Senado

O fim do exame criminológico

Pular para conteúdo
Whatsapp
comentários

Capítulo 1

Os argumentos que mudaram a lei

Muitos se lembram do filme “Um Sonho de Liberdade”, estrelado por Tim Robbins e Morgan Freeman, dirigido por Frank Darabont. Dois condenados, Andy Dufesne e “Red” Reeding, cumpriam pena de prisão perpétua na penitenciária de “Shawshank”. “Red”, recolhido há mais tempo, ao completar 20 anos de reclusão, é levado para uma entrevista junto a um grupo de “experts” para ser avaliado sobre seu pedido de livramento condicional. Na audiência, após as perguntas e respostas de praxe a conclusão da comissão é carimbada em um formulário: “rejected” (rejeitado).

Depois de mais 10 anos é novamente entrevistado:

— “O senhor está regenerado”?

— “Sim, aprendi a lição. Sou hoje um novo homem. Não represento mais perigo para a sociedade. Estou completamente regenerado. Juro por Deus”.

Novamente o mesmo resultado: “rejected”.

Depois que seu amigo inseparável, Andy, magnificamente representado pelo ator Tim Robbins, consegue fugir da prisão, ao completar 40 anos de reclusão, é avaliado mais uma vez:

— “Sente-se, por favor. O senhor está regenerado”?

— “Regenerado? Bem, vamos ver. Não tenho a mínima idéia do que seja isso”.

— “Significa se está pronto a voltar para a vida social”.

— “Sei o que significa, meu filho. Para mim é uma palavra inventada, uma palavra dos políticos para que jovens como você possam vestir terno e gravata e ter um emprego. O que quer saber de verdade? Se me arrependo do que fiz”?

— “Está arrependido”?

— “Não houve um só dia nestes 40 anos que não tenha sentido arrependimento. Não é porque estou aqui ou porque você acha que eu deveria me arrepender. Ao recordar o passado, vejo um jovem, um rapaz idiota que cometeu um crime horrível. Tento falar com ele, tento passar um pouco de juízo para ele. Ensinar como são as coisas, mas não posso. Aquele garoto não existe mais, o que sobrou foi este velho aqui, tenho que conviver com isso. Regenerado? É uma palavra de merda. Filho carimbe os seus formulários, porque não quero mais perder tempo. Para falar a verdade, estou pouco ligando”.

Com esta resposta conseguiu finalmente o “approved” (aprovado) .

*     *     *     *

Algo mais ou menos semelhante ocorria no sistema penitenciário brasileiro. A Lei de Execução Penal dizia que [simple_tooltip content=’Artigo 112 da Lei de Execução Penal.’]“a pena privativa da liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão”[/simple_tooltip]. Essa decisão [simple_tooltip content=’Parágrafo único do artigo 112 da LEP.’]“será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário”[/simple_tooltip].

Desde a época em que era juiz de execução penal, sempre me pareceu um absurdo essa exigência dos exames. Em primeiro lugar, porque nos locais onde há apenas cadeia pública, estabelecimento destinado a presos que aguardam julgamento, não existem comissões técnicas de classificação e nem equipes para exames criminológicos. Nas cadeias de muitos Estados da Federação, como se sabe, acabam ficando também os presos condenados, pela crônica falta de vagas nas penitenciárias. O juiz era, portanto, obrigado a decidir os pedidos, com base nas poucas informações que tinha à sua disposição.

Lembro que nas várias comarcas do interior em que atuei como juiz ou como delegado de polícia – Juquiá, Piracaia, Santa Branca, Mairiporã, Amparo, Itatiba, Atibaia, Bragança Paulista, Jundiaí, Sorocaba – os únicos funcionários públicos responsáveis pelas cadeias públicas eram os carcereiros. Na delegacia de polícia, que normalmente funcionava ao lado da cadeia pública, havia, além do delegado, escrivão e, às vezes, investigadores de polícia e um motorista policial. Ninguém mais. Os carcereiros na sua grande maioria tinham apenas o curso primário e a única formação profissional que recebiam na academia de polícia era a de abrir e fechar cadeados e a de revistar presos e visitantes. Nada mais sabiam fazer, além disso.

Os presos, quase todos, eram semi-alfabetizados, pobres, desdentados, mal vestidos, mal cheirosos, sem eira e nem beira. Os juízes nas pequenas cidades do interior eram normalmente os que estavam no início da carreira, jovens com 25 ou 26 anos de idade, oriundos da classe média. Poucas vezes tiveram contato com pessoas desse nível social.

Em Piracaia, onde trabalhei em 1980 como juiz substituto, conheci Antonio de Almeida Sampaio, hoje desembargador do Tribunal de Justiça, que morava em Campinas e era casado com a sobrinha do Presidente da República, o general João Baptista de Figueiredo. Era uma pessoa de fina formação, de classe média alta e que frequentara os melhores colégios de sua cidade. Ele ingressou como juiz no concurso posterior ao meu e foi designado a trabalhar em Piracaia, logo depois de mim.

Piracaia é uma pequena cidade que fica perto de Atibaia. Devia ter na época cerca de 10 a 15 mil habitantes. Típica cidade do interior, com muitos caipiras agricultores. Gente boa, hospitaleira, honesta e decente. Hoje a cidade cresceu e desenvolveu muito o turismo, principalmente pela bela represa construída pela Sabesp para abastecer de água a capital de São Paulo. Da comarca de Piracaia faz parte o município de Joanópolis, a chamada “terra dos lobisomens”, famosa porque dizem que nas noites de lua cheia, alguns homens costumam transformar-se em lobos. Pelo menos é o que garante meu amigo Djahy Tucci, delegado de polícia que nasceu e mora em Joanópolis. Ele contou essa estória dos lobisomens no programa do Jô Soares, jurando que é verdadeira. Mais que isso, disse ter visto pessoalmente muitos desses lobisomens. Coisas do Djahy… Quem o conhece sabe do que estou falando.

O juiz Sampaio, ao chegar em Piracaia, em uma das primeiras audiências foi ouvir um lavrador morador do bairro do Piúca, um dos lugares mais pobres de Piracaia. E ele não conseguia se fazer entender pela testemunha.

— “Pi eu tô dizendo dotô, qui num intendi nada du qui o sinhô falô. Qué repiti”?

O Sampaio voltava a ler a denúncia, que tratava de um crime de sedução e tentava fazer a testemunha entender. Nada. O homem continuava a “num intendê nada, nadica, de nada”. Também dizendo: “consta da exordial acusatória que no dia X o increpado João cometeu delito de sedução, aproveitando-se da paixão que por ele nutria sua noiva Maria e com ela praticou conjunção carnal, aproveitando-se da justificável confiança adquirida após longevo namoro, mediante galanteios, vencendo suas derradeiras resistências …”

Por mais que o Sampaio tentasse, a testemunha não entendia nada. Daí ele teve que pedir para o escrevente [simple_tooltip content=’Carlos Barros Nogueira, hoje brilhante juiz de direito em São Paulo, foro de Santana, primeiro colocado em seu concurso.’]Carlinhos[/simple_tooltip]. O Carlinhos, nascido em Piracaia, conhecedor do povo de lá, já estava incomodado com a situação e falou para a testemunha:

— “Seu Zé, o dotô qué sabê si é vredade que a Maria táva paxonada pelo João i deu prele”?

— “Ah bão… Isso posso contá pro sinhô…”, e relatou minuciosamente tudo o que sabia.

Em outra oportunidade, eu presidia uma audiência em que uma testemunha tinha um bar ao lado da Cachoeira dos Pretos, lugar maravilhoso em Joanópolis, onde muitos iam fazer piquenique. Era assim mesmo que chamávamos os passeios com familiares que fazíamos tradicionalmente no feriado do dia 1º de maio. Há muito tempo não ouço mais ninguém dizer que vai fazer piquenique.

A testemunha havia visto uma briga e era sobre isso que viera depor. Terminada a audiência, dei linha para ele contar um pouco mais do seu bar, das pessoas que iam passear na cachoeira. Ele ficou tão à vontade, que na saída me fez um convite que virou comentário em Piracaia por muito tempo:

— “Dotô, paréce lá quarqué dia desse prá tomá umas pinga cumigo” .

 

*     *     *     *

 

São pessoas assim, simples, rústicas, que também habitavam as cadeias públicas. Alguns homicidas, furtadores, autores de sedução, poucos estupradores, geralmente por [simple_tooltip content=’A relação sexual com pessoas menores de 14 anos é considerada estupro.’]violência presumida[/simple_tooltip] e alguns estelionatários, passadores de cheque sem fundo.

No momento em que esses condenados completavam o tempo para progressão de regime, surgia o problema do parecer da comissão técnica de classificação e do exame criminológico. Como fazer o exame, se não havia nenhum profissional habilitado na cidade? Depois de 1985, quando entrou em vigor a Lei de Execução Penal, a questão ficou dramática: os promotores de justiça costumavam exigir o exame como requisito para concessão do benefício. Os poucos estelionatários que tinham mais condições econômicas contratavam psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras e traziam ao processo pareceres indicando seus “méritos” para a progressão. Já os outros, a grande maioria, acabava ficando recolhida por muito mais tempo, porque o Estado não tinha ninguém para fazer a avaliação.

Era uma injustiça flagrante e revoltante. Muitas vezes as decisões sem os exames eram anuladas ou reformadas pelos tribunais, porque proferidas sem observância de um requisito que a Lei considerava essencial. Essa injustiça sempre gerou tensões e revoltas, muitas vezes violentas rebeliões.

Muitos estados da Federação ainda hoje têm a maior parte de seus presos cumprindo pena em cadeias públicas, excluídos da possibilidade de avaliação. Em Minas Gerais mais de 70% dos presos ainda se encontram nessas condições.

Mesmo nas penitenciárias, onde existem Comissões Técnicas de Classificação, compostas por psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e diretores penitenciários, os pareceres e exames criminológicos sempre foram objeto de severas críticas, porque normalmente os laudos eram elaborados às pressas (e nem podia ser de outra forma, devido ao número sempre crescente de sentenciados e insuficiência de funcionários) e sem o necessário estudo científico. São famosas algumas asserções nos laudos, como: “o sentenciado não tirou proveito da terapêutica penal”, ou “o sentenciado não está arrependido da prática do crime”, ou, ainda, “o sentenciado apresenta baixo estímulo de vida”. Essas afirmações, ridículas, sempre serviram para fundamentar indeferimento de benefícios, como se tivessem algum embasamento científico.

 

*     *     *     *

 

O [simple_tooltip content=’Breno Montanari Ramos, experiente médico psiquiatra do sistema penitenciário paulista.’]Breno[/simple_tooltip] conta que tinha um colega que fazia os laudos da seguinte maneira: mandava enfileirar os examinandos do dia e se fazia acompanhar de um auxiliar, que tinha cinco ou seis modelos de laudos previamente redigidos. Depois de três ou quatro perguntas, dizia: laudo 3 (três). Venha o próximo…

É por esse tipo de exame que ainda lutam promotores de justiça e alguns juízes de direito. Entendem que a eliminação do exame abriu as portas das prisões e que não é mais possível deixar aprisionados por mais tempo, criminosos perigosos. Por conta da eliminação do exame determinada pela Lei 10.792/03, até hoje ouço especialistas afirmando que a segurança pública foi seriamente abalada.

Em uma das visitas que fiz ao COC – Centro de Observação Criminológica de São Paulo — me reuni com diversos profissionais responsáveis pela elaboração dos laudos e tentei entender como eles viam seu trabalho. Alguns tinham perfeita noção crítica: sabiam que não era possível, em superficial exame, fazer prognóstico do futuro de uma pessoa. Mesmo com longos e aprofundados exames essa previsão seria totalmente insegura, diziam outros. Eram poucos os que tinham plena convicção da validade científica do trabalho que vinham fazendo. Mais parecia uma farsa imposta pela Lei para justificar qualquer tipo de decisão, seja a favor do acusado, seja contra. Quase sempre, na dúvida, era melhor emitir parecer contra o réu, pois assim ficavam resguardados de qualquer responsabilidade.

Outro ponto que as pessoas custam a entender é que, com os exames, a atividade jurisdicional não era livremente exercida. Não era o juiz que decidia sobre os direitos do preso, mas os técnicos. Estudo realizado meses antes da Lei nº 10.792 evidenciava, com quadros estatísticos inabaláveis, que o exame criminológico conduzia drasticamente o magistrado à decisão sugerida pelos técnicos (“Mais punição para os punidos: as decisões judiciais da Vara de Execuções Criminais do Estado de São Paulo” – Alessandra Teixeira e Eliana Blumer Trindade Bordini, Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 44, págs. 267/277). E essas sugestões vinham muitas vezes com laudos feitos da forma que o Breno descreveu. Afinal, qual magistrado teria a coragem de autorizar o livramento de alguém cuja avaliação fosse totalmente negativa? Era a chamada “ditadura dos laudos”. Em pleno Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário, cujas funções são importantíssimas no equilíbrio dos poderes, acabava se sujeitando, em uma das áreas mais relevantes de sua atuação – a liberdade humana – a um poder ditatorial exercido por técnicos do sistema penitenciário.

O sistema penitenciário, quando interessa, é qualificado como “totalmente falido”. Não há quem não tenha lido ou ouvido essa afirmação. Quando os interesses são outros, as mesmas pessoas que qualificam o sistema como falido, requisitam os exames dos profissionais dessa instituição falida e dizem que seus laudos são imprescindíveis para a defesa da sociedade.

 

A verdade é outra, na minha concepção. Os seres humanos muitas vezes se movem por preconceitos. E um dos preconceitos mais arraigados na humanidade é o sentimento de repúdio contra quem comete crimes, especialmente os graves, chamados hediondos.

Muitos não conseguem se libertar do sentimento de vingança que nutrem contra quem, por exemplo, mata seus pais, como a estudante da PUC, Suzane Richtofen. No íntimo, querem que ela e outros criminosos semelhantes fiquem presos para sempre ou que recebam a pena de morte.

Outras pessoas, certamente em menor número, são contra a pena de prisão. Não acreditam nela. Esse tipo de pena não passa de um mal necessário, até que se invente algo melhor para punir quem comete crimes, é o que pensam. Estas pessoas costumam ser liberais em excesso e querem soltar todo o mundo. São os abolicionistas, grupo que tem algumas respeitáveis figuras do mundo jurídico.

Como não existe nem uma coisa e nem outra em nosso ordenamento jurídico, no momento em que os condenados completam o tempo para progredir de regime, ou para obter o livramento condicional, os psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras e juízes, como seres humanos que são, submetidos aos conceitos e preconceitos que receberam na vida, se inclinam a emitir pareceres e a proferir decisões que estejam em consonância com os princípios de Justiça que sempre aprenderam na vida: os que defendem a Lei e a Ordem buscarão impedir a liberdade; os abolicionistas tentarão concedê-la. Havendo campo de manobra permitido pela Lei, não há dúvida de que essa formação moral, ética e jurídica irá direcionar os pareceres e as decisões. Isso faz parte do ser humano.

Portanto, as sentenças judiciais com base em pareceres técnicos e laudos criminológicos onde prevalece o subjetivismo e não o rigor científico, sempre tomarão a direção que seu autor quiser dar. É esse enorme inconveniente – ao menos no campo da execução penal — que o projeto propondo o fim do exame criminológico visou a eliminar.

*     *     *     *

Pois bem. Pessoalmente convencido da injustiça do sistema jurídico em vigor, conquistei um fortíssimo aliado, o Dr. Pedro Armando Egydio de Carvalho, ouvidor da pasta, de quem falo com mais detalhes no capítulo sobre a “Crise de Maio”. E ele veio dar às minhas idéias de mudança o respaldo do seu conhecimento filosófico, jurídico e penitenciário. Sua enorme reputação no meio jurídico certamente iria ajudar, e muito.

Tentei também convencer o ministro José Gregori, na época em que ele conduzia o ministério da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso. Embora impressionado com os argumentos, Gregori não comprou a briga. E sem o apoio do Ministério da Justiça dificilmente uma mudança legislativa dessa envergadura teria sucesso.

Esperamos a posse do novo governo e de Márcio Thomaz Bastos, renomado criminalista, no Ministério da Justiça. Na primeira audiência já notamos sua simpatia. Ele conhecia, como advogado, o drama dos laudos. Encaminhamos o anteprojeto de Lei que minha equipe elaborou, incluindo no mesmo pacote da eliminação do exame, o RDD. Não foi uma manobra maliciosa no sentido de endurecer de um lado e abrandar de outro. Diria que foi uma estratégia política que tornaria mais factível a mudança.

Tramitava na Câmara dos Deputados um projeto que alterava parcialmente a Lei de Execução Penal, ainda da época do governo FHC e do ministro Gregori. A equipe do ministro Márcio enviou uma emenda substitutiva, acolhendo quase na íntegra as nossas propostas. Depois de alguns debates entre os deputados, poucos, mais em nível de lideranças, o projeto foi aprovado com algumas mudanças. A única alteração importante – e no nosso entendimento inconveniente — dizia respeito à exigência de decisão judicial para internação em RDD. Não tenho certeza, mas parece que a sugestão partiu da deputada Denise Frossard, do Rio de Janeiro.

Assim o projeto seguiu para o Senado Federal. Ali foi designado relator o senador Demóstenes Torres, ex-procurador geral de Justiça do Estado de Goiás e ex-presidente do Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça. Um homem de linha dura, profundo conhecedor do tema. Faziam parte da comissão, grandes nomes do cenário político nacional: os senadores Tasso Jereissati, Pedro Simon, César Borges, Garibaldi Alves, Demóstenes Torres, Serys Slhessarenko e Magno Malta. Quatro deles (Tasso, Simon, Borges e Garibaldi) foram governadores de seus estados (Ceará, Rio Grande do Sul, Bahia e Rio Grande do Norte).

*     *     *    *

Certo dia, mais ou menos no mês de setembro ou outubro de 2003, recebi ligação telefônica do assessor do senador Tasso Jereissati, o general Freire, que pedia minha presença no Senado Federal para explicar alguns detalhes do projeto. Esclarecia que o senador Demóstenes Torres era radicalmente contra a eliminação do exame criminológico e que o projeto corria sério risco de ser rejeitado.

O general Freire é uma pessoa extraordinária. Organiza de forma impecável os trabalhos, é afável no trato, educado, gentil, cavalheiro. Recebeu a mim e a Pedro Egydio e relatou com muita concisão o que estava acontecendo. Pedia nossa colaboração para melhor encaminhamento da matéria. Junto com Cláudio Alencar, assessor do ministro da Justiça, procuramos explicar aos senadores a importância da aprovação do projeto. Demóstenes Torres estava inflexível. Dizia que aquilo iria colocar milhares de presos na rua, o que seria inadmissível.

Demóstenes era meu conhecido da época em que dirigi o Depen – Departamento Penitenciário Nacional. Ele era secretário da Segurança Pública e de Justiça do Estado de Goiás, e, nessa qualidade, nos encontramos algumas vezes. Eu o respeitava pelo seu conhecimento jurídico e pela correção de sua conduta; ele também me respeitava, embora nossas opiniões sobre o projeto em questão fossem diametralmente opostas. O debate que ali se travou foi de alto nível. O senador Tasso, que não estava no início da reunião, apareceu logo depois e sentou-se na pequena mesa ali disponível.

Eu imaginava que um senador tivesse acomodações mais, digamos assim, suntuosas. É o que imaginamos pelas notícias da imprensa. Não é bem assim. A sala é pequena, quase franciscana, simples, sem ostentação.

Não conhecia pessoalmente Tasso Jereissati. É sempre instigante conhecer uma pessoa tão importante no cenário político do País. Educado, ele cumprimentou a todos, pediu desculpas pelo atraso e passou a ouvir com atenção os debates que eram realizados entre as poucas pessoas presentes. Demóstenes continuava com sua tática de terror: dizia que milhares de pessoas, cerca de dez por cento da população presa, mais ou menos 30 mil, sairiam das prisões e que seria um desastre para a segurança pública.

— “Não acho” — disse Tasso Jereissati — “conheço os presos do meu Estado – continuou — e se dez por cento deles saírem não haverá reflexo algum na segurança pública. Além disso, há a questão da despesa para manutenção. Só deve permanecer preso quem representa perigo para a sociedade”.

Nesse momento deu para perceber o peso da opinião de um senador com a reputação de Tasso Jereissati. Fez-se um silêncio ante sua observação. Um respeitoso silêncio (essa manifestação do senador é citada de memória, embora entre aspas, e pode haver alguma incorreção, mas o sentido era induvidosamente esse que acabei de mencionar). Tasso é uma pessoa muito perspicaz. Demonstrou captar rapidamente não só os argumentos, como o conhecimento das pessoas. Durante a reunião passou a dirigir-se a Pedro Egydio chamando-o “professor”. De fato, quem ouve Pedro Egydio falar, vê sua maneira de expor, seu tom de voz, fica sem nenhuma dúvida: é um verdadeiro professor. O senador Tasso deve ter ficado tão bem impressionado com o Pedro Egydio que algum tempo depois ele pediu ao governador Alckmin para “emprestar” o “professor” para passar um tempo no Ceará a fim de estudar o sistema penitenciário de lá…

*     *     *     *

Enquanto os debates seguiam telefonei do meu celular para o gabinete do governador Geraldo Alckmin, que acompanhava com atenção o que ocorria em Brasília. A ele pedi para falar com alguns dos senadores presentes. De pronto Alckmin conversou com quase todos, solicitando apoio para aprovação do projeto. Novamente deu para perceber o impacto e o peso do pedido de quem é governador do maior Estado da Federação: os que estavam em dúvida passaram a apoiar o projeto. Alguns esclarecimentos a mais foram feitos e o presidente da comissão, senador Tasso, decidiu que a matéria seria formalmente votada no dia seguinte. Designou o senador Garibaldi Alves, ex-governador do Rio Grande do Norte (1995 a 2003) para fazer a sustentação contrária ao parecer do relator. Garibaldi sabia que a matéria era polêmica e que poderia trazer algum desgaste perante a opinião pública. Ele disse: “justo eu”? Mas aceitou a incumbência e nos pediu para escrever os argumentos favoráveis à proposta de mudança. Eu, Cláudio Alencar e Pedro Egydio fomos a uma sala ao lado e ali redigimos o parecer em nome do senador Garibaldi.

Durante a noite no hotel li e reli o projeto, fiz algumas anotações, alterei alguns pontos e no café da manhã revisei tudo com o Pedro Egydio até chegarmos à redação que parecia ser a ideal. À tarde nos dirigimos à reunião da comissão, que teve início por volta das 18 horas. Fui convidado a falar. Fiz breve exposição, focando meus argumentos principalmente no invencível aumento do número de presos – quase 800 a mais por mês – e tentei impressionar os ex-governadores presentes, dizendo que sem um critério objetivo de abertura de vagas no sistema penitenciário não havia orçamento que suportasse aquela situação. Era uma penitenciária nova, ao custo de quase 20 milhões, que São Paulo tinha que construir mensalmente. O senador Pedro Simon interrompeu minha fala e conferiu: [simple_tooltip content=’Por incrível que possa parecer, era esse o aumento real do número de presos em São Paulo.’]“o senhor disse 800 novos presos a mais por mês? Mas isso não é possível”[/simple_tooltip]. Meu objetivo, parece, tinha sido alcançado.

Várias outras pessoas foram convidadas a falar, inclusive o presidente da Associação Nacional de Juízes Federais, que se posicionou contra a eliminação do exame. O relator do projeto, senador Demóstenes Torres, leu seu relatório e o voto. Opinou pelo acolhimento da proposta do RDD, propôs a criação de um regime disciplinar ainda mais duro para os presos, que denominou RDMax – Regime Disciplinar de Segurança Máxima – e pediu a exclusão total da proposta de eliminação do exame criminológico. O senador Garibaldi leu na íntegra o parecer que havíamos elaborado na noite anterior e a matéria foi votada.

Nossa proposta foi aprovada, com a diferença de um único voto. A senadora Serys Slhessarenko estava toda atrapalhada: parecia não entender o que estava acontecendo, pedia opinião a todo momento para seus assessores e acabou proferindo um voto que quase pôs tudo a perder, embora ela devesse ser, na qualidade de integrante do PT, favorável. Afinal foi o ministro Márcio quem enviou o projeto ao Congresso Nacional

O senador Tasso fez um comentário duro:

— “Mas essa senhora parece não saber o que está fazendo”.

Quem proferiu o voto decisivo pela aprovação do projeto e cuja posição ninguém tinha conhecimento até então, foi o senador gaúcho Pedro Simon. Votaram contra: Demóstenes Torres, Magno Malta e Serys Slhessarenko.

*     *     *     *

Foi uma nova e bela experiência.

Com o gosto da vitória no coração e o estômago vazio, por volta de meia noite fomos a um restaurante comemorar. Sem nenhuma experiência de atuação no parlamento, só com a força dos argumentos, havíamos conseguido aprovar nossa proposta: o polêmico exame criminológico não existia mais (a aprovação no plenário, com o parecer favorável da comissão, era líquida e certa).

Os presos estavam livres da tortura mental que as entrevistas significavam para eles, da ansiedade nas vésperas e da revolta ante o resultado negativo. Saberiam que ninguém mais iria perscrutar o seu íntimo ou vasculhar o seu passado. Tendo bom comportamento seus direitos serão reconhecidos, sem dependência da opinião de terceiros. Dependeria, a partir dali, só deles.

Os técnicos dedicarão seu tempo em projetos de reintegração social e em atividades de individualização da pena. O Estado, finalmente, passará a fazer aquilo que é o principal objetivo da execução penal: [simple_tooltip content=’Artigo 1º da Lei de Execução Penal.’]“proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”[/simple_tooltip]. Esse objetivo nunca foi alcançado porque havia muita preocupação em impedir a saída dos presos ao invés de criar condições favoráveis para sua volta à sociedade.

Cenas como as vividas por “Red” em “Um Sonho de Liberdade”, nunca mais. Era o que pensávamos. No futuro não foi bem assim, mas essa é outra história.

*     *     *     *

Disse que não foi bem assim, porque, apesar da mudança, muitos juízes e tribunais continuaram a exigir os exames, em minha opinião, em total afronta à Lei.

Vejo agora, no Boletim do IBCCRIM nº 169, Ano 14, de dezembro/2006, que acabei de receber, que a 7ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão relatado pelo Desembargador Ivan Marques, proferiu decisão que merece transcrição:

 

“Determina a vigente Constituição Federal que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser por força de lei (art. 5º, II).

Existe no Brasil, vigente até que seja revogada por quem de Direito, a Lei nº 10.792, de 1º de Dezembro de 2003, que alterou a sistemática de execução penal no país, passando a exigir para obtenção de benefícios prova de bom comportamento carcerário e de cumprimento de pena pelo mínimo exigido pela lei.

Foi afastada do sistema positivo, portanto, a obrigatoriedade de submissão dos sentenciados a exames por comissões de especialistas para aferir sua periculosidade latente.

A decisão agravada pura e simplesmente aplicou esta lei e deferiu o livramento condicional ao sentenciado.

Logo, o agravo investe contra decisão que cumpriu lei, como é obrigação primordial de todo e qualquer juiz brasileiro.

Tanto isso é verdade que, após se estender por longas laudas para demonstrar os malefícios da nova lei, o agravante vai ao ponto de exigir dos juízes coragem para descumprir a lei vigente.

É evidente que se trata de pedido que não pode ser levado em consideração.

As ponderações sobre os malefícios da nova lei devem ser endereçadas ao Congresso Nacional. Enquanto vigente aquela lei, não pode o julgador descumpri-la, muito menos lançando mão de princípios constitucionais genéricos e abstratos, nem de longe afrontados pela modificações.

A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11.07.84) sempre exigiu prova de méritos e de tempo de pena cumprida.

Continua a exigir isso, tendo alterado apenas a forma de provar o mérito subjetivo. Era antes demonstrado através de laudos médicos superficiais,, apressados e pouco dignos de crédito. É agora comprovado através de atestado de boa conduta carcerária que, pelo menos, tem relação direta com a disciplina carcerária capaz de evidenciar os tais méritos do preso.

A nem de longe se pode falar que o Judiciário foi afastado da Execução Penal por ter que ‘engolir’ atestados de boa conduta, uma vez que já vinha ‘engolindo’ laudos há muito tempo”… 

                  ……

 “Para mim o novo sistema é muito mais confiável, pois se embasa na realidade da vida na penitenciária e não em laudos onde, após ver o detento por alguns minutos (quando viam), os integrantes da Comissão Técnica de Classificação se arvoravam em oráculos e pitonisas para dizer quem tinha e quem não tinha probabilidade de reincidir…

Tal sistema era ridículo, pois a possibilidade de praticar crimes existe para toda e qualquer pessoa e não apenas para egressos de prisões, como aliás demonstram os crimes praticados a toda hora por advogados, médicos, engenheiros, promotores, juízes e desembargadores…

Tais laudos não tinham seriedade nem compromisso com a realidade, simplesmente porque ainda não existe a possibilidade de se saber o futuro. E o registro de falhas de personalidade não poderia ser obstáculo para benefícios, simplesmente porque elas existem na quase totalidade da Humanidade.

De qualquer forma, repito, se o Ministério Público não concorda com a nova lei e a nova sistemática, que obtenha sua alteração de quem de Direito (por enquanto, sabe-se lá até quando, ainda o Poder Legislativo) e não venha exigir de juízes que, em nome de supostos interesses sociais ditados pelo Ministério Público, descumpram lei vigente”.

(Agravo em Execução Penal nº 009178.3/2, da comarca de Americana, julgado em 03 de agosto de 2006).

_______________________________________________________________________________

* O autor esclarece, ante a dúvida de muitos leitores, que os textos que estão sendo publicados foram escritos no segundo semestre de 2006 e que não foram atualizados.