTIMA PRESTAÇÃO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. RESOLUÇÃO.

A COMPANHIA SEGURADORA NÃO PODE DAR POR EXTINTO O CONTRATO DE SEGURO, POR FALTA DE PAGAMENTO DA ÚLTIMA PRESTAÇÃO DO PRÊMIO, POR TRÊS RAZÕES: A) SEMPRE RECEBEU AS PRESTAÇÕES COM ATRASO, O QUE ESTAVA, ALIÁS, PREVISTO NO CONTRATO, SENDO INADMÍSSIVEL QUE APENAS REJEITE A PRESTAÇÃO QUANDO OCORRA O SINISTRO; B) A SEGURADORA CUMPRIU SUBSTANCIALMENTE COM A SUA OBRIGAÇÃO, NÃO SENDO A SUA FALTA SUFICIENTE PARA EXTINGUIR O CONTRATO; C) A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DEVE SER REQUERIDA EM JUÍZO, QUANDO SERÁ POSSIVEL AVALIAR A IMPORTÂNCIA DO INADIMPLEMENTO, SUFICIENTE PARA A EXTINÇÃO DO NEGOCIO.

RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

(REsp 76.362/MT, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 11/12/1995, DJ 01/04/1996, p. 9917)

2.8.

1996

TEMA: BEM DE FAMÍLIA – IMPENHORABILIDADE DE TELEVISÃO E MÓVEIS QUE INTEGRAM A RESIDÊNCIA

PROCESSUAL CIVIL. IMPENHORABILIDADE. APARELHO DE TELEVISÃO E MESA. LEI 8.009/90. INCIDÊNCIA. HERMENÊUTICA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

I – A LEI 8.009/90, AO DISPOR QUE OS EQUIPAMENTOS, INCLUSIVE MÓVEIS, QUE GUARNECEM A RESIDÊNCIA SÃO IMPENHORÁVEIS, NÃO ABARCA TÃO SOMENTE OS INDISPENSÁVEIS A MORADIA, MAS TAMBEM AQUELES QUE USUALMENTE INTEGRAM UMA RESIDÊNCIA, COMO GELADEIRA, MESA E TELEVISÃO, QUE NÃO SE QUALIFICAM COMO OBJETOS DE LUXO OU ADORNO.

II – AO JUIZ, EM SUA FUNÇÃO DE INTÉRPRETE E APLICADOR DA LEI, EM ATENÇÃO AOS FINS SOCIAIS A QUE ELA SE DIRIGE E AS EXIGÊNCIAS DO BEM COMUM, COMO ADMIRAVELMENTE ADVERTE O ART. 5. LICC, INCUMBE DAR-LHE EXEGESE CONSTRUTIVA E VALORATIVA, QUE SE AFEIÇOE AOS SEUS FINS TELEOLÓGICOS, SABIDO QUE ELA DEVE REFLETIR NÃO SÓ OS VALORES QUE A INSPIRAM, MAS TAMBÉM AS TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS E SOCIOPOLITICAS DA SOCIEDADE A QUE SE DESTINA.

(REsp 74.210/PR, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 19/03/1996, DJ 22/04/1996, p. 12577)

2.9.

1997

TEMA: ALIMENTOS – OBRIGAÇÃO AVOENGA

AÇÃO DE ALIMENTOS PROPOSTA POR NETO CONTRA OS AVÓS PATERNOS. EXCLUSÃO PRETENDIDA PELOS RÉUS SOB A ALEGAÇÃO DE QUE O PROGENITOR JA VEM CONTRIBUINDO COM UMA PENSÃO. ART. 397 DO CODIGO CIVIL.

O FATO DE O GENITOR JA VIR PRESTANDO ALIMENTOS AO FILHO NÃO IMPEDE QUE ESTE ÚLTIMO POSSA RECLAMÁ-LOS DOS AVÓS PATERNOS, DESDE QUE DEMONSTRADA A INSUFICIÊNCIA DO QUE RECEBE. A RESPONSABILIDADE DOS AVÓS NÃO É APENAS SUCESSIVA EM RELAÇÃO A RESPONSABILIDADE DOS PROGENITORES, MAS TAMBEM É COMPLEMENTAR PARA O CASO EM QUE OS PAIS NÃO SE ENCONTREM EM CONDIÇÕES DE ARCAR COM A TOTALIDADE DA PENSÃO, OSTENTANDO OS AVOS, DE SEU TURNO, POSSIBILIDADES FINANCEIRAS PARA TANTO. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.

(REsp 70.740/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 26/05/1997, DJ 25/08/1997, p. 39375)

2.10.

1998

TEMA: PROVA TESTEMUNHAL – SUPERAÇÃO DE PRECONCEITOS E VALIDADE DE DEPOIMENTOS

RESP – PROCESSO PENAL – TESTEMUNHA – HOMOSSEXUAL

A história das provas orais evidencia evolução, no sentido de superar preconceito com algumas pessoas. Durante muito tempo, recusou-se credibilidade ao escravo, estrangeiro, preso, prostituta. Projeção, sem dúvida, de distinção social. Os romanos distinguiam – patrícios e plebeus. A economia rural, entre o senhor do engenho e o cortador da cana, o proprietário da fazenda de café e quem se encarregasse da colheita.

Os Direitos Humanos buscam afastar distinção. O Poder Judiciário precisa ficar atento para não transformar essas distinções em coisa julgada. O requisito moderno para uma pessoa ser testemunha é não evidenciar interesse no desfecho do processo. Isenção, pois. O homossexual, nessa linha, não pode receber restrições. Tem o direito-dever de ser testemunha. E mais: sua palavra merecer o mesmo crédito do heterossexual. Assim se concretiza o princípio da igualdade, registrado na Constituição da República e no Pacto de San Jose de Costa Rica.

(REsp 154.857/DF, Rel. Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, SEXTA TURMA, julgado em 26/05/1998, DJ 26/10/1998, p. 169)

2.11.

1999

TEMA: PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL – DESCABIMENTO

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Prisão civil. Não cabe a prisão civil do devedor que descumpre contrato garantido por alienação fiduciária. Embargos acolhidos e providos.

(EREsp 149.518/GO, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, CORTE ESPECIAL, julgado em 05/05/1999, DJ 28/02/2000, p. 29)

2.12.

2000

TEMA: LEVANTAMENTO DE FGTS – POSSIBILIDADE EM CASO DE NECESSIDADE COMPROVADA, MESMO FORA DOS EXPRESSOS PARÂMETROS LEGAIS

FGTS. LEVANTAMENTO, TRATAMENTO DE FAMILIAR PORTADOR DO VÍRUS HIV. POSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

1. É possível o levantamento do FGTS para fins de tratamento de portador do vírus HIV, ainda que tal moléstia não se encontre elencada no artigo 20, XI, da Lei 8036/90, pois não se pode apegar, de forma rígida, à letra fria da lei, e sim considerá-la com temperamentos, tendo-se em vista a intenção do legislador, mormente perante o preceito maior insculpido na Constituição Federal garantidor do direito à saúde, à vida e a dignidade humana e, levando-se em conta o caráter social do Fundo que é, justamente, assegurar ao trabalhador o atendimento de suas necessidade básicas e de seus familiares.

2. Recurso Especial desprovido.

(REsp 249.026/PR, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/05/2000, DJ 26/06/2000, p. 138)

2.13.

2001

TEMA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DISPENSA DE PRÉ-CONSTITUIÇÃO DA ASSOCIAÇÃO AUTORA HÁ MAIS DE UM ANO, PRESENTE O INTERESSE SOCIAL. CORREÇÃO MONETÁRIA DE CADERNETA DE POUPANÇA

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE CADERNETA DE POUPANÇA. DEFESA DOS INTERESSES OU DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DISPENSA DE PRÉ-CONSTITUIÇÃO PELO MENOS HÁ UM ANO. IMPOSSIBILIDADE DA AÇÃO COLETIVA SUPERADA. LITISCONSÓRCIO ATIVO. ADMISSÃO.

– O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) é aplicável aos contratos firmados entre as instituições financeiras e seus clientes referentes à caderneta de poupança.

– Presente o interesse social pela dimensão do dano e sendo relevante o bem jurídico a ser protegido, como na hipótese, pode o juiz dispensar o requisito da pré-constituição superior a um ano, da associação autora da ação, de que trata o inciso III do parágrafo único do art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, que cuida da defesa coletiva dos interesses ou direitos individuais homogêneos.

– A inclusão de litisconsortes, na ação civil pública, segue as regras do Código de Processo Civil, sendo admitida, de regra, apenas em momento anterior à citação da ré. Na presente hipótese, contudo, constou expressamente da petição inicial o pedido de publicação do edital para a convocação dos interessados, o que somente se deu após a citação, por inércia do magistrado de primeiro grau. Não se pretendeu alterar o pedido ou a causa de pedir, sendo aberta vista à parte contrária, que teve a oportunidade de se manifestar sobre a petição e os documentos a ela acostados, de forma que não houve qualquer prejuízo para o exercício de sua ampla defesa, sendo-lhe assegurado o contraditório. Destarte, admissível, ante às peculiaridades do caso e apenas excepcionalmente, o litisconsórcio ativo após a citação.

– Recurso especial conhecido e provido.

(REsp 106.888/PR, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 28/03/2001, DJ 05/08/2002, p. 196)

2.14.

2002

TEMA: INFRAÇÃO DE TRÂNSITO – AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO – NECESSIDADE DE PRÉVIA NOTIFICAÇÃO DO APONTADO INFRATOR

ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. PENALIDADE. PRÉVIA NOTIFICAÇÃO. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA SÚMULA 127/STJ. O CÓDIGO DE TRÂNSITO IMPÔS MAIS DE UMA NOTIFICAÇÃO PARA CONSOLIDAR A MULTA. AFIRMAÇÃO DAS GARANTIAS PÉTREAS CONSTITUCIONAIS NO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO.

1. O sistema de imputação de sanção pelo Código de Trânsito Brasileiro (Lei n.º 9.503/97) prevê duas notificações a saber: a primeira referente ao cometimento da infração e a segunda inerente à penalidade aplicada, desde que superada a fase da defesa quanto ao cometimento, em si, do ilícito administrativo. Similitude com o processo judicial, por isso que ao imputado concede-se a garantia de defesa antes da imposição da sanção, sem prejuízo da possibilidade de revisão desta.

2. Nas infrações de trânsito, a análise da consistência do auto de infração à luz da defesa propiciada é premissa inafastável para a aplicação da penalidade e consectário da garantia da ampla defesa assegurada no inciso LV, do artigo 5º da CF, como decorrência do due process of law do direito anglo-norte-americano, hoje constitucionalizado na nossa Carta Maior.

3. A garantia da plena defesa implica a observância do rito, as cientificações necessárias, a oportunidade de objetar a acusação desde o seu nascedouro, a produção de provas, o acompanhamento do iter procedimental, bem como a utilização dos recursos cabíveis.

4. A Administração Pública, mesmo no exercício do seu poder de polícia e nas atividades self executing não pode impor aos administrados sanções que repercutam no seu patrimônio sem a preservação da ampla defesa, que in casu se opera pelas notificações apontadas no CTB.

5. Sobressai inequívoco do CTB (art. 280, caput) que à lavratura do auto de infração segue-se a primeira notificação in faciem (art. 280, VI) ou, se detectada a falta à distância, mediante comunicação documental (art. 281, parágrafo único, do CTB), ambas propiciadoras da primeira defesa, cuja previsão resta encartada no artigo 314, parágrafo único, do CTB em consonância com as Resoluções 568/80 e 829/92 (art. 2º e 1º, respectivamente, do CONTRAN).

6. Superada a fase acima e concluindo-se nesse estágio do procedimento pela imputação da sanção, nova notificação deve ser expedida para satisfação da contraprestação ao cometimento do ilícito administrativo ou oferecimento de recurso (art. 282, do CTB). Nessa última hipótese, a instância administrativa somente se encerra nos termos dos artigos 288 e 290, do CTB.

7. Revelando-se procedente a imputação da penalidade, após obedecido o devido processo legal, a autoridade administrativa recolherá, sob o pálio da legalidade a famigerada multa pretendida abocanhar açodadamente.

8. A sistemática ora entrevista coaduna-se com a jurisprudência do E. STJ e do E. STF as quais, malgrado admitam à administração anular os seus atos, impõe-lhe a obediência ao princípio do devido processo legal quando a atividade repercuta no patrimônio do administrado.

9. No mesmo sentido é a ratio essendi da Súmula 127, do STJ que inibe condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento da multa, da qual o infrator não foi notificado.

10. Recurso especial desprovido.

(REsp 426.084/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/11/2002, DJ 02/12/2002, p. 242)

2.15.

2003

TEMA: REAJUSTE DE CLÁUSULA CONTRATUAL COM BASE EM MOEDA ESTRANGEIRA. VALIDADE, MAS COM RECONHECIMENTO DE ONEROSIDADE EXCESSIVA. ÍNDICE DE REAJUSTE REPARTIDO.

CIVIL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. CONTRATO COM CLÁUSULA DE REAJUSTE PELA VARIAÇÃO CAMBIAL. VALIDADE. ELEVAÇÃO ACENTUADA DA COTAÇÃO DA MOEDA NORTE-AMERICANA. FATO NOVO. ONEROSIDADE EXCESSIVA AO CONSUMIDOR. REPARTIÇÃO DOS ÔNUS. LEI N. 8.880/94, ART. 6º. CDC, ART. 6º, V.

I. Não é nula cláusula de contrato de arrendamento mercantil que prevê reajuste das prestações com base na variação da cotação de moeda estrangeira, eis que expressamente autorizada em norma legal específica (art. 6º da Lei n. 8.880/94).

II. Admissível, contudo, a incidência da Lei n. 8.078/90, nos termos do art. 6º, V, quando verificada, em razão de fato superveniente ao pacto celebrado, consubstanciado, no caso, por aumento repentino e substancialmente elevado do dólar, situação de onerosidade excessiva para o consumidor que tomou o financiamento.

III. Índice de reajuste repartido, a partir de 19.01.99 inclusive, equitativamente, pela metade, entre as partes contratantes, mantida a higidez legal da cláusula, decotado, tão somente, o excesso que tornava insuportável ao devedor o adimplemento da obrigação, evitando-se, de outro lado, a total transferência dos ônus ao credor, igualmente prejudicado pelo fato econômico ocorrido e também alheio à sua vontade.

IV. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(REsp 472.594/SP, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, Rel. p/ Acórdão Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 12/02/2003, DJ 04/08/2003, p. 217 – JULGADO NA MESMA SESSÃO: REsp 473.140/SP)

2.16.

2004

TEMA: INDENIZAÇÃO PARA DISSIDENTE POLÍTICO. FALECIMENTO E SEPULTAMENTO NÃO COMUNICADO A FAMÍLIA.

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO CONFIGURADA. LITISCONSÓRCIO ATIVO FACULTATIVO. INDENIZAÇÃO. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. REGIME MILITAR. DISSIDENTE POLÍTICO PROCURADO NA ÉPOCA DO REGIME MILITAR. FALTA DE REGISTRO DE ÓBITO E NÃO COMUNICAÇÃO À FAMÍLIA. DANO MORAL. FATO NOTÓRIO. NEXO CAUSAL. PRESCRIÇÃO.

1. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o Tribunal de origem, embora sucintamente, pronuncia-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos autos. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão.

2. Havendo similitude dos fundamentos de fato e de direito em relação a cada autor, admite-se a formação do litisconsórcio facultativo, que possui como corolário os princípios da efetividade e economia processuais que devem sempre nortear a atividade jurisdicional, permitindo que, num único processo e através de sentença una, possa o juiz prover sobre várias relações, aumentando a efetividade da função jurisdicional.

3. Nas hipóteses de pedido de indenização, por danos morais, o litisconsórcio é facultativo. Precedentes jurisprudenciais desta Corte.

4. Prova inequívoca da perseguição política à vítima e de imposição, por via oblíqua, de sobrevivência clandestina, atentando contra a dignidade da pessoa humana, acrescido do sepultamento irregular do irmão do autor, com indiferença aos sentimentos familiares.

5. Prescrição. Inocorrência. A indenização pretendida tem amparo constitucional no art. 8º, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Precedentes.

6. Deveras, a tortura e morte são os mais expressivos atentados à dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

7. Sob esse ângulo, dispõe a Constituição Federal: “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana;” “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes; (…) III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;”

8. Destarte, o egrégio STF assentou que: “…o delito de tortura – por comportar formas múltiplas de execução – caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade. – A norma inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete – enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva – um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo.” (HC 70.389/SP, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, DJ 10/08/2001)

9. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento.

10. Consectariamente, não há falar em prescrição da ação que visa implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade.

11. Outrossim, a Lei 9.140/95, que criou as ações correspondentes às violações à dignidade humana, perpetradas em período de supressão das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem estipular-lhe prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do Código Civil no afã de superar a reparação de atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada no respeito à integridade física do ser humano.

12. Adjuntem-se à lei interna, as inúmeras convenções internacionais firmadas pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal da ONU, e demais convenções específicas sobre a tortura, tais como a Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU, a Convenção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

13. A dignidade humana violentada, in casu, decorreu do sepultamento do irmão da parte, realizado sem qualquer comunicação à família ou assentamento do óbito, gerando aflição ao autor e demais familiares, os quais desconheciam o paradeiro e destino do irmão e filho, gerando suspeitas de que, por motivos políticos, poderia estar sendo torturado- revelando flagrante atentado ao mais elementar dos direitos humanos, os quais, segundo os tratadistas, são inatos, universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis.

14. Inequívoco que a morte do irmão do autor não foi oficialmente informada à família, nem houve qualquer tipo de registro ou identificação da sepultura.

15. O Decreto 4857, de 09 de novembro de 1939, determinava que ‘nenhum enterramento será feito sem certidão de oficial de registro do lugar do falecimento, extraída após a lavratura do assento de óbito (…)’ – art. 88. Prossegue impondo a incumbência de fazer a declaração de óbito aos familiares e, na falta de pessoa competente, a que tiver assistido aos últimos momentos do finado; e, por último, incumbe à autoridade policial a obrigação de fazê-lo em relação às pessoas encontradas mortas – art. 90, §§ 5° e 6°. Ainda dispõe, no art. 91 que o assento de óbito deverá conter, além de todas as circunstâncias da morte e qualificação da pessoa, o lugar do sepultamento. Dispunha, também, o artigo 84 que o registro de óbito deveria ser feito dentro do prazo de vinte e quatro’ horas.
16. Logo, cabia à autoridade policial a obrigação, por lei, de fazer a declaração de óbito, não fosse por terem assistido aos últimos momentos de vida, por saberem-no morto, pois comprovadamente as forças militares tinham conhecimento de que se tratava de Arno Preis (fI. 32).

17. A exigibilidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. 18. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual.

19. O egrégio STJ, em oportunidades ímpares de criação jurisprudencial, vaticinou:

“RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRISÃO, TORTURA E MORTE DO PAI E MARIDO DAS RECORRIDAS. REGIME MILITAR. ALEGADA PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. LEI N. 9.140/95. RECONHECIMENTO OFICIAL DO FALECIMENTO, PELA COMISSÃO ESPECIAL DE DESAPARECIDOS POLÍTICOS, EM 1996. DIES A QUO PARA A CONTAGEM DO PRAZO PRESCRICIONAL. A Lei n. 9.140, de 04.12.95, reabriu o prazo para investigação, e conseqüente reconhecimento de mortes decorrentes de perseguição política no período de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de 1998, para possibilitar tanto os registros de óbito dessas pessoas como as indenizações para reparar os danos causados pelo Estado às pessoas perseguidas, ou ao seu cônjuge, companheiro ou companheira, descendentes, ascendentes ou colaterais até o quarto grau. omissis …em se tratando de lesão à integridade física, deve-se entender que esse direito é imprescritível, pois não há confundi-lo com seus efeitos patrimoniais reflexos e dependentes. “O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática” (REsp n. 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, in DJ de 17.02.2003). Recurso especial não conhecido.” (REsp 449.000/PE, 2ª T., Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 3/06/2003)

20. Recurso especial da União parcialmente provido, apenas, para afastar a indenização de despesas de guarda do túmulo, mantida a indenização pelo dano moral, repartindo-se o valor da indenização, na liquidação de sentença, na forma do art. 10 da Lei nº 9.140/95.

(REsp 612.108/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/09/2004, DJ 03/11/2004, p. 147)

2.17.

2005

TEMA: CRIME AMBIENTAL PRATICADO POR PESSOA JURÍDICA

CRIMINAL. RESP. CRIME AMBIENTAL PRATICADO POR PESSOA JURÍDICA. RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DO ENTE COLETIVO. POSSIBILIDADE. PREVISÃO CONSTITUCIONAL REGULAMENTADA POR LEI FEDERAL. OPÇÃO POLÍTICA DO LEGISLADOR. FORMA DE PREVENÇÃO DE DANOS AO MEIO-AMBIENTE. CAPACIDADE DE AÇÃO. EXISTÊNCIA JURÍDICA. ATUAÇÃO DOS ADMINISTRADORES EM NOME E PROVEITO DA PESSOA JURÍDICA. CULPABILIDADE COMO RESPONSABILIDADE SOCIAL. CO-RESPONSABILIDADE. PENAS ADAPTADAS À NATUREZA JURÍDICA DO ENTE COLETIVO. ACUSAÇÃO ISOLADA DO ENTE COLETIVO. IMPOSSIBILIDADE. ATUAÇÃO DOS ADMINISTRADORES EM NOME E PROVEITO DA PESSOA JURÍDICA. DEMONSTRAÇÃO NECESSÁRIA. DENÚNCIA INEPTA. RECURSO DESPROVIDO.

I. A Lei ambiental, regulamentando preceito constitucional, passou a prever, de forma inequívoca, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao meio-ambiente.

III. A responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio-ambiente, mas como forma mesmo de prevenção geral e especial.

IV. A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta incapacidade de praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerem penalidades.

V. Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores, poderá vir a praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal.

VI. A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica, neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito.

VII. A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral.

VIII. “De qualquer modo, a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou indiretamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado.”.

IX. A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica, todas adaptadas à sua natureza jurídica.

X. Não há ofensa ao princípio constitucional de que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado…”, pois é incontroversa a existência de duas pessoas distintas: uma física – que de qualquer forma contribui para a prática do delito – e uma jurídica, cada qual recebendo a punição de forma individualizada, decorrente de sua atividade lesiva.

XI. Há legitimidade da pessoa jurídica para figurar no pólo passivo da relação processual-penal.

XII. Hipótese em que pessoa jurídica de direito privado foi denunciada isoladamente por crime ambiental porque, em decorrência de lançamento de elementos residuais nos mananciais dos Rios do Carmo e Mossoró, foram constatadas, em extensão aproximada de 5 quilômetros, a salinização de suas águas, bem como a degradação das respectivas faunas e floras aquáticas e silvestres.

XIII. A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral.

XIV. A atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a própria vontade da empresa.
XV. A ausência de identificação das pessoa físicas que, atuando em nome e proveito da pessoa jurídica, participaram do evento delituoso, inviabiliza o recebimento da exordial acusatória.
XVI. Recurso desprovido.

(REsp 610.114/RN, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 17/11/2005, DJ 19/12/2005, p. 463)

2.18.

2006

TEMA: INDENIZAÇÃO CONTRA O ESTADO EM RAZÃO DE PRISÃO ILEGAL

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DECORRENTE DE ATOS PRATICADOS PELO PODER JUDICIÁRIO. MANUTENÇÃO DE CIDADÃO EM CÁRCERE POR APROXIMADAMENTE TREZE ANOS (DE 27/09/1985 A 25/08/1998) À MINGUA DE CONDENAÇÃO EM PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE OU PROCEDIMENTO CRIMINAL, QUE JUSTIFICASSE O DETIMENTO EM CADEIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO. ATENTADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

1. Ação de indenização ajuizada em face do Estado, objetivando o recebimento de indenização por danos materiais e morais decorrentes da ilegal manutenção do autor em cárcere por quase 13 (treze) anos ininterruptos, de 27/09/1985 a 25/08/1998, em cadeia do Sistema Penitenciário Estadual, onde contraiu doença pulmonar grave (tuberculose), além de ter perdido a visão dos dois olhos durante uma rebelião.

2. A Constituição da República Federativa do Brasil, de índole pós-positivista e fundamento de todo o ordenamento jurídico expressa como vontade popular que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana como instrumento realizador de seu ideário de construção de uma sociedade justa e solidária.

3. Consectariamente, a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurídico, por isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva operar a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido normativo-constitucional, que suscita a reflexão axiológica do resultado judicial.

4. Direitos fundamentais emergentes desse comando maior erigido à categoria de princípio e de norma superior estão enunciados no art. 5.º da Carta Magna, e dentre outros, os que interessam o caso sub judice destacam-se: XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; (…) LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (…) LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (…) LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; (…) LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

5. A plêiade dessas garantias revela inequívoca transgressão aos mais comezinhos deveres estatais, consistente em manter-se, sem o devido processo legal, um ser humano por quase 13 (treze) anos consecutivos preso, por força de inquérito policial inconcluso, sendo certo que, em razão do encarceramento ilegal, contraiu o autor doenças, como a tuberculose, e a cegueira.

6. Inequívoca a responsabilidade estatal, quer à luz da legislação infraconstitucional (art. 159 do Código Civil vigente à época da demanda) quer à luz do art. 37 da CF/1988, escorreita a imputação dos danos materiais e morais cumulados, cuja juridicidade é atestada por esta Eg. Corte (Súmula 37/STJ)

7. Nada obstante, o Eg. Superior Tribunal de Justiça invade a seara da fixação do dano moral para ajustá-lo à sua ratio essendi, qual a da exemplariedade e da solidariedade, considerando os consectários econômicos, as potencialidades da vítima, etc, para que a indenização não resulte em soma desproporcional.

8. In casu, foi conferida ao autor a indenização de R$ 156.000,00 (cento e cinqüenta e seis mil reais) de danos materiais e R$ 1.844.000,00 (um milhão, oitocentos e quarenta e quatro mil reais) de danos morais.

9. Fixada a gravidade do fato, a indenização imaterial revela-se justa, tanto mais que o processo revela o mais grave atentado à dignidade humana, revelado através da via judicial.

10. Deveras, a dignidade humana retrata-se, na visão Kantiana, na autodeterminação; na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivência sadia. É de se indagar, qual a aptidão de um cidadão para o exercício de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi uma “morte em vida”, que se caracterizou pela supressão ilegítima de sua liberdade, de sua integridade moral e física e de sua inteireza humana?

11. Anote-se, ademais, retratar a lide um dos mais expressivos atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana. Sob esse enfoque temos assentado que “a exigibilidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que ‘todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos’. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual”. (REsp 612.108/PR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJ 03.11.2004) 12. Recurso Especial desprovido.

(REsp 802.435/PE, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/10/2006, DJ 30/10/2006, p. 253)

2.19.

2007

TEMA: CONVENÇÃO DE HAIA – CRIANÇA RESIDENTE NO BRASIL COM PAI AMERICANO E MÃE BRASILEIRA

Direito processual civil. Busca e apreensão de menor. Pai americano. Mãe brasileira. Criança na companhia da mãe, no Brasil. Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças. Situação consolidada. Risco de danos psíquicos e emocionais se houver retorno da criança ao país de origem (Estados Unidos).

– Não se conhece do recurso especial na parte em que fundamentado em temas não apreciados pelo Tribunal estadual, o qual adotou premissa diversa da pretendida pela parte.

– Deve-se levar em consideração, em processos de busca e apreensão de menor, a condição peculiar da criança como pessoa em desenvolvimento, sob os contornos constitucionais, no sentido de que os interesses e direitos do menor devem sobrepor-se a qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado.

-Este processo não busca definir a guarda do menor; apenas busca decidir a respeito do retorno da criança para a residência de onde foi transferida, no caso, Estado de Nova Jersey, Estados Unidos da América.

– A Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças possui o viés do interesse prevalente do menor, porquanto foi concebida para proteger crianças de condutas ilícitas.

– Seguindo a linha de proteção maior ao interesse da criança, a Convenção delimitou as hipóteses de retorno ao país de origem, mesmo diante da conduta ilícita do genitor em poder do menor, com exceções como as existentes nos arts. 12 e 13 do referido diploma legal.

– Assim, quando for provado, como o foi neste processo, que a criança já se encontra integrada no seu novo meio, a autoridade judicial ou administrativa respectiva não deve ordenar o retorno da criança (art. 12), bem assim, se existir risco de a criança, em seu retorno, ficar sujeita a danos de ordem psíquica (art. 13, alínea “b”), como concluiu o acórdão recorrido, tudo isso tomando na mais alta consideração o interesse maior da criança.

– Com tal delineamento fático dado ao processo, a questão se encontra solvida, porquanto é vedado nesta via o revolvimento do conjunto de fatos e provas apresentados pelas partes, tendo em vista que esta Corte toma em consideração os fatos tais como descritos pelo Tribunal de origem.

Recurso especial não conhecido, por maioria.

(REsp 900.262/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/06/2007, DJ 08/11/2007, p. 226)

2.20.

2008

TEMA: EXIBIÇÃO DE DOCUMENTO – FALTA DE INTERESSE DE AGIR – PRIMEIRO REPETITIVO JULGADO

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CAUTELAR DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTO. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE PARTICIPAÇÃO FINANCEIRA. FORNECIMENTO DE DOCUMENTOS COM DADOS SOCIETÁRIOS. RECUSA. RECURSO À COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. LEI N. 6.404/1976, ART. 100, § 1º. AUSÊNCIA DO COMPROVANTE DE RECOLHIMENTO DA “TAXA DE SERVIÇO”. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. LEI N. 11.672/2008. RESOLUÇÃO/STJ N. 8, DE 07.08.2008. APLICAÇÃO.

I. Falta ao autor interesse de agir para a ação em que postula a obtenção de documentos com dados societários, se não logra demonstrar: a) haver apresentado requerimento formal à ré nesse sentido; b) o pagamento pelo custo do serviço respectivo, quando a empresa lhe exigir, legitimamente respaldada no art. 100, parágrafo, 1º da Lei 6.404/1976.

II. Julgamento afetado à 2a. Seção com base no Procedimento da Lei n. 11.672/2008 e Resolução/STJ n. 8/2008 (Lei de Recursos Repetitivos).

III. Recurso especial não conhecido.

(REsp 982.133/RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/09/2008, DJe 22/09/2008 – PRIMEIRO REPETITIVO JULGADO)

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ALÉM DESTE PRIMEIRO REPETITIVO, É BASTANTE RELEVANTE MENCIONAR PRECEDENTE SOBRE INDENIZAÇÃO EM RAZÃO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

ADMINISTRATIVO, CIVIL E PROCESSO CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 535, II; 515, § 3º; 165, 333 E 458, II, TODOS DO CPC, BEM COMO DOS ARTS. 93, IX, E 5º, LV, DA CF – “CAUSA MADURA” PARA O JULGAMENTO DA APELAÇÃO – AUSÊNCIA DE SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA – ACÓRDÃO QUE ENCAMPA, IPSIS LITERIS, O PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO – POSSIBILIDADE, NO CASO – NULIDADE DO ACÓRDÃO POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO PARA A CONFIGURAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA UNIÃO E RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ESTADO DE SANTA CATARINA – PRESCRIÇÃO – DECRETO N. 20.910/32 – DISCUSSÃO SOBRE PRESCRIÇÃO DE PRETENSÃO DE COMPENSAÇÃO POR VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – TORTURA DE CIDADÃO BRASILEIRO DE ASCENDÊNCIA ALEMÃ POR “POLICIAIS DA FARDA AMARELA” DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, EM 1942 – RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELAS PERSEGUIÇÕES POLÍTICAS, PRISÕES, TORTURA, LOUCURA E SUICÍDIO DO CIDADÃO, EM DECORRÊNCIA DE TAIS ATOS – RECURSO ESPECIAL ADESIVO DOS PARTICULARES – PRETENSÃO DE VALORAÇÃO DO ARBITRAMENTO DOS DANOS MORAIS ACIMA DO ARBITRADO NA SEGUNDA INSTÂNCIA (R$ 500.000,00).

1. Não-existência de violação do art. 535, II, do CPC. Apesar de o acórdão embargado ter encampado o que registrou o parecer do Ministério Público Federal, exarado na segunda instância, frisou que esta era, na integralidade, a conclusão adotada.

2. Muito embora seja o parecer ministerial peça meramente informativa, pode levar o julgador a adotá-la como parâmetro, desde que o faça motivadamente. Na esteira de alguns precedentes do STJ, “não se constitui em nulidade o Relator do acórdão adotar as razões de decidir do parecer ministerial que, suficientemente motivado, analisa toda a tese defensiva.” (HC 40.874/DF, Relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 18.4.2006, DJ 15.5.2006 p. 244.)

3. Alegada violação do art. 515, § 3º, do CPC. O caso dos autos amolda-se ao conceito de “causa madura” trazida pela doutrina e jurisprudência, uma vez que o Tribunal a quo, ao estabelecer que não eram as rés partes ilegítimas, adentrou desde logo no mérito da questão, pois toda a instrução probatória já se fazia presente nos autos, bem como assim lhe permitia o art. 515, § 3º, do CPC.

4. O art. 515, § 3º, do CPC deve ser lido à luz do disposto no art. 330, I, do mesmo diploma, que trata do julgamento imediato do mérito. Poderá o Tribunal (assim como o juiz de primeiro grau poderia) pronunciar-se desde logo sobre o mérito se as questões de mérito forem exclusivamente de direito ou, sendo de fato e de direito, não houver necessidade de produção de novas provas. Entendimento doutrinário e jurisprudencial.

5. Questão federal relativa à prescrição da pretensão para a compensação por danos morais e materiais por violação de direitos da personalidade. Doutrina e jurisprudência. Alegação da União de que deve ser aplicado o lustro prescricional do art. 1º do Decreto n. 20.910/32, pois a Lei n. 9.140/95 só se aplica aos fatos ocorridos entre 2.9.1961 a 5.10.1988, sendo que os fatos retratados nos autos ocorreram entre 1940-1943.

6. Danos morais. Imprescritibilidade. Tortura, racismo e outros vilipêndios à dignidade da pessoa humana. Possível, no caso, a aplicação da mais conhecida norma sobre a proteção aos direitos da personalidade, qual seja, a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que também possibilita sua aplicação a fatos pretéritos, escrita com os bradados dos ideais democráticos e que nunca podem ser esquecidos.

7. Referida declaração é a referência brasileira mais próxima de condenação à tortura. Mas não é só ela que deve ser lembrada. Além do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, também incorporado ao nosso ordenamento jurídico, é preciso ainda levar em conta mais três importantíssimos documentos internacionais: (I) Declaração sobre a Proteção de todas as pessoas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, de 9.12.1975; (II) Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, de 10.12.1984, da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil com o Decreto n. 40, de 15.2.1991; e (III) Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 9.12.1985, da OEA, ratificada pelo Brasil com o Decreto n. 98.386, de 9.11.1989.

8. Além da tortura, ocorreu racismo, crime que a própria Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, XLII, considera imprescritível. A Lei n. 7.716/85, com a redação dada pela Lei n.

9.459/97 (art. 20), tipifica o crime de racismo como “induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou procedência nacional”.

9. Para reconhecer de vez a não-existência da prescrição da pretensão indenizatória, basta verificar que a então autora desta demanda, mãe dos ora recorrentes e esposa do Sr. Antônio Kliemann, viveu desde a época dos fatos (1942-1944) até 1985 (fim da Ditadura e abertura política para a democratização (Diretas Já!), período de completa supressão de direitos e garantias constitucionais, tendo sido reconhecido no acórdão recorrido que tinha receio naquela época de represálias do Governo Federal, bem como de ser deportada, máxime quando passou a viger o Ato Institucional n. 05, que possibilitava, inclusive, retirar do Poder Judiciário a apreciação de qualquer alegação de violação de direitos.

10. Pretensão para a compensação por danos morais em razão de acontecimentos que maculam tão vastamente os direitos da personalidade, como a tortura e a morte, é imprescritível.

11. Danos materiais. “Saliente-se, no entanto, quanto aos danos patrimoniais, que os efeitos meramente patrimoniais do direito devem sempre observar o lustro prescricional do Decreto n. 20.910/32, pois não faz sentido que o erário público fique sempre com a espada de Damocles sobre a cabeça e sujeito a indenizações ou pagamentos de qualquer outra espécie por prazo demasiadamente longo. Daí porque, quando se reconhece direito deste jaez, ressalva-se que quaisquer parcelas condenatórias referentes aos danos patrimoniais só deverão correr nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação” (REsp 475.625/PR, Rel. p/ Acórdão Ministro Franciulli Netto, DJ 20.3.2006). No mesmo sentido: REsp 1002009/PE, Rel. Ministro Humberto Martins, DJ 21.2.2008.

12. Mesmo levando-se em conta o lustro anterior ao ajuizamento da ação, ou seja, o período compreendido entre 9.1.1996 e 9.1.2001, prescritas estão as pretensões dos efeitos patrimoniais da demanda, pois nada nesse período era devido, tendo em vista que a autora já tinha conhecimento dos fatos já no advento da Constituição Federal de 1988, como está assentado na instância ordinária, soberana na análise das provas. Assim, mesmo tomando-se como termo inicial a promulgação da Constituição Federal de 1988, prescrita já está a pretensão de reparação de danos materiais.

13. Acolhimento da prescrição da pretensão de reparação por danos materiais.

14. Recurso especial adesivo. Conhecimento. Possibilidade de o STJ “analisar o arbitramento da compensação por danos morais quando o valor fixado destoa daqueles estipulados em outros julgados recentes deste Tribunal, observadas as peculiaridades de cada litígio”.

15. Acórdão recorrido que, diante de tão graves violações dos direitos da personalidade do marido da autora e da própria autora e filhos, fixou os danos morais em R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).

16. Análise de mais de dez casos recentes da jurisprudência do STJ com resultado morte, todos com valores inferiores a quinhentos mil reais, com condenações entre trezentos e quinhentos salários mínimos.

17. Razoabilidade do valor arbitrado no caso dos autos, bem acima dos precedentes do STJ, tendo em vista as gravíssimas e reiteradas violações dos direitos da personalidade do Sr. Antônio Kliemann, esposa e filhos.

Recurso especial da União parcialmente provido, para reconhecer a prescrição da parcela referente aos danos materiais.

Recurso especial adesivo dos particulares improvido.

(REsp 797.989/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/04/2008, DJe 15/05/2008)

2.21.

2009

TEMA: DEFINIÇÃO DA CORTE ESPECIAL SOBRE O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO. EXIGÊNCIA DE DELITO ANTERIOR.

PENAL. LAVAGEM DE DINHEIRO. CONDUTAS DE OCULTAR OU DISSIMULAR. NECESSIDADE. CRIME DERIVADO, ACESSÓRIO OU PARASITÁRIO. EXIGÊNCIA DE DELITO ANTERIOR. PUNIÇÕES AUTÔNOMAS. EXISTÊNCIA DE CONCURSO DE CRIMES. CONFIGURAÇÃO DE CRIME ANTECEDENTE. DESNECESSIDADE DE PARTICIPAÇÃO. PRECEDENTES. JURISDIÇÃO PENAL E PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. AUSÊNCIA DE VINCULAÇÃO. EMPRÉSTIMO DE REGRESSO. DENÚNCIA RECEBIDA.

I – O mero proveito econômico do produto do crime não configura lavagem de dinheiro, que requer a prática das condutas de ocultar ou dissimular. Assim, não há que se falar em lavagem de dinheiro se, com o produto do crime, o agente se limita a depositar o dinheiro em conta de sua própria titularidade, paga contas ou consome os valores em viagens ou restaurantes.

II – No caso dos autos, entretanto, os valores foram alcançados ao suposto prestador de serviços de advocacia e, depois, foram simuladamente emprestados a empresas de titularidade de um dos denunciados. Sendo assim, a ocultação da origem reside exatamente na simulação do empréstimo, que não seria verdadeiro, porque, na verdade, o dinheiro já pertenceria, desde o início, ao denunciado, responsável pela venda da decisão judicial, com a colaboração do outro denunciado.

III – Não há que se falar em pós-fato impunível, mas em condutas autônomas, caracterizadoras de lavagem de dinheiro, por ter o agente alcançado as vantagens que perseguia com o cometimento do crime.

Isso porque, conforme entendimento doutrinário, a lavagem de dinheiro, assim como a receptação é, por definição um crime derivado, acessório ou parasitário, pressupõe a ocorrência de um delito anterior.

IV- É próprio da lavagem de dinheiro, como também da receptação (Código Penal, art. 180) e do favorecimento real (Código Penal, art.

349), que estejam consubstanciados em atos que garantam ou levem ao proveito do resultado do crime anterior, mas recebam punição autônoma.

V – Conforme a opção do legislador brasileiro, pode o autor do crime antecedente, responder por lavagem de dinheiro, dada à diversidade dos bens jurídicos atingidos e à autonomia deste delito.

VI – Induvidosa, na presente hipótese, a existência de crime antecedente, uma vez que os ora denunciados foram condenados, por este Superior Tribunal, pela prática do delito de corrupção passiva, no julgamento da APN 224/SP. Caracterizada a ocorrência do crime antecedente (Lei 9.613/98, art. 1º, V), nomeadamente a corrupção passiva (Código Penal, art. 317, § 1º), bem como o recebimento de vantagem material daí decorrente.

VII – O fato de um dos ora denunciados não haver sido denunciado pelo crime antecedente é irrelevante para a responsabilização por lavagem de dinheiro. Conforme orientação deste Superior Tribunal de Justiça, a participação no crime antecedente não é indispensável à adequação da conduta de quem oculta ou dissimula a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes direta ou indiretamente, de crime, ao tipo do art. 1º, da Lei 9.613/98. Precedentes.

VIII – A jurisdição penal não está vinculada a eventual resultado do processo administrativo fiscal, o que somente se dá no âmbito dos crimes contra a ordem tributária, mas não na lavagem de dinheiro. Precedente.

IX – Tendo em vista o grau de abertura do tipo penal e as grandes variações na forma de execução, bem como o fato de não estar o conhecimento ainda consolidado, os organismos internacionais têm trabalhado com a identificação de tipologias, de formas comuns de ocorrência de lavagem de dinheiro.

X – Entre as tipologias comuns de lavagem uma é justamente a do chamado empréstimo de regresso ou retro-empréstimo, em que o dinheiro alegadamente emprestado já pertence ao tomador, havendo simulação de empréstimo por parte de empresa ou pessoa interposta para o lavador, dando aparência de licitude ao dinheiro que, desde o início, já lhe pertencia.

XI – Esse método, comumente referido na literatura sobre lavagem de dinheiro, apresenta diversas variantes, dentre as quais a entrega de determinado bem em garantia ou em dação de pagamento, como no caso dos autos, em que há indícios no sentido de que o empréstimo foi simulado, tendo servido a aquisição de imóvel apenas para dar a aparência de liquidação de um negócio jurídico destinado a tornar lícito o valor supostamente recebido a título de empréstimo.

XII – Com o investimento no empreendimento imobiliário e a conversão dos valores oriundos da vantagem indevida paga ao funcionário público em razão da prática de ato de ofício, fechou-se o ciclo da lavagem de dinheiro.

XIII – Para efeito de recebimento da denúncia, são suficientes os indícios coligidos nos presentes autos, aliados à inverossimilhança da justificativa dada por um dos denunciados.

XIV – Denúncia recebida.

(APn 458/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, Rel. p/ Acórdão Ministro GILSON DIPP, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/09/2009, DJe 18/12/2009)

2.22.

2010

TEMA: INTERNET E RESPONSABILIDADE DE PROVEDORES

DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE CONTEÚDO. FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA.

1. A exploração comercial da internet sujeita as relações de consumo daí advindas à Lei nº 8.078/90.

2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo “mediante remuneração” contido no art. 3º, § 2º, do CDC deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor.

3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos.

4. O dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/02.

5. Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada.

6. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo.

7. Ainda que não exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo, que registra o número de protocolo na internet (IP) dos computadores utilizados para o cadastramento de cada conta, mantém um meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de internet.

8. Recurso especial a que se nega provimento.

(REsp 1.193.764/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/12/2010, DJe 08/08/2011)

2.23.

2011

TEMA: CASAMENTO CIVIL ENTRE HOMOAFETIVOS

DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA A QUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ E DA ADI N. 4.277/DF.

1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam “de costas” para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita.

2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.

3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado “família”, recebendo todos eles a “especial proteção do Estado”. Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento – diferentemente do que ocorria com os diplomas superados – deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.

4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição – explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF – impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos.

5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a “especial proteção do Estado”, e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família.

6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os “arranjos” familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.

7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união.

8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar.

9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo “democraticamente” decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário – e não o Legislativo – que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.

10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é “democrático” formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis.

11. Recurso especial provido.

(REsp 1.183.378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012)

2.24.

2012

TEMA: OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA

DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO E RECONVENÇÃO. JULGAMENTO REALIZADO POR UMA ÚNICA SENTENÇA. RECURSO DE APELAÇÃO NÃO CONHECIDO EM PARTE. EXIGÊNCIA DE DUPLO PREPARO. LEGISLAÇÃO LOCAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 280/STF. AÇÃO DE COBRANÇA AJUIZADA PELO FORNECEDOR. VÍCIO DO PRODUTO. MANIFESTAÇÃO FORA DO PRAZO DE GARANTIA. VÍCIO OCULTO RELATIVO À FABRICAÇÃO. CONSTATAÇÃO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. EXEGESE DO ART. 26, § 3º, DO CDC.

(…) 3. No mérito da causa, cuida-se de ação de cobrança ajuizada por vendedor de máquina agrícola, pleiteando os custos com o reparo do produto vendido. O Tribunal a quo manteve a sentença de improcedência do pedido deduzido pelo ora recorrente, porquanto reconheceu sua responsabilidade pelo vício que inquinava o produto adquirido pelo recorrido, tendo sido comprovado que se tratava de defeito de fabricação e que era ele oculto. Com efeito, a conclusão a que chegou o acórdão, sobre se tratar de vício oculto de fabricação, não se desfaz sem a reapreciação do conjunto fático-probatório, providência vedada pela Súmula 7/STJ. Não fosse por isso, o ônus da prova quanto à natureza do vício era mesmo do ora recorrente, seja porque é autor da demanda (art. 333, inciso I, do CPC) seja porque se trata de relação de consumo, militando em benefício do consumidor eventual déficit em matéria probatória.

4. O prazo de decadência para a reclamação de defeitos surgidos no produto não se confunde com o prazo de garantia pela qualidade do produto – a qual pode ser convencional ou, em algumas situações, legal. O Código de Defesa do Consumidor não traz, exatamente, no art. 26, um prazo de garantia legal para o fornecedor responder pelos vícios do produto. Há apenas um prazo para que, tornando-se aparente o defeito, possa o consumidor reclamar a reparação, de modo que, se este realizar tal providência dentro do prazo legal de decadência, ainda é preciso saber se o fornecedor é ou não responsável pela reparação do vício.

5. Por óbvio, o fornecedor não está, ad aeternum, responsável pelos produtos colocados em circulação, mas sua responsabilidade não se limita pura e simplesmente ao prazo contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio. Deve ser considerada para a aferição da responsabilidade do fornecedor a natureza do vício que inquinou o produto, mesmo que tenha ele se manifestado somente ao término da garantia.

6. Os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto. Depois desse prazo, tolera-se que, em virtude do uso ordinário do produto, algum desgaste possa mesmo surgir. Coisa diversa é o vício intrínseco do produto existente desde sempre, mas que somente veio a se manifestar depois de expirada a garantia. Nessa categoria de vício intrínseco certamente se inserem os defeitos de fabricação relativos a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, os quais, em não raras vezes, somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de uso, mas que, todavia, não decorrem diretamente da fruição do bem, e sim de uma característica oculta que esteve latente até então.

7. Cuidando-se de vício aparente, é certo que o consumidor deve exigir a reparação no prazo de noventa dias, em se tratando de produtos duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva do bem e não fluindo o citado prazo durante a garantia contratual.

Porém, conforme assevera a doutrina consumerista, o Código de Defesa do Consumidor, no § 3º do art. 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual.

8. Com efeito, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem.

9. Ademais, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo. 10. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, não provido.

(REsp 984.106/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/10/2012, DJe 20/11/2012)

2.25.

2013

TEMA: DIREITO AO ESQUECIMENTO

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO TRANSVERSAL. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DOCUMENTÁRIO EXIBIDO EM REDE NACIONAL. LINHA DIRETA-JUSTIÇA. HOMICÍDIO DE REPERCUSSÃO NACIONAL OCORRIDO NO ANO DE 1958. CASO “AIDA CURI”. VEICULAÇÃO, MEIO SÉCULO DEPOIS DO FATO, DO NOME E IMAGEM DA VÍTIMA. NÃO CONSENTIMENTO DOS FAMILIARES. DIREITO AO ESQUECIMENTO. ACOLHIMENTO. NÃO APLICAÇÃO NO CASO CONCRETO. RECONHECIMENTO DA HISTORICIDADE DO FATO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. IMPOSSIBILIDADE DE DESVINCULAÇÃO DO NOME DA VÍTIMA. ADEMAIS, INEXISTÊNCIA, NO CASO CONCRETO, DE DANO MORAL INDENIZÁVEL. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE IMAGEM. SÚMULA N. 403/STJ. NÃO INCIDÊNCIA.

1. Avulta a responsabilidade do Superior Tribunal de Justiça em demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não são apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal.

2. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo o entendimento dos autores, reabriu antigas feridas já superadas quanto à morte de sua irmã, Aida Curi, no distante ano de 1958.

Buscam a proclamação do seu direito ao esquecimento, de não ter revivida, contra a vontade deles, a dor antes experimentada por ocasião da morte de Aida Curi, assim também pela publicidade conferida ao caso décadas passadas.

3. Assim como os condenados que cumpriram pena e os absolvidos que se envolveram em processo-crime (REsp. n. 1.334/097/RJ), as vítimas de crimes e seus familiares têm direito ao esquecimento – se assim desejarem -, direito esse consistente em não se submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram, por si, inesquecíveis feridas. Caso contrário, chegar-se-ia à antipática e desumana solução de reconhecer esse direito ao ofensor (que está relacionado com sua ressocialização) e retirá-lo dos ofendidos, permitindo que os canais de informação se enriqueçam mediante a indefinida exploração das desgraças privadas pelas quais passaram.

4. Não obstante isso, assim como o direito ao esquecimento do ofensor – condenado e já penalizado – deve ser ponderado pela questão da historicidade do fato narrado, assim também o direito dos ofendidos deve observar esse mesmo parâmetro. Em um crime de repercussão nacional, a vítima – por torpeza do destino – frequentemente se torna elemento indissociável do delito, circunstância que, na generalidade das vezes, inviabiliza a narrativa do crime caso se pretenda omitir a figura do ofendido.

5. Com efeito, o direito ao esquecimento que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi.

6. É evidente ser possível, caso a caso, a ponderação acerca de como o crime tornou-se histórico, podendo o julgador reconhecer que, desde sempre, o que houve foi uma exacerbada exploração midiática, e permitir novamente essa exploração significaria conformar-se com um segundo abuso só porque o primeiro já ocorrera.

Porém, no caso em exame, não ficou reconhecida essa artificiosidade ou o abuso antecedente na cobertura do crime, inserindo-se, portanto, nas exceções decorrentes da ampla publicidade a que podem se sujeitar alguns delitos.

7. Não fosse por isso, o reconhecimento, em tese, de um direito de esquecimento não conduz necessariamente ao dever de indenizar. Em matéria de responsabilidade civil, a violação de direitos encontra-se na seara da ilicitude, cuja existência não dispensa também a ocorrência de dano, com nexo causal, para chegar-se, finalmente, ao dever de indenizar. No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um “direito ao esquecimento”, na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes.

8. A reportagem contra a qual se insurgiram os autores foi ao ar 50 (cinquenta) anos depois da morte de Aida Curi, circunstância da qual se conclui não ter havido abalo moral apto a gerar responsabilidade civil. Nesse particular, fazendo-se a indispensável ponderação de valores, o acolhimento do direito ao esquecimento, no caso, com a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela lembrança.

9. Por outro lado, mostra-se inaplicável, no caso concreto, a Súmula n. 403/STJ. As instâncias ordinárias reconheceram que a imagem da falecida não foi utilizada de forma degradante ou desrespeitosa. Ademais, segundo a moldura fática traçada nas instâncias ordinárias – assim também ao que alegam os próprios recorrentes -, não se vislumbra o uso comercial indevido da imagem da falecida, com os contornos que tem dado a jurisprudência para franquear a via da indenização.

10. Recurso especial não provido.

(REsp 1335153/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013)

2.26.

2014

 

TEMA: CAMPEONATO BRASILEIRO DE FUTEBOL. IMPOSSIBILIDADE DE DOIS VENCEDORES.

PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇA. COISA JULGADA MATERIAL. PRESERVAÇÃO. RESOLUÇÃO DA CBF – CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE DESPORTOS ESTABELECENDO DOIS CAMPEÕES PARA O CAMPEONATO BRASILEIRO DE FUTEBOL PROFISSIONAL DE 1987 – DESOBEDIÊNCIA À COISA JULGADA MATERIAL DE AÇÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO – NULIDADE DA RESOLUÇÃO PROCLAMADA EM CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – JULGAMENTO CONFIRMADO.

1.- Diante da coisa julgada material, em processo judicial da Justiça Comum, declarando o clube Campeão Brasileiro de Futebol Profissional, inadmissível a revisão ulteriormente, muitos anos após, do resultado, por Resolução da entidade patrocinadora do Campeonato, no caso a Confederação Brasileira de Futebol, declarando dois campeões de aludido certame.

2.- Autoridade da coisa julgada material, que se produzem para o futuro, não podendo ser  alterada por ato unilateral consistente na Resolução de uma das partes do processo.

3.- A provocação no sentido do respeito à coisa julgada material pode realizar-se por qualquer forma de manifestação nos autos, não se inviabilizando pelo fato da utilização do instrumento processual do cumprimento da sentença, visto que, a rigor, já tinha, a parte vencida, o dever de respeitar a coisa julgada.

4.- Respeito à coisa julgada, que se reveste de especial relevância como efeito pedagógico para toda a sociedade, como elemento essencial à ordem jurídica e componente do próprio Estado de Direito, especialmente em matéria de grande repercussão social, como a esportiva.

5.- Recurso Especial improvido, mantido o julgamento do Tribunal de origem.

(REsp 1.417.617/PE, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/04/2014, DJe 30/09/2014)

2.27.

2015

TEMA: CRIME DE TRÂNSITO, PERIGO ABSTRATO. RECURSO REPETITIVO NO ÂMBITO PENAL

RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO DE ACORDO COM O ART. 543-C. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. CRIME DE TRÂNSITO. ART. 310 DO CTB. BEM JURÍDICO. SEGURANÇA DO TRÂNSITO. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. DESNECESSIDADE DE LESÃO OU EXPOSIÇÃO A PERIGO DE DANO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. Recurso especial processado de acordo com o regime previsto no art. 543-C, § 2º, do CPC, c/c o art. 3º do CPP, e na Resolução n. 8/2008 do STJ. TESE: É de perigo abstrato o crime previsto no art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro. Assim, não é exigível, para o aperfeiçoamento do crime, a ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na conduta de quem permite, confia ou entrega a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou ainda a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança.

2. Embora seja legítimo aspirar a um Direito Penal de mínima intervenção, não pode a dogmática penal descurar de seu objetivo de proteger bens jurídicos de reconhecido relevo, assim entendidos, na dicção de Claus Roxin, como “interesses humanos necessitados de proteção penal”, qual a segurança do tráfego viário.

3. Não se pode, assim, esperar a concretização de danos, ou exigir a demonstração de riscos concretos, a terceiros, para a punição de condutas que, a priori, representam potencial produção de danos a pessoas indeterminadas, que trafeguem ou caminhem no espaço público.

4. Na dicção de autorizada doutrina, o art. 310 do CTB, mais do que tipificar uma conduta idônea a lesionar, estabelece um dever de garante ao possuidor do veículo automotor. Neste caso estabelece-se um dever de não permitir, confiar ou entregar a direção de um automóvel a determinadas pessoas, indicadas no tipo penal, com ou sem habilitação, com problemas psíquicos ou físicos, ou embriagadas, ante o perigo geral que encerra a condução de um veículo nessas condições.

5. Recurso especial provido.

(REsp 1485830/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/03/2015, DJe 29/05/2015)

2.28.

2016

TEMA: DOIS PRECEDENTES SOBRE A OPERAÇÃO LAVA-JATO: A) PRISÃO PREVENTIVA E QUEBRA DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA; B) ACESSO AO CONTEÚDO DE MENSAGENS ARQUIVADAS NO APARELHO CELULAR APREENDIDO. LICITUDE DA PROVA.

PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO “LAVA-JATO”. PRISÃO PREVENTIVA. ALEGAÇÃO DE INIDONEIDADE DA FUNDAMENTAÇÃO DO DECRETO PRISIONAL. QUEBRA DO ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA E RISCO À APLICAÇÃO DA LEI PENAL. FUNDAMENTOS VÁLIDOS A AMPARAR A SEGREGAÇÃO CAUTELAR. RECURSO DESPROVIDO.

I – Não há óbice em se decretar a prisão preventiva no ensejo da prolação de sentença condenatória, quando presentes os requisitos legais. Possibilidade que ressai evidente do art. 387, par. 1º, do Código de Processo Penal.

II – A existência de dados concretos, relacionados ao comportamento pretérito do acusado, somado à sua disponibilidade de recursos financeiros, são hábeis a revelar que a sua colocação em liberdade implicaria em riscos para a aplicação da lei penal, por isso que viabilizada a prisão preventiva sob este fundamento, máxime se decretada na sentença condenatória.

III – A quebra das obrigações assumidas pelo acusado-colaborador, em si mesma, não faz despontar os requisitos da prisão preventiva, quando estes, em nenhum momento precedente, fizeram-se presentes, nos casos em que o acordo celebrou-se com réu que ostentava a condição de liberdade.

IV – Hipótese diversa, em que a celebração do acordo de colaboração premiada houve de ensejar a concessão da liberdade provisória a acusado que se encontrava preso, fundada numa inequívoca expectativa de que dar-se-ia escorreito o cumprimento do acordado.

V – No âmbito do acordo de colaboração premiada, conforme delineado pela legislação brasileira, não é lícita a inclusão de cláusulas concernentes às medidas cautelares de cunho pessoal, e, portanto, não é a partir dos termos do acordo que se cogitará da concessão ou não de liberdade provisória ao acusado que, ao celebrá-lo, encontre-se preso preventivamente. Segundo a dicção do art. 4º, da Lei 12850/2013, a extensão do acordo de colaboração limita-se a aspectos relacionados com a imposição de pena futura, isto é, alude-se à matéria situada no campo do direito material, e não do processo.

VI – Nos casos em que a liberação do acusado derivou da expectativa fundada de que, com o acordo, haveria de prestar a colaboração a que se incumbiu, não se exclui, verificadas as particularidades da situação, possa-se restabelecer a segregação cautelar.

VII – Será de avaliar-se, em cada caso, a extensão do olvido com que se houve o colaborador, frente aos termos do acordo, porquanto não é apenas a circunstância de seu descumprimento que determinará a retomada da prisão preventiva, quando essa foi afastada à conta de sua celebração.

VIII – Nos casos em que a intensidade do descumprimento do acordo de colaboração mostrar-se relevante, a frustração da expectativa gerada com o comportamento tíbio do colaborador permite o revigoramento da segregação cautelar, mormente quando seu precedente afastamento deu-se pelo só fato da promessa homologada de colaboração.

Recurso ordinário desprovido.

(RHC 76.026/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2016, DJe 11/10/2016)

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PROCESSUAL PENAL. OPERAÇÃO “LAVA-JATO”. MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO. APREENSÃO DE APARELHOS DE TELEFONE CELULAR. LEI 9296/96. OFENSA AO ART. 5º, XII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INOCORRÊNCIA. DECISÃO FUNDAMENTADA QUE NÃO SE SUBORDINA AOS DITAMES DA LEI 9296/96. ACESSO AO CONTEÚDO DE MENSAGENS ARQUIVADAS NO APARELHO. POSSIBILIDADE. LICITUDE DA PROVA. RECURSO DESPROVIDO.

I – A obtenção do conteúdo de conversas e mensagens armazenadas em aparelho de telefone celular ou smartphones não se subordina aos ditames da Lei 9296/96.

II – O acesso ao conteúdo armazenado em telefone celular ou smartphone, quando determinada judicialmente a busca e apreensão destes aparelhos, não ofende o art. 5º, inciso XII, da Constituição da República, porquanto o sigilo a que se refere o aludido preceito constitucional é em relação à interceptação telefônica ou telemática propriamente dita, ou seja, é da comunicação de dados, e não dos dados em si mesmos.

III – Não há nulidade quando a decisão que determina a busca e apreensão está suficientemente fundamentada, como ocorre na espécie.

IV – Na pressuposição da ordem de apreensão de aparelho celular ou smartphone está o acesso aos dados que neles estejam armazenados, sob pena de a busca e apreensão resultar em medida írrita, dado que o aparelho desprovido de conteúdo simplesmente não ostenta virtualidade de ser utilizado como prova criminal.

V – Hipótese em que, demais disso, a decisão judicial expressamente determinou o acesso aos dados armazenados nos aparelhos eventualmente apreendidos, robustecendo o alvitre quanto à licitude da prova.

Recurso desprovido.

(RHC 75.800/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 15/09/2016, DJe 26/09/2016)

2.29.

2017

TEMA: CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO – TRANSEXUAL

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO PARA A TROCA DE PRENOME E DO SEXO (GÊNERO) MASCULINO PARA O FEMININO. PESSOA TRANSEXUAL. DESNECESSIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO.

1. À luz do disposto nos artigos 55, 57 e 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), infere-se que o princípio da imutabilidade do nome, conquanto de ordem pública, pode ser mitigado quando sobressair o interesse individual ou o benefício social da alteração, o que reclama, em todo caso, autorização judicial, devidamente motivada, após audiência do Ministério Público.

2. Nessa perspectiva, observada a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, admite-se a mudança do nome ensejador de situação vexatória ou degradação social ao indivíduo, como ocorre com aqueles cujos prenomes são notoriamente enquadrados como pertencentes ao gênero masculino ou ao gênero feminino, mas que possuem aparência física e fenótipo comportamental em total desconformidade com o disposto no ato registral.

3. Contudo, em se tratando de pessoas transexuais, a mera alteração do prenome não alcança o escopo protetivo encartado na norma jurídica infralegal, além de descurar da imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que traduz a máxima antiutilitarista segundo a qual cada ser humano deve ser compreendido como um fim em si mesmo e não como um meio para a realização de finalidades alheias ou de metas coletivas.

4. Isso porque, se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade.

5. Assim, a segurança jurídica pretendida com a individualização da pessoa perante a família e a sociedade – ratio essendi do registro público, norteado pelos princípios da publicidade e da veracidade registral – deve ser compatibilizada com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que constitui vetor interpretativo de toda a ordem jurídico-constitucional.

6. Nessa compreensão, o STJ, ao apreciar casos de transexuais submetidos a cirurgias de transgenitalização, já vinha permitindo a alteração do nome e do sexo/gênero no registro civil (REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15.10.2009, DJe 18.11.2009; e REsp 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.11.2009, DJe 18.12.2009).

7. A citada jurisprudência deve evoluir para alcançar também os transexuais não operados, conferindo-se, assim, a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças.

8. Tal valor (e princípio normativo) supremo envolve um complexo de direitos e deveres fundamentais de todas as dimensões que protegem o indivíduo de qualquer tratamento degradante ou desumano, garantindo-lhe condições existenciais mínimas para uma vida digna e preservando-lhe a individualidade e a autonomia contra qualquer tipo de interferência estatal ou de terceiros (eficácias vertical e horizontal dos direitos fundamentais).

9. Sob essa ótica, devem ser resguardados os direitos fundamentais das pessoas transexuais não operadas à identidade (tratamento social de acordo com sua identidade de gênero), à liberdade de desenvolvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independentemente da realização de procedimentos médicos), à intimidade e à privacidade (proteção das escolhas de vida), à igualdade e à não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venham a colocá-los em situação de inferioridade), à saúde (garantia do bem-estar biopsicofísico) e à felicidade (bem-estar geral).

10. Consequentemente, à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direito dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitos inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico.

11. Ademais, o chamado sexo jurídico (aquele constante no registro civil de nascimento, atribuído, na primeira infância, com base no aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico) não pode olvidar o aspecto psicossocial defluente da identidade de gênero autodefinido por cada indivíduo, o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é o critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade.

12. Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito.

13. Recurso especial provido a fim de julgar integralmente procedente a pretensão deduzida na inicial, autorizando a retificação do registro civil da autora, no qual deve ser averbado, além do prenome indicado, o sexo/gênero feminino, assinalada a existência de determinação judicial, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se a publicidade dos registros e a intimidade da autora.

(REsp 1.626.739/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 09/05/2017, DJe 01/08/2017)

2.30.

2018

TEMA: ROMPIMENTO DE VÍNCULO ENTRE O NOME E O RESULTADO DE BUSCA NA INTERNET – DESINDEXAÇÃO

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. 1. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. AUSÊNCIA. 2. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO CONFIGURADO. 3. PROVEDOR DE APLICAÇÃO DE PESQUISA NA INTERNET. PROTEÇÃO A DADOS PESSOAIS. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. DESVINCULAÇÃO ENTRE NOME E RESULTADO DE PESQUISA. PECULIARIDADES FÁTICAS. CONCILIAÇÃO ENTRE O DIREITO INDIVIDUAL E O DIREITO COLETIVO À INFORMAÇÃO. 4. MULTA DIÁRIA APLICADA. VALOR INICIAL EXORBITANTE. REVISÃO EXCEPCIONAL. 5. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.

1. Debate-se a possibilidade de se determinar o rompimento do vínculo estabelecido por provedores de aplicação de busca na internet entre o nome do prejudicado, utilizado como critério exclusivo de busca, e a notícia apontada nos resultados.

2. O Tribunal de origem enfrentou todas as questões postas pelas partes, decidindo nos estritos limites da demanda e declinando, de forma expressa e coerente, todos os fundamentos que formaram o livre convencimento do Juízo.

3. A jurisprudência desta Corte Superior tem entendimento reiterado no sentido de afastar a responsabilidade de buscadores da internet pelos resultados de busca apresentados, reconhecendo a impossibilidade de lhe atribuir a função de censor e impondo ao prejudicado o direcionamento de sua pretensão contra os provedores de conteúdo, responsáveis pela disponibilização do conteúdo indevido na internet. Precedentes.

4. Há, todavia, circunstâncias excepcionalíssimas em que é necessária a intervenção pontual do Poder Judiciário para fazer cessar o vínculo criado, nos bancos de dados dos provedores de busca, entre dados pessoais e resultados da busca, que não guardam relevância para interesse público à informação, seja pelo conteúdo eminentemente privado, seja pelo decurso do tempo.

5. Nessas situações excepcionais, o direito à intimidade e ao esquecimento, bem como a proteção aos dados pessoais deverá preponderar, a fim de permitir que as pessoas envolvidas sigam suas vidas com razoável anonimato, não sendo o fato desabonador corriqueiramente rememorado e perenizado por sistemas automatizados de busca. Documento: 83459361 – EMENTA / ACORDÃO – Site certificado – DJe: 05/06/2018 Página 1 de 2 Superior Tribunal de Justiça

6. O rompimento do referido vínculo sem a exclusão da notícia compatibiliza também os interesses individual do titular dos dados pessoais e coletivo de acesso à informação, na medida em que viabiliza a localização das notícias àqueles que direcionem sua pesquisa fornecendo argumentos de pesquisa relacionados ao fato noticiado, mas não àqueles que buscam exclusivamente pelos dados pessoais do indivíduo protegido.

7. No caso concreto, passado mais de uma década desde o fato noticiado, ao se informar como critério de busca exclusivo o nome da parte recorrente, o primeiro resultado apresentado permanecia apontando link de notícia de seu possível envolvimento em fato desabonador, não comprovado, a despeito da existência de outras tantas informações posteriores a seu respeito disponíveis na rede mundial.

8. O arbitramento de multa diária deve ser revisto sempre que seu valor inicial configure manifesta desproporção, por ser irrisório ou excessivo, como é o caso dos autos.

9. Recursos especiais parcialmente providos

(RECURSO ESPECIAL Nº 1.660.168 – RJ, RELATOR PARA O ACÓRDÃO O MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Julgado em 08 de maio de 2018).

Neste ano de 2018, é também relevante mencionar a implementação da redução do foro privilegiado para Governadores, consoante precedente que segue:

TEMA: FORO PRERROGATIVA DE FUNÇÃO – RESTRIÇÃO – GOVERNADOR DE ESTADO

PROCESSUAL PENAL. AGRAVOS REGIMENTAIS. COMPETÊNCIA. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. INTERPRETAÇÃO DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. POSSIBILIDADE DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ANALISAR SUA PRÓPRIA COMPETÊNCIA. REGRA DA KOMPETENZ-KOMPETENZ. LIMITAÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DO ART. 105, I, “A” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRINCÍPIO REPUBLICANO. GOVERNADOR DE ESTADO. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA APENAS AOS CASOS DE DELITOS PRATICADOS EM RAZÃO E NO EXERCÍCIO DO CARGO. NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO SIMÉTRICA DO ART. 102, I, “B” E “C”, EM RELAÇÃO AO ART. 105, I, “A”, CF. ALINHAMENTO AO ENTENDIMENTO ADOTADO PELO EXCELSO PRETÓRIO. MESMA RATIO DECIDENDI. UBI EADEM RATIO, IBI EADEM LEGIS DISPOSITIO (ONDE EXISTE A MESMA RAZÃO FUNDAMENTAL, PREVALECE A MESMA REGRA DE DIREITO). AGRAVOS REGIMENTAIS A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. O fato de a regra de competência estar prevista em texto constitucional não pode representar óbice à análise, por esta Corte de Justiça, de sua própria competência, sob pena de se inviabilizar, nos casos como o dos autos, o exercício deste poder-dever básico de todo órgão julgador, impedindo o imprescindível exame deste importante pressuposto de admissibilidade do provimento jurisdicional.

2. Todo e qualquer magistrado deve aplicar o direito, de acordo com a incidência das normas jurídicas, sempre tendo em conta as regras e os princípios previstos na Constituição da República, sem o que restaria inviabilizada a própria interpretação sistemática do ordenamento jurídico.

3. O foro especial no âmbito penal é prerrogativa destinada a assegurar a independência e o livre exercício de determinados cargos e funções de especial importância, isto é, não se trata de privilégio pessoal. O princípio republicano é condição essencial de existência do Estado de Direito, razão pela qual o republicanismo caminha, pari passu, com a supressão dos privilégios, devendo ser afastadas da interpretação constitucional os princípios e regras contrários ao elemento axiológico da igualdade.

4. O art. 105, I, “a”, CF consubstancia exceção à regra geral de competência, de modo que, partindo-se do pressuposto de que a Constituição é una, sem regras contraditórias, deve ser realizada a interpretação restritiva das exceções, com base na análise sistemática e teleológica da norma.

5. Desse modo, ao art. 105, I, “a”, da Constituição Federal, deve ser conferida interpretação de forma a atender o princípio republicano, do qual é corolário a vedação de privilégios de qualquer espécie, com ênfase na interpretação restritiva das exceções, segundo a qual o foro por prerrogativa de função se aplica apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.

6. Somente com uma interpretação simétrica dos arts. 102, I, “b” e “c” e 105, I, “a”, da Lei Fundamental, conferindo a mesma solução jurídica a casos análogos, será possível afirmar que esta Corte Superior proferiu decisão consistente e aceitável racionalmente, duas condições indispensáveis à tarefa de julgar, para que se realize a função socialmente integradora da ordem jurídica e a pretensão de legitimidade do direito.

7. As mesmas razões fundamentais – a mesma ratio decidendi – que levaram o Excelso Pretório, ao interpretar o art. 102, I, “b” e “c”, da CF, a restringir as hipóteses de foro por prerrogativa de função são, todas elas, aplicáveis ao caso em apreço, justificando, dessa forma, que seja atribuído ao art. 105, I, “a”, da Lei Fundamental, interpretação simétrica àquela conferia pelo Supremo Tribunal Federal às suas competências originárias.

8. Assim, é de se conferir ao enunciado normativo do art. 105, I, “a”, da CF, o mesmo sentido e alcance atribuído pelo Supremo Tribunal Federal ao art. 102, I, “b” e “c”, restringindo-se, desse modo, as hipóteses de foro por prerrogativa de função perante o STJ àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função – no caso concreto, o de Governador de Estado -, porquanto “onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de direito”.

9. Destarte, reconhecida a incompetência do Superior Tribunal de Justiça, determina-se a remessa dos autos a uma das Varas Criminais da Capital do Estado da Paraíba, e posterior prosseguimento da presente ação penal perante o juízo competente.

10. Agravos regimentais a que se nega provimento.

(AgRg na APn 866/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/06/2018, DJe 03/08/2018)

3. Conclusão

O desejo é que o texto seja útil como pesquisa, e qualquer sugestão de aprimoramento é sempre bem-vinda. Como já foi assinalado, a escolha de cada precedente anual levou em conta inúmeros fatores, mas sem perder de vista sua relevância jurídica e impacto social, na verdade a capacidade de mudar para melhor o mundo que está a nossa volta.

O objetivo, no final, é realçar a importância deste grande Tribunal – o STJ -, que vem se consolidando como o Tribunal da Cidadania.

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1 Criado pela Constituição Cidadã de 1988, foi idealizado para que suas decisões pudessem influenciar positivamente todos os aspectos da vida cotidiana das pessoas. Por isso, é conhecido como “Tribunal da Cidadania”.

2 Em 1940, o STF recebeu 2.211 recursos e julgou 1.807. Em 1987 (antes da instalação do STJ), recebeu 18.788 e julgou 20.122. No segundo semestre de 2007 (data da repercussão geral), a distribuição batia a casa dos 45.690 recursos. Em 2017, foram distribuídos 54.223 (mais do que o dobro do que havia em 1987, quando já se decantava a crise do recurso extraordinário).

3 A tentativa de sistematização histórica dos precedentes mais relevantes de Cortes Superiores é uma tendência nos principais países do mundo. Confira-se: DOWRKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010