Pandemia

O Direito no combate ao coronavírus

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Uma interpretação de 'serviços públicos e atividades essenciais'

Questões urgentes ao debate jurídico-constitucional

A difícil decisão entre a manutenção ou o fechamento de estabelecimentos e serviços durante a pandemia é materializada, no campo jurídico, por meio de leis, decretos e decisões judiciais. Comum a todos eles é a discussão sobre quais atividades se enquadram dentro do conceito de “serviços públicos e atividades essenciais”, já que aquilo que o for, pode permanecer em funcionamento durante o período de quarentena.

Neste artigo, ofereço uma interpretação desse conceito, tratando-o como um standard, um conceito jurídico com carga valorativa. Espero que essa interpretação auxilie gestores públicos e intérpretes do direito em suas decisões sobre quais atividades podem ou não ser permitidas enquanto combatemos o coronavírus.

O Direito e o Corona

Pode um governador fechar suas divisas para conter a propagação do coronavírus em seu terreno ? Pode um prefeito restringir a circulação de pessoas, quando o presidente da República orienta o contrário? Por que uma igreja pode abrir suas portas ao público durante a quarentena e um restaurante, teatro ou comércio não?

As disputas políticas e econômicas são materializadas, no campo do direito, por meio da positivação de leis, decretos e demais normas, sujeitos aos crivos formais e materiais da Constituição.

Na atual conjuntura, tais disputas giram em torno da mobilização para conter e superar a pandemia sanitária causada pela proliferação do coronavírus. Os recentes embates entre os diversos entes e poderes mostram que estamos longe de uma solução.

Resulta em imprevisibilidade. Ao cidadão, resta a dúvida sobre o que lhe é permitido. Ao empresário, se seu negócio pode ou não funcionar. Ao gestor público, permanece a dúvida sobre os comandos que pode ou não proferir. À sociedade, resta-nos assistir estupefatos às disputas entre as autoridades, num momento em que o tempo custa vidas.

Mesmo nesse cenário de incerteza jurídica, as disputas são materializadas em atos normativos, sujeitos aos crivos formais e materiais da Constituição, e assim, sujeitos à interpretação constitucional1.

A disputa política e econômica sobre a intensidade da restrição à circulação de pessoas, com o consequente fechamento de diversos estabelecimentos como escolas, teatros, cinemas, bares, restaurantes, vem sendo positivada através do termo “serviços públicos e atividades essenciais”. Durante a quarentena, somente podem permanecer abertos, sob determinadas condições, os “serviços públicos e atividades econômicas essenciais”, pois são “indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população2.”

Utilizando a mesma linguagem de “serviços e atividades essenciais”, o Governo do Estado de São Paulo3 e a Prefeitura de São Paulo4, por exemplo, baixaram atos suspendendo as atividades econômicas, com exceção das “essenciais”, com mais ou menos atividades que a regulação federal. Na esfera judicial, “igrejas e lotéricas” foram consideradas atividades “não essenciais” pelo judiciário federal carioca e, portanto, precisaram ser fechadas, e o judiciário goiano manteve a proibição do serviço público de transporte interestadual de passageiros, alegando a necessidade de preservar a saúde de sua população.

O que e quais são os “serviços públicos e atividades essenciais” ? Quais suas regras de funcionamento ? Qual ente tem poder para regular tais serviços e atividades e em qual extensão? Quais os critérios para revisão judicial das decisões sobre o que são ou não serviços públicos e atividades essenciais ?

Essas são questões urgentes ao debate jurídico-constitucional. Caberá aos gestores públicos e intérpretes da lei respondê-las, idealmente de maneira harmônica e coerente, sob o risco de se ver instalada enorme imprevisibilidade jurídica em meio à crise sanitária.

Serviços públicos e atividades essenciais”, um standard

Para sabermos se, por exemplo, o “funcionamento de igrejas” é uma atividade essencial no contexto de combate ao coronavírus, precisamos avaliar se igrejas são “serviços públicos e atividades essenciais”. Antes de fazer essa avaliação, porém, temos de ter certeza de que estamos falando sobre a mesma coisa quando nos referimos a “serviços públicos e atividades essenciais”. Ou seja, precisamos saber o critério que usamos para avaliar se igrejas são ou não serviços essenciais é o mesmo.

Muitas das nossas discordâncias sobre a aplicação do critério ao caso concreto, são, na verdade, discordâncias sobre o critério em si. São menos sobre se uma igreja é uma atividade essencial e mais sobre o que são, no fundo, atividades essenciais. É uma meta-discordância ou, como Dworkin chamou, um desacordo genuíno5.

Para evitar desacordos genuínos, ou ao menos ter mais clareza sobre o que exatamente estamos discordando, temos de explorar e discutir o próprio critério. E isso se faz por meio de sua interpretação.

Assim, nesse texto pretendo interpretar o critério utilizado para avaliar quais atividades devem permanecer abertas e quais devem ser fechadas durante a quarentena. Este é justamente o conceito de “serviços públicos e atividades essenciais”.

Em minha leitura, o conceito de “serviços públicos e atividades essenciais” é um verdadeiro standard jurídico. Um standard jurídico é um preceito jurídico positivado que inclui um predicado valorativo6, como “razoável”, “justo” ou “equilibrado” Seu conteúdo é aberto, embora delimitado pelos termos que o compõem. Ao reconhecer a existência de um predicado valorativo dentro de um conceito somos obrigados a interpretá-lo em sua íntegra, à luz de suas consequências práticas e princípios morais.

No nosso caso, o predicado valorativo é o da “essencialidade” do serviço público ou atividade econômica, cujo não funcionamento coloca em perigo a sobrevivência, saúde ou segurança da população. Só poderemos obter seu significado integral por meio da análise conjunta entre seu texto (o que são serviços e atividades essenciais ?), seus objetivos como política pública (o que se busca resolver ao com os “serviços públicos e atividades essenciais?”) e sua fundamentação moral (o qual o valor que os serviços públicos e atividades essenciais busca resguardar?) .

De maneira mais analítica, para interpretarmos um standard em sua íntegra devemos buscar uma leitura coerente entre (i) a disposição textual da norma em que está contido; (ii) sua efetividade como solução do problema que busca resolver e (iii) sua fundamentação dentro do conjunto de valores de uma sociedade.

Realizada sua interpretação íntegra, nosso entendimento do standard será muito mais sólido. E nossas aplicações aos casos concretos serão muito mais objetivas e coerentes, evitando-se o casuísmo.

Interpretando o standard

Passamos agora à interpretação do standard de “serviços públicos e atividades essenciais” seguindo o seguinte roteiro. Partimos da leitura de seu texto positivado. Seguimos com a investigação no campo da efetividade, isto é, de suas finalidades práticas, sua policy. Por fim, avaliamos qual valor moral é invocado pelo standard.

Cumpridas essas três etapas, teremos uma interpretação íntegra do standard, isto é, uma leitura coerente entre seu texto, policy e fundamentação moral. Após essas etapas, caberá avaliar sua integração com o arcabouço jurídico brasileiro.

Serviços públicos e atividades essenciais

Os termos “serviços públicos” e “atividades econômicas” são comuns ao jargão jurídico, visto que presentes na Constituição7. Ganham um sentido específico, porém, quando acompanhados do predicado “essenciais”, dentro da legislação de combate ao coronavírus8.

Para rememorar, na esfera federal, o termo foi introduzido pela Medida Provisória (MP) 926, de 2020, e regulado em maiores detalhes através do Decreto nº 10.282, publicado no mesmo dia da MP. O Decreto definiu como serviços públicos e atividades essenciais “aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população9” e indicou, em caráter exemplificativo, um rol de 35 serviços e atividades.

Assim, os serviços públicos e atividades essenciais precisam ser interpretados a partir da teleologia da norma que os positivou.

Ou seja, é essencial aquilo que for indispensável ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. São serviços muitíssimo essenciais, pois sem eles nossa sobrevivência, saúde e segurança estão ameaçadas.

Nunca é demais lembrar que estamos, oficialmente, em situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), com transmissão comunitária do coronavírus10, e que para seu combate são previstas medidas de isolamento social, i.e., separação de pessoas doentes ou contaminadas, e de quarentena, i.e., restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes. Ambas medidas têm por objetivo “evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.”

Os “serviços públicos e atividades essenciais”, portanto, são aqueles que, mesmo numa situação de isolamento social e de quarentena, precisam, excepcionalmente, funcionar. Assim, sua interpretação deve ser restritiva, dado seu texto, contexto11 e, também, pelas razões de policy e morais que exploraremos a seguir.

Mitigação x Supressão12

As medidas de isolamento e de quarentena têm por objetivo comum evitar a propagação do coronavírus. São ações emergenciais de prazo determinado que buscam contribuir, mediatamente, à preservação da vida e à retomada da normalidade dentro da maior brevidade possível. Isolamento social e quarentena são meios, cuja eficácia para alcance de seus fins precisa ser apurada. Da mesma forma, a exceção à quarentena, isto é, o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, precisa também ser avaliada em função dos objetivos maiores de preservação da vida e de retomada da normalidade.

Segundo as autoridades sanitárias13, é por meio do distanciamento social e do fechamento de escolas, bares, restaurantes, cinemas, entre outros, que se reduz a velocidade de propagação do vírus, aliviando assim a pressão sobre o sistema de saúde existente. Com isso, evita-se não só a proliferação da doença, mas também mortes desnecessárias por falta de leitos disponíveis para seu tratamento.

Consolidou-se na literatura técnica duas estratégias de distanciamento social. Aqui nos utilizaremos dos estudos do Imperial College de Londres14 para explorar cada uma. Segundo o Imperial College, na ausência de intervenções públicas, o coronavírus poderia levar a morte de 40 milhões de pessoas ao redor do mundo.

Caso adotada uma estratégia de mitigação, esse número poderia ser reduzido à metade. A estratégia de mitigação envolve o isolamento de pessoas idosas (redução de 60% em seus contatos sociais) e reduzir, mas não interromper, a transmissão dentre a maior parte da população (reduzir a 40% os contatos sociais). Caso adotada uma estratégia de supressão, compreendida como um intenso isolamento social de toda população (redução de 75% dos contatos sociais) e assim mantida até a criação de vacinas ou medidas para evitar novas pandemias, o número de mortes no mundo poderia cair para menos de 2 milhões.

Os cientistas do Imperial College são expressos ao dizer que não consideraram os duros custos econômicos e sociais da estratégia de supressão, notadamente superiores aos da estratégia de mitigação. Ainda assim, a possibilidade de salvar quase 18 milhões de vidas levou-os a recomendar a adoção imediata da estratégia de supressão.

Olhando para o cenário brasileiro, os cientistas do Imperial College estimam que em caso de inação governamental, mais de 1,1 milhão de vidas podem ser perdidas. Numa estratégia de mitigação não se conseguiria evitar aproximadamente 550 mil mortes, enquanto numa estratégia de supressão aproximadamente 44.212 mortes não poderiam ser evitadas15.

Assim, qualquer atividade que promova contatos sociais pode aumentar a transmissão da doença e o número de mortes. Considerando que um serviço público ou atividade econômica pode promover contatos sociais, há que se avaliar o risco que se quer assumir ao se permitir seu funcionamento. Pode-se mitigar tal risco impondo cuidados que reduzam a transmissão do vírus, seja através do distanciamento, seja através de medidas profiláticas.

A liberação de determinada atividade durante o enfrentamento do coronavírus, portanto, deve ser condicionada a uma análise técnica e científica sobre seu potencial de transmissão da doença. Em outras palavras, há um ônus técnico a ser superado para a liberação de atividades, no qual os fatores preponderantes de análise são sanitários, e não econômicos.

Conflitos Valorativos

O conflito entre as estratégias de supressão e de mitigação se dá, entre outros motivos, pelo risco de debacle econômica em função das medidas de prevenção da crise. Alguns dizem: “não podemos parar o país e gerar desemprego por conta de uma gripe que vai matar poucas pessoas, mais especificamente aquelas idosas.” E o outro lado retruca: “cada vida é importante, temos que nos proteger e preservar a vida de todos, buscando minimizar os impactos econômicos dessa crise”. Existe certo e errado, do ponto de vista moral, nessa discussão? Nossa opinião é que sim, e age mais corretamente aquele gestor que busca preservar mais vidas16.

A primeira visão, de imediato apelo econômico, parece estar relacionada a uma visão utilitarista, segundo a qual uma sociedade é justa quando suas instituições estão organizadas de modo a atingirem a maior satisfação individual para o maior número de pessoas. No utilitarismo realiza-se uma conta entre ganhos e perdas para todos e se o resultado for positivo, a ação é correta. Ora, ao defender a preservação dos empregos e da renda, mesmo assumindo o risco de inúmeras mortes, o saldo para a maior parte da população (que sobreviver) terá sido mais positivo, no sentido de maior preservação da renda e bem estar, do que aquele alcançado pela estratégia de ampla supressão. Assim, conforme a lógica utilitarista, justifica-se, em nome do bem da maioria, os danos causados a vida de alguns, especialmente os mais vulneráveis aos riscos do coronavírus.

A segunda visão, de menor apelo econômico, busca preservar o maior número de vidas, mesmo assumindo que, para preservar vidas, haverá danos econômicos e perda de bem-estar para a maior parcela da população. Chamemos essa visão de preservacionista, já que seu maior objetivo é preservar o maior número de vidas, independente do impacto que isso possa causar.

Qual rumo seguir? Sujeitar muitas pessoas à perda de bem-estar, risco de pobreza e miséria, ou assumir que uma grande quantidade de vidas será perdida, mas o bem-estar da maioria será preservado? Parece-me mais correta a visão preservacionista, por algumas razões.

Em primeiro lugar, estamos lidando com vidas. A preservação da vida é algo que não só legitima a constituição do Estado, mas também condiciona suas ações. A preservação da vida, no seu sentido mais imediato, tem prioridade léxica17 sobre outros valores, como bem-estar econômico, ou até nossa liberdade de ir e vir. Diante da iminência de perda de vidas e, em havendo uma alternativa menos danosa às vidas, mais correta é a ação que busque preservá-la18.

A segunda razão é a da ignorância. Simplesmente não sabemos quem e quando será acometido pelo coronavírus e qual a gravidade. Preocupamo-nos com nossa saúde, de nossos amigos e familiares e também de terceiros que sequer conhecemos. Estamos dispostos a arriscar a contaminação própria, de pessoas próximas ou de terceiros? Mesmo que fossemos mais auto-interessados e menos altruístas, racionalmente não queremos correr o risco de sermos infectados e morrermos, se existe um caminho alternativo a ser adotado. Diante da ignorância sobre quem contrairá a doença, o mais racional é suportar a visão preservacionista.

Terceiro, a igualdade. Não demos aos nossos governantes o poder para escolher quem vive e quem morre. Ou se alguns morrerão em benefício do bem-estar de outros. Não existem cidadãos de segunda classe. Mesmo sabendo que os idosos e pessoas com comorbidades são mais vulneráveis, não é certo fazer qualquer distinção entre cidadãos, salvo para beneficiá-los. Todos são iguais, reconhecemos uma igualdade básica entre todos nós, de modo que não cabe discriminar, ainda mais tratando-se de vidas, entre um grupo e outro.

Por outro lado, a visão utilitarista traz uma preocupação legítima: a debacle econômica causada pelo combate ao coronavírus pode nos custar mais vidas que àquelas perdidas diretamente em função da doença. É o remédio matando o paciente, por seus efeitos colaterais. Apesar de especialistas contestarem essa possibilidade, visto que os danos econômicos causados pelo coronavírus indevidamente remediado podem ser ainda maiores19, entendo que devemos, ao explorar a visão preservacionista, fazer nosso melhor para resguardar o bem-estar das pessoas.

Isso nos leva de volta à interpretação do standard de serviços públicos e atividades essenciais. No conflito entre os valores que o sustentam, tem maior peso o valor dado à vida.

Assim, o gestor público ou intérprete da lei que tiver diante de si a difícil decisão entre autorizar ou não a inclusão de determinada atividade no rol de atividades essenciais e indicar suas condições de funcionamento, deve dar maior peso ao valor da preservação da vida, fazendo seu melhor, entretanto, para que seja preservado o bem-estar social.

Integração Constitucional

Como vimos, a interpretação íntegra do standard de “serviços públicos e atividades essenciais” exige sua leitura textual restritiva, fundamentada em opiniões técnicas e com maior peso ao valor da vida. Tal interpretação é compatível com a nossa prática jurídica e constitucional?

Comecemos pela orientação do Min. Marco Aurélio ao julgar recentemente a ADI 6341, sobre conflitos de competência federativa nas ações de combate ao coronavírus. Ao dar interpretação aos dispositivos sobre conflito federativo da MP 926/20, ele o fez para “tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente”, ou seja, que a MP 926/20, “repita-se à exaustão – não afasta a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios”.

Qual é a “dicção do Supremo” sobre competência concorrente em matéria de saúde?

Historicamente, o Brasil adotou uma visão centralizadora da divisão de competências normativas entre os seus entes federados, reservando à União prerrogativas privativas e, quando concorrentes, prevalentes20. Entretanto, em algumas matérias, como meio ambiente e saúde, a jurisprudência do Supremo admite que a legislação dos demais entes federativos seja mais restritiva do que a da União veiculadora de normas gerais21. Isto, pois busca-se resguardar um bem maior, a saber o meio ambiente ou a proteção da saúde22.

A jurisprudência relacionada à temática ambiental e sanitária muitas vezes caminha conjuntamente, visto que impactos ambientais podem causar danos à saúde. Nesse sentido, para as duas temáticas adotam-se geralmente os princípios das prevenção e da precaução23. O princípio da prevenção indica que “em caso de certeza do dano ambiental este deve ser prevenido”. Já o princípio da precaução indica que, mesmo em caso de dúvida ou incerteza sobre o dano, também se deve agir prevenindo24.

Assim, na aplicação do standard de “serviços públicos e atividades essenciais” devem-se levar em consideração, na “dicção do Supremo”, os princípios da prevenção e precaução, podendo a decisão de ente federado que contrarie a norma geral mais flexível da União ser válida, caso preste mais homenagem a esses princípios25.

Um dos aspectos centrais dos princípios da precaução e da prevenção é sua deferência ao conhecimento científico.

Ao julgar a ADI 5592, em 2019, o Supremo assentou claramente que para a aprovação do mecanismo de dispersão por aeronaves de substâncias químicas para combate ao mosquito transmissor do vírus da dengue, do vírus chikunguya e do vírus da zika, é necessária a “aprovação das autoridades sanitárias e ambientais competentes e a comprovação científica da eficácia da medida26.”

Assim, o Supremo submeteu a constitucionalidade do método de prevenção ao zikavírus a dois testes, ambos deferentes ao conhecimento técnico-científico: (i) aprovação pela autoridade técnica competente e (ii) comprovação científica da eficácia da medida.

Transpondo ao contexto do combate ao coronavírus, na “dicção do Supremo”, caberá aos comitês de gestão de crise dos respectivos entes federados27, como órgãos técnicos que são, emitirem opinião técnica e cientificamente fundamentada acerca da necessidade de tal ou qual atividade ser incluída no rol de serviços públicos e atividades essenciais.

Conclui-se, pois, que a interpretação íntegra do standard de “serviços públicos e atividades essenciais”, i.e., restritiva, deferente à opinião técnica e com maior peso ao valor da vida, é sim integrada à nossa prática constitucional, principalmente levando-se em conta a jurisprudência do Supremo em matéria ambiental e de saúde, nas quais os princípios da prevenção e da precaução têm força preponderante, a ponto de se justificar eventual suplantação da divisão formal de competências normativas e administrativas do texto constitucional.

Igrejas são atividades essenciais?

Como funciona a aplicação de um standard ao caso concreto? Até o momento interpretamos o que o standard significa, ou seja, o que deve ser levado em consideração quando se lê o termo “serviços públicos e atividades essenciais”. Cabe agora aplicar o standard a um caso concreto para exemplificar como funcionaria. Usarei o caso hipotético de um Governador que deseje incluir “igrejas” dentro do rol de atividades essenciais, supondo que a União não o tenha feito.

Em primeiro lugar, o Governador precisará submeter seu pedido à opinião técnica de seu respectivo comitê de crise para combate ao coronavírus. Isso cumpre o quesito contido na jurisprudência do Supremo de que é necessária “aprovação de autoridade técnica”.

O gestor do comitê de crise, por sua vez, precisará seguir os quatro testes que percorremos para verificar se igrejas são ou não são atividades essenciais.

Primeiro, o gestor deve avaliar, a partir do texto da norma, se “igrejas” são mesmo “atividades essenciais indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Lembrando tal avaliação deve ocorrer interpretando o texto do standard de forma restritiva, o que significa que se a abertura de igrejas não for uma condição sine qua non, à sobrevivência, saúde ou segurança da população, elas devem permanecer fechadas.

Segundo, deverá levar em conta o aspecto de policy do standard. A pergunta aqui é o quanto a abertura de igrejas aumenta o contato social entre as pessoas, aumentando, assim, o risco de transmissão do vírus. Nesse quesito, considerações técnicas e científicas, como, por exemplo, qual a distância entre pessoas evita a propagação do vírus e como uma igreja pode respeitá-la em seus cultos, são fundamentais para a tomada de decisão. Sem tais considerações não se pode avançar. E a depender de seu resultado, tampouco.

Terceiro, seu aspecto valorativo. No conflito entre os valores da vida e o da liberdade/prática religiosa, qual deve prevalecer. Sabendo que a preservação da vida tem prioridade, vida prevalece. Seria possível, entretanto, buscar meios menos gravosos para a manutenção da prática religiosa, que, ainda assim, respeitassem a prioridade da vida? Eventualmente aqui o gestor poderá balancear os dois valores e buscar, mediante fundamentação técnico-científica, alguma solução intermediária, na qual a igreja possa funcionar sob determinadas condições que evitem a transmissão do vírus.

Por fim, supondo que o resultado desses testes indicasse a possibilidade de inclusão de igrejas dentro do rol de atividades essenciais, quão sustentável seria essa decisão dentro do arcabouço constitucional brasileiro?

Vimos que em matéria ambiental e sanitária pode ser admitida a suplantação da distribuição de competências federativas se o ente respeitar integralmente os princípios da prevenção e da precaução. Nesse caso, não havendo a União autorizado o funcionamento de igrejas, entendo ser inviável que Governador o faça, já que sua decisão é menos protetiva do que a da União.

E caso fosse a União buscando a inclusão de igrejas como atividade essencial? Os mesmos testes teriam de ser percorridos, inclusive aquele exigido pelos princípios da prevenção e da precaução.

Ao seguir esse roteiro, o gestor público terá realizado uma aplicação íntegra e integrada à Constituição do standard de “serviços públicos e atividades essenciais”. Nem sempre a resposta irá satisfazer os anseios políticos de seus superiores. Mas caso fuja desse roteiro, sua decisão será juridicamente frágil e sujeita à desconstituição por outros entes ou pelo Judiciário.

Integridade como remédio

A imprevisibilidade causada pelas disputas políticas entre nossos governantes pode ser remediada através do direito. Contra a imprevisibilidade e a consequente perda de tempo e de vidas, a integridade das decisões político-jurídicas serve como antídoto. Decisões íntegras e integradas à Constituição são resistentes a contestações e revisões políticas e judiciais.

No âmbito político, uma decisão íntegra se destaca e se solidifica junto à opinião pública, ajudando a orientar a conduta dos cidadãos, por sua correta fundamentação técnico-científica, valorativa e constitucional. Ela ganha confiança e legitimidade popular.

No âmbito judicial, uma decisão íntegra resiste à tentativas de sua desconstituição por obter deferência dos juízes aos ritos formais e considerações materiais que justificaram sua tomada. Por outro lado, o juiz que busque desconstituí-la terá o ônus de buscar uma melhor fundamentação, percorrendo o mesmo roteiro.

Nesse texto, busquei oferecer um roteiro, a partir da interpretação do standard de “serviços públicos e atividades essenciais”, que garanta maior integridade às importantes decisões que serão tomadas nos próximos meses. Outros roteiros, igualmente íntegros e coerentes, podem e devem ser oferecidos pelos intérpretes do direito28.

Enquanto todos estivermos buscando a integridade de nossa prática jurídica, estaremos juntos construindo uma saída para a pandemia sanitária do coronavírus.

Felipe Daud é advogado e mestre em Direito pela New York University. E-mail: [email protected]

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1 O Supremo já teve de deliberar, somente nesse período inicial da quarentena, sobre temas controversos, como fluxo acelerado de medidas provisórias, liberação de recursos orçamentários além dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal e para Estados e Municípios, a interpretação das regras federativas# e limites da publicidade oficial. Vide, respectivamente, http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440384&ori=1; http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440442&ori=1 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439960 e http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440567&ori=1

2 Art. 1º Dec. 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamentou a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, conforme alterações realizadas pela Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020.

3 Vide Decreto 64.881, de 22 de Março de 2020, disponível em https://www.saopaulo.sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/decreto-quarentena.pdf

5 Vide Ronald Dworkin, “The Model of Rules I,” reprinted in Taking Rights Seriously (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1977); Ronald Dworkin. Law´s Empire. (Oxford, UK: Hart Publishing, 1986) e Ronald Dworkin. Justice for Hedgehogs. (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2011). Para uma excelente introdução à filosofia do direito de Dworkin, vide Ronaldo Porto Macedo. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. (São Paulo, SP: Editora Saraiva, 2013).

6 O uso de standards é comum na doutrina e prática jurídica norte-americana. Sua definição mais canônica pode ser encontrada nos acadêmicos da corrente de “Legal Process”, Henry M. Hart and Albert M. Sacks para os quais um standard, “é uma diretiva jurídica que envolve, além de uma consideração factual, uma avaliação qualitativa sobre as considerações factuais, em termos de suas consequências, justificativas morais ou outros aspectos da experiência humana”. Vide Henry Hart & Albert Sacks, The Legal Process: Basic Problems In The Making And In The Application Of Law (Cambridge, 1958), p. 140. Mais recentemente, Cass Sunstein definiu standards como “preceitos jurídicos cujo conteúdo depende de suas aplicações” , vide Cass Sunstein, Rules and Rulelessness, John M. Olin Law & Economics Working Paper N. 27, 1994, p 9. Outros autores como Kathleen Sullivan e Duncan Kennedy indicaram respectivamente que “um standard faz com que a tomada de decisão no momento de sua aplicação retome os princípios ou políticas (policies) a uma situação factual” e que “a aplicação de um standard requer do juiz tanto uma descoberta dos fatos de uma situação particular, quanto a necessidade de avaliá-los em termos dos propósitos ou valores sociais inclusos no standard.” Vide Kathleen Sullivan, The Justices of Rules and Standards, 106 Harv. L. Rev. 22 (1992), at 58. e Duncan Kennedy, Form & Substance in Private Law Adjudication, 89 Harvard Law Review 1685 (1976), at 1688.

7 Vide, principalmente, o Capítulo sobre os “Princípios Gerais da Atividade Econômica” do Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira da Constituição (arts. 170 e seguintes) .

8 O juiz federal Márcio Santoro Rocha, da 1ª Vara Federal de Duque de Caxias (RJ), ao suspender nacionalmente a inclusão de igrejas e lotéricas como atividades essenciais, o fez por, dentre outros motivos, não serem atividades constantes à Lei 7.783/89, que regula o direito de greve e define as atividades essenciais e o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Embora a Lei 13.979/20, use linguagem similar à lei 7.783/89, não parece correto limitar as atividades essenciais àquelas previstas na Lei de 1989, pois, além de ser norma posterior, a Lei 13.979/20 tem uma finalidade específica de promover ações de combate ao coronavírus. Talvez a Lei de 1989 pudesse servir como um parâmetro comparativo, mas parece exagerado seu uso como um critério para a atual situação. Vide a decisão em https://www.conjur.com.br/dl/decisao-juiz-loterica-igreja2.pdf

9 Art. 3º, §1º, caput do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020.

11 Apesar de sua interpretação ter de ser restritiva, o Presidente, através de seu Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, abriu grande margem para incertezas e furos no combate à pandemia. Isto pois incluiu, de maneira ampla, dentre os serviços públicos e atividades essenciais “as atividades acessórias, de suporte e a disponibilização dos insumos necessários”. A definição de tais atividades abre margem para grande flexibilização das restrições da quarentena. Ainda, o Presidente delegou ao Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 a competência para definir outros serviços públicos e atividades considerados essenciais.

12 Agradeço ao apoio da Lais Yousseff na pesquisa e elaboração desta seção.

16 Esta seção tem clara inspiração na filosofia política e moral de John Rawls, o que parece estar em linha com a visão dos demais analistas dos dilemas políticos e morais impostos pelo coronavírus. Vide https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2020-03-29/coronavirus-pandemic-puts-moral-philosophy-to-the-test?sref=xr8AdRyo

17 Sobre a definição de prioridade léxica, vide John Rawls. A theory of justice. (Cambridge, MA: 1971), capítulo 1.

18 Mesmo em Hobbes, para quem o soberano era absoluto e tinha o direito de poder mandar matar súditos ainda que injustamente, admitia que o homem sempre preserva sua liberdade de desobedecer mandamentos do soberano que o mandem abster-se de defender sua própria vida. Hart, analisando as delimitações conceituais que fazem parte do conceito de direito (e portanto de Estado e sua ação legítima), observou que os sistemas jurídicos têm uma dimensão em comum: a aceitação da sobrevivência como uma finalidade necessária. Afinal, não estamos em um clube de suicidas.

21 Idem, p. 13.

22 O maior defensor dessa linha é o Min. Ricardo Lewandowski, segundo o qual “ em matéria de proteção ao meio ambiente e em matéria de defesa da saúde pública, nada impede que a legislação estadual e a legislação municipal sejam mais restritivas do que a legislação da União e a legislação do próprio Estado, em se tratando dos municípios”.

23 Sobre a papel dos princípios da prevenção e da precaução nas medidas de combate ao coronavírus, vide a decisão cautelar proferida pelo Min. Barroso da ADPF 669, disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5884084 .

24 Paulo Affonso Leme Machado, conforme citado no Voto da Min. Carmen Lucia na ADI 5592, p. 4, disponível em http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp?classe=ADI&numero=5592&origem=AP

25 Se em circunstâncias normais, já seria possível defender norma sanitária mais protetiva, mesmo que em descompasso com o regramento federal, no atual contexto isso parece ainda mais viável. Conforme o ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça, César Asfor Rocha, não vivemos em tempos normais, e devemos admitir que “a questão da competência regular cede o passo diante das emergências manifestas” para o combate ao coronavírus. Vide https://www.conjur.com.br/2020-mar-27/asfor-rocha-competencias-federais-estaduais-materias-urgencia

26 Nos termos da emenda da ADI 5592: “INAFASTABILIDADE DA APROVAÇÃO PRÉVIA DA AUTORIDADE SANITÁRIA E DA AUTORIDADE AMBIENTAL COMPETENTE. ATENDIMENTO ÀS PREVISÕES CONSTITUCIONAIS DO DIREITO À SAÚDE, AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E AOS PRINCÍPIOS DA PRECAUÇÃO E DA PREVENÇÃO. PROCEDÊNCIA PARCIAL DA AÇÃO.”

27 O Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 do Governo Federal, por exemplo, foi instituído pelo Decreto 10.277, de 2020, e conta com nada menos do que 27 membros, das diferentes áreas do governo. Uma de suas competências é justamente “definir outros serviços públicos e atividades considerados essenciais” (vide art. 5º do Dec. 10.282/2020). Já no Estado de São Paulo, o Comitê Administrativo Extraordinário COVID-19, composto por cinco membros, tem por atribuições deliberar sobre casos “adicionais de medidas de quarentena, ou seja, expansão ou não de serviços públicos e atividades essenciais.” (vide Decretos 64.864, de 2020, e 64.881, de 2020).

28 Nesse sentido vale ler a decisão do Min. Barroso na cautelar da ADPF 669 e também a decisão da juíza Laura Bastos Carvalho na liminar que suspendeu a campanha publicitária do governo federal contra as medidas de combate ao coronavírus, disponível aqui. Apesar de não estarem lidando com a interpretação de serviços públicos e atividades essenciais, ambas traçam roteiros similares ao exposto nesse artigo, mas sem o detalhamento analítico aqui oferecido.