João Batista Paschoal

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Capítulo 1

Execração pública

Um dos episódios mais graves no relacionamento com a secretaria da Segurança Pública ocorreu no final de 2005. Era uma época de muitos problemas, pois estávamos começando a enfrentar as rebeliões promovidas pelo PCC. Um dos cargos mais importantes na estrutura hierárquica da SAP é o do coordenador das unidades prisionais. O Estado foi dividido em [simple_tooltip content=’Capital – Grande São Paulo, Central, Noroeste, Oeste e Vale do Paraíba – Litoral.’]cinco territórios[/simple_tooltip] e em cada um deles, com média de 20 a 25 unidades prisionais, havia um coordenador, responsável pelo acompanhamento direto de tudo o que ocorria nas penitenciárias. Era o coordenador que servia de elo entre o secretário e os diretores gerais das unidades.

Desde que essa divisão foi feita, no começo de 2001, dos coordenadores que iniciaram só tinha restado Antonio Paulo Veronezi, da Região Noroeste, porque os demais, por um motivo ou por outro, foram substituídos. João Batista Paschoal era o coordenador da Região Central, com sede em Campinas, uma das mais difíceis do Estado, por envolver grande número de unidades prisionais (33) e também por cuidar da maior parte dos Centros de Ressocialização administrados com participação das ONGs. Paschoal se mostrava entusiasta dessa nova forma de administrar e parecia sinceramente empenhado em ampliar a participação da sociedade, buscando constantemente novas parcerias. Ele foi nomeado coordenador na época em que dirigia a Penitenciária de Itaí, a primeira do Estado a abrigar apenas autores de crimes sexuais. Era um dos diretores mais antigos do sistema, com larga experiência e boa liderança perante seus companheiros.

Nas manifestações públicas Paschoal fazia questão de dizer que nunca havia entendido meu empenho em valorizar a experiência da parceria com ONGs até conhecer o Centro de Ressocialização de Bragança Paulista, onde tudo teve início. Falava que ao ver o prédio onde funcionava a antiga cadeia pública de Bragança, adaptado para Centro de Ressocialização, ficava com certeza de que aquilo tinha tudo para dar errado. Porém, incrivelmente, tudo dava certo, não só em termos de baixo custo, como na ausência de rebeliões e de fugas. Acrescentava que esse fato demonstrava o acerto da novidade e que todos os princípios cultivados pela secretaria ao longo dos anos tinham que ser revistos.

Paschoal, no meu conceito, era um dos coordenadores que mais tinham afinidade com a nova política de humanização dos presídios.

*     *     *     *

No final de dezembro de 2005, quando me encontrava despachando no gabinete, o secretário adjunto, Clayton Alfredo Nunes, veio informar que o Delegado de Polícia Ruy Ferraz Fontes trazia uma grave notícia e que precisava, urgentemente, falar comigo.

Ruy era titular da delegacia de Roubo a Banco do Deic e principal responsável no Estado pelas investigações sobre crime organizado, especialmente o PCC. Minha relação com ele era cordial, mas restrita ao âmbito profissional. Por muitas vezes já havia me reunido com ele para trocar informações, sem necessidade de observar algumas regras formais que alguns secretários costumavam exigir. Sempre atendi a este delegado e a todos os demais que me procuraram, sem pedido do secretário da Segurança Pública, formalidade que as regras do protocolo e da hierarquia mandavam observar.

Assim, como das outras vezes, mandei Ruy entrar, juntamente com Clayton e ouvi o que tinha a dizer. O relato que veio a seguir me deixou estarrecido: dizia ele que iniciaram há alguns meses uma investigação sobre uma advogada, mulher de um juiz de Direito, a pedido da Corregedoria Geral da Justiça. No curso dessas investigações, em escutas telefônicas autorizadas pela Justiça, conversas do coordenador João Batista Paschoal teriam sido gravadas. Nessas conversas, segundo o delegado, haveria fortes provas de seu envolvimento com o crime organizado e veementes indícios de participação em atividades ilícitas. Trazia em mãos um CD que conteria as provas do que relatava. Com base nessas provas – prosseguiu — o Deic pediu a prisão temporária de Paschoal, já decretada pelo Judiciário e que deveria ser imediatamente cumprida. Acrescentou que não daria cumprimento ao mandado sem que eu tivesse conhecimento.

A notícia me deixou atordoado. Não tinha motivos para duvidar da versão que me foi apresentada, mas não conseguia acreditar nela: justamente Paschoal, pessoa que me inspirava tanta confiança, estaria envolvido com crime organizado?

O mandado de prisão que o delegado tinha em mãos não deixava dúvidas. A Justiça havia decidido prender Paschoal por cinco dias. A ordem seria cumprida, a menos que eu contasse, ou fizesse a notícia vazar, dando tempo a Paschoal para procurar um advogado e tentar um habeas corpus. Não poderia fazer uma coisa dessas. Até tive, confesso, um lampejo na mente sugerindo essa saída, pelo menos para que ele tivesse a oportunidade de se explicar. Não me deixei levar pela vontade momentânea e perguntei ao Dr. Ruy quando pretendia cumprir a ordem: “amanhã” — foi sua resposta fria.

Mandei chamar o Corregedor Geral do Sistema Penitenciário, Antonio Ruiz Lopes, o adverti sobre o absoluto sigilo do que contaria a seguir e pedi a ele que acompanhasse o delegado na diligência para prender Paschoal. Recomendei que todo cuidado fosse observado para evitar humilhações e constrangimentos desnecessários. O delegado procurou me tranqüilizar, dizendo que a notícia não vazaria para a imprensa e que a secretaria não seria atingida. Não era essa minha preocupação. Arranhões na imagem da secretaria não eram nada diante da gravidade do que aconteceria àquele homem que sempre me pareceu uma pessoa honrada e honesta.

Ponderei sem muita veemência que pelo menos a polícia deveria ter tido a consideração de me cientificar das investigações em curso, antes do decreto de prisão, para não ser surpreendido daquela forma. O sentimento de indignação era enorme, mas não podia, naquele momento, dizer o que tinha vontade de dizer, pois poderia estar tomando a defesa de alguém seriamente envolvido em prática criminosa.

*     *     *     *

No dia seguinte, 28 de dezembro de 2005, logo pela manhã, a ordem de prisão foi cumprida. O Corregedor Ruiz me telefonou relatando as cenas que teve de presenciar, vendo Paschoal ser preso e levado para a viatura policial na presença de funcionários que eram seus subordinados. Depois sua casa foi vasculhada na busca de outras evidências dos ilícitos que teria cometido.

A notícia da prisão caiu como uma bomba na secretaria. Se fizermos comparações com outras áreas, a figura do coordenador, na secretaria da Administração Penitenciária, tinha importância equivalente a de um Ministro de Estado no Governo Federal, ou de um secretário no Governo do Estado. Imaginem o impacto da notícia da prisão de um Ministro junto aos servidores do ministério. Foi com essa perplexidade que os funcionários tomaram conhecimento da prisão de Paschoal.

Na tarde daquele mesmo dia as notícias começaram a ser veiculadas pelos meios de comunicação. A secretaria da Segurança Pública emitiu nota oficial com o título “Deic desvenda Operação Transferência”, dizendo:

“Após cinco meses de intenso trabalho, policiais do Departamento de Investigação Sobre o Crime Organizado, em parceria com a Delegacia de Roubo a Banco, descobriram um esquema que facilitava a transferência de presos do Primeiro Comando da Capital das Penitenciárias do Estado” (…) “Policiais da 5ª Delegacia, chefiados pelo Dr. Ruy Ferraz Fontes, desconfiaram das transferências aparentemente sem motivos, de integrantes do PCC. Foram cinco meses de investigações, 800 páginas de transcrição de conversas e centenas de documentos apreendidos” (…) “As investigações ocorreram no mais absoluto sigilo. É a alma do negócio para que se possa obter resultado, ressaltou Bittencourt, diretor do Deic”.

No período da tarde daquele mesmo dia, o diretor Deic, Godofredo Bittencourt, e Ruy Fontes (aquele mesmo que prometeu nada divulgar para a imprensa) concederam entrevista coletiva a dezenas de repórteres e a matéria foi ao ar em todos os jornais das emissoras de TV, inclusive no “Jornal Nacional”, da Rede Globo. Em quase todas havia menção à prisão “do homem de confiança” do secretário Nagashi Furukawa. No dia seguinte a notícia e a fotografia de Paschoal estavam em praticamente todos os jornais.

Alguns dias depois a revista [simple_tooltip content=’Edição nº 398, de 01.01.2006.’]“Época”[/simple_tooltip] deu à notícia o título: “O Vendedor de Transferências”:

“João Batista Paschoal, coordenador de 33 presídios da região de Campinas e integrante da cúpula da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), foi preso no dia 27, acusado de integrar um esquema de venda de transferências para detentos do Primeiro Comando da Capital (PCC). Homem de confiança do secretário da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, Paschoal era liderado pela advogada Suzana Volpi Michele, também presa. Os detentos pagavam entre R$ 7 mil e R$ 8 mil para ficar em cárceres mais próximos de suas quadrilhas e parentes. Pelo menos oito presidiários, dois já identificados e presos, pagaram pela remoção. Todos responderão por corrupção e formação de quadrilha”.

Fiquei obviamente abalado com a situação.

Telefonei várias vezes para Marcelo Martins de Oliveira, secretário adjunto da Segurança Pública, falando do absurdo que fizeram: primeiro, por não terem me dado ciência das investigações; segundo, porque não via motivos para a prisão temporária. Paschoal era um servidor com mais de 30 anos de bons serviços prestados, com residência fixa, que não iria fugir e nem dificultar as investigações. Além disso, não dando ciência a mim sobre as investigações, ficava a impressão de que eu poderia acobertar ou dificultar as investigações.

— “Será que vocês estão pensando que sou conivente com quadrilhas”? – era minha pergunta.

Marcelo reconheceu o erro na condução das investigações e prometeu punir os culpados e explicar ao governador as razões da polícia ter agido daquela forma.

Nos dias seguintes procurei Geraldo Alckmin, mostrei minha indignação, falei que equipes do mesmo governo não podem trabalhar daquela forma, porque só promovem a desunião. Ele me ouviu atentamente e prometeu verificar os fatos. Todavia, não sei dizer o que aconteceu, porque não tive mais retorno e nem me via em condições de exigir muito. Afinal, a prisão temporária acabou se transformando em preventiva, o que indicava, ao menos em tese, que Paschoal poderia ter cometido crimes graves. Até o habeas corpus impetrado em seu favor teve a liminar negada pelo desembargador Luiz Carlos Ribeiro dos Santos, presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

*     *     *     *

Alguns dias depois veio a reunião mensal com os coordenadores e assessores da pasta. O sentimento de consternação e de tristeza era evidente no semblante de todos. Perci de Souza, coordenador da Capital e Grande São Paulo, relatou ter ido visitar Paschoal no Deic e lá descobriu que ele estava recolhido em uma cela, dormindo sobre um papelão. Disse ter levado um colchão e pediu aos policiais para entregarem ao Paschoal, não sendo atendido.

— “Procuramos fazer tanto pela polícia, recebemos milhares de presos das suas carceragens e nem um colchão quiseram entregar ao nosso companheiro”.

Ao final da reunião os coordenadores se reuniram sem minha presença e deliberaram pagar advogado para que Paschoal não ficasse sem uma boa defesa. Todos sabiam das precárias condições financeiras dele, que havia se separado da mulher em data recente. Foi o coronel Bueno que se incumbiu de vir à minha sala, em nome dos demais, pedindo sugestões sobre o advogado e esclarecendo que arcariam com os honorários. Fiquei comovido com o gesto de solidariedade. Dei o telefone do escritório “Toron, Torihara e Szafir”, um dos melhores na área criminal do País, esclarecendo que meu filho fora estagiário lá.

— “Tenho certeza de que Paschoal será bem defendido se eles aceitarem” — disse.

O coronel Bueno telefonou da minha sala para Alexandra Szafir, uma das sócias daquele escritório, explicou a situação e pediu formalmente seu empenho para defender a causa. Humildemente esclareceu que os honorários seriam pagos pelos assessores e coordenadores, todos sem grandes recursos financeiros. Alexandra respondeu que faria gratuitamente a defesa e que seria uma honra poder atender, pois conhecia de perto o trabalho sério que era desenvolvido na SAP durante minha gestão. Bueno, coronel da linha dura da PM, com aquele grande bigode, não conteve as lágrimas de emoção.

Não era coerente que uma pessoa que consegue gestos desse tipo em seu favor fosse um quadrilheiro corrupto, envolvido em esquemas de fuga de presos do PCC — foi meu pensamento naquele momento. .

*     *     *     *

Os dias foram se passando e as medidas judiciais tomadas pelos advogados não traziam o resultado esperado. Paschoal continuava preso, foi denunciado e a cada dia se revoltava mais. Começou a transmitir recados para mim, por meio das pessoas que iam visitá-lo, afirmando que eu era o culpado pela prisão. A pessoa visada seria eu e não ele, segundo seu raciocínio torto. Era absurdo seu pensamento, mas busquei entender a situação, porque um homem naquela situação certamente fica com a mente confusa e não consegue raciocinar direito.

Finalmente, depois de cerca de três meses sua liberdade foi concedida e ele foi morar com a companheira, na cidade de Atibaia. Pedi para entrarem em contato com ele, perguntando sobre sua situação e o convidando a comparecer na secretaria a fim de acertar sua situação funcional. Embora estivesse em licença premio, havia necessidade de definir seu local de trabalho. A resposta veio com pedido de paciência, porque a dificuldade financeira era tanta, que sequer dinheiro para o ônibus ele estava conseguindo arrumar. Fizemos de novo uma coleta de dinheiro entre os coordenadores e assessores e conseguimos arrecadar um valor razoável, que eu mandei entregar na casa de Paschoal em Atibaia.

*     *     *     *

Depois, já em agosto de 2006, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão relatado pelo desembargador Almeida Braga, acolheu o [simple_tooltip content=’Processo nº 00966073.3/8-000-000.’]habeas corpus[/simple_tooltip] impetrado por Alberto Zacharias Toron, Alexandra Lebelson Szafir e Heloisa Estelita, todos do escritório já mencionado. A denúncia foi rejeitada e anulado o processo, com expresso reconhecimento de que João Batista Paschoal não cometera nenhum crime.

É este o teor do acórdão:

“Resumidamente, a análise da exordial indica os seguintes fatos que determinaram o ajuizamento da ação penal contra o paciente e demais denunciados:

Os denunciados se associaram para obter transferência de presos de um presídio a outro. Suzana era intermediária e recebia uma determinada quantia para providenciar as transferências. Para visitar os presos, se cadastrou com o nome de solteira, sendo que usava nome de casada há mais de dez anos. Cristiano e Carlos foram transferidos de um presídio para outro. João Batista Paschoal participou das remoções de presos sabendo que eram realizadas de forma espúria, deixando de praticar atos de ofício.

O fato de Suzana ter inserido dados falsos no cadastro para visitar presos não pode ser atribuído ao paciente. O simples exame da denúncia não indica qualquer nexo entre o paciente e o ato praticado por Suzana (fornecimento do nome de solteira no cadastro existente para fiscalizar visitas a presos), o qual, segundo a denúncia configura violação do artigo 299 do Código Penal. Não lhe pode ser atribuída a prática desse delito por ser um ato isolado de Suzana.

Dispõe o artigo 288 do Código Penal: “Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para fim de cometer crimes”.

A denúncia afirma que: “Consta dos inclusos autos de inquérito policial que ULISSES AZEVEDO SOARES, qualificado a fls. 217, MANOEL CRUZ DA SILVA, qualificado a fls. 223, JOÃO BATISTA PASCHOAL, qualificado a fls. 229, SUZANA VOLPINI MICHELI, qualificada a fls. 339, OSVALDO MOURA, IVONALDO XAVIER ADELINO, CRISTIANO RICARDO RAMOS ÁLVARES, CARLOS ADRIANO DE SOUZA, e outros não identificados, de agosto a dezembro de 2005, nas Unidades Prisionais da Região Central do Estado de São Paulo, que compreende as cidades de Casa Branca, Mococa, Itirapina, Hortolândia, Sorocaba, Itapetininga, Guareí e Campinas, associaram-se em bando para fim de cometer crimes, consoante a seguir historiado”.

A seguir a denúncia faz um relato extenso de atividades praticadas pelo bando, e conclui que o objetivo era conseguir remoções de presos de um presídio para outro para fim de conseguirem fugir.

O primeiro fato que deve ser salientado é que a transferência de presos de um presídio para outro não é crime. Não há dispositivo penal que tipifique o ato de transferir um preso de um presídio para outro como crime.

A associação dos denunciados para fim de obter transferências de presos de um presídio para outro não pode ser considerada como associação criminosa, considerando que o fim visado não configura infração penal.

Haveria crime se as transferências de presos de um presídio para outro ocorressem mediante oferecimento de vantagens indevidas a funcionário público. Nessa hipótese, os denunciados violariam o artigo 333 do Código Penal, e estariam associados em bando para cometimento de crimes.

Ocorre que a denúncia não imputa delito de corrupção ativa praticada pelos acusados. Ela menciona que Suzana cobrava de R$ 7.000,00 (sete mil reais) a R$ 8.000,00 (oito mil reais) por transferência, mas não afirma que Suzana usava esse dinheiro para corromper funcionários, tanto é que ela não está sendo acusada de violação do artigo 333 do Código Penal.

Diz a denúncia: “Pelo que se apurou, a acusada Suzana Volpini Michelli cobrava, para realização da remoção, cerca de R$ 7.000,00 (sete mil reais) a R$ 8.000,00 (oito mil reais). Desse valor retinha cerca de R$ 3.000,00 (três mil reais) por seus serviços. O restante era entregue a Ulisses e Manoel que, tratando diretamente com o denunciado Paschoal, que os recebia em seu gabinete, com ele ou repartiam o dinheiro ou retribuíam o “favor” da transferência com prestação de outros serviços, mormente porque Paschoal sabia que Ulisses e Manoel recebiam dinheiro pela remoção dos detentos. Há forte indicação nos autos, ainda, de que a denunciada Suzana, enquanto não o tivesse admitido, chegou a entregar quantias diretamente ao denunciado Paschoal, sendo encontrada na sua agenda anotação de que a ele entregou R$ 100,00 (cem reais) (fls. 259), ignorando-se se a cifra era mesmo esta ou representação de código (cf., ainda, fls. 85/88, do anexo I)”.

Manoel e Ulisses não são funcionários públicos. Eles são ex-detentos. A denúncia afirma que eles intermediavam na transferência de presos. Esse fato, por si só, não configura crime.

A denúncia procura afirmar que Manoel e Ulisses, na intermediação de transferências de presos, procuravam o paciente e lhe entregavam parte do dinheiro que recebiam ou lhe prestavam outros favores.

Se o paciente recebia parte do dinheiro ou favores, a denúncia tinha que lhe ter imputado violação do artigo 317, caput, do Código Penal e, por outro lado, acusado Manoel e Ulisses de violação do artigo 333 do Código Penal. A denúncia não lhes imputou esses crimes.

A denúncia afirma que, com base nesse esquema montado, foram transferidos os detentos Cristiano Ricardo Ramos Álvares e Carlos Adriano de Souza. Eles foram denunciados como integrantes do bando.

As transferências de Cristiano e de Carlos estão documentadas nos autos. Passa-se ao exame dos documentos.

Carlos Adriano de Souza, matrícula nº 91.340-0: deu entrada na Penitenciária de Araraquara, estabelecimento penal de segurança máxima, no dia 04.10.2005, procedente do Centro de detenção Provisória de Americana, por autorização do Secretário Adjunto da Pasta, em virtude de exclusão do regime disciplinar especial – RDE, nos termos da Resolução SAP nº 50/2002. (fls. 641).

Carlos Adriano estava preso no presídio de Florida Paulista. Ele foi transferido para o “Centro de Detenção Provisório de Americana” no dia 03 de maio de 2005 para cumprir 180 (cento e oitenta) dias no Regime Disciplinar Especial (RDE). O prazo para desinternação dar-se-á no dia 08 de outubro de 2005. O pedido de transferência foi feito no dia 01 de setembro de 2005 por Valdemir Jorge, Diretor do centro de Segurança e Disciplina. O expediente foi remetido ao Coordenador de Unidades Prisionais da Região Central do Estado por Newton Lara – Diretor Técnico de Departamento (fls. 649).

O expediente foi acompanhado das declarações de Adriano e de Atestado de Permanência e Conduta Carcerária, este assinado por Valdemir Jorge. O Coordenador de Unidades Prisionais da Região Central era o paciente. Este se manifestou nos seguintes termos:

Considerando o expediente motivado pelo Diretor de Centro de Detenção de Americana (RDE), esta Coordenadoria é favorável à remoção do sentenciado para uma unidade de regime comum” (fls. 652).

O expediente, após manifestação do paciente, foi devolvido ao “Centro de Detenção Provisório de Americana”, onde Clayton Alfredo Nunes, Secretário Adjunto, determinou a remoção de Carlos Adriano para a Penitenciária de Araraquara (fls. 653).

Cristiano Ricardo Ramos Álvares, matrícula nº 302.923.8: deu entrada na Penitenciária de Itirapina II, estabelecimento penal de segurança máxima, em 16.09.2005, procedente da Penitenciária de Riolândia, em face de autorização do Coordenador das Unidades Prisionais da Região Oeste do Estado, em atendimento a pedido de transferência para aproximação familiar. No dia 22.11.2005, retornou apara a Penitenciária de Riolândia, por autorização do Secretário Adjunto desta Pasta, em virtude de representação do Delegado de Polícia Diretor do DEIC, ratificada pelo Gabinete do Secretário da Segurança Pública (fls. 642).

A transferência de Cristiano da Penitenciária de Riolândia para a Penitenciária de Itirapina II foi autorizada por José Reinaldo da Silva (fls. 666). A transferência de Itirapina II para a Penitenciária de Riolândia foi solicitada por Nelson Rodrigues – Delegado de Polícia – Assessoria Prisional (fls. 667). O pedido foi endossado pelo Dr. G. Bittencourt Filho, Delegado de Polícia Diretor do DEIC (fls. 668). O Dr. Jurandir Correia de Sant’Ana, Delegado Geral de Polícia Adjunto, foi quem determinou a remessa dos pedido feito por Dr. G. Bittencourt Filho ao Dr. Nelson Rodrigues (fls. 668). O Dr. Ruy Ferraz Fontes, delegado de Polícia Titular, foi quem intercedeu junto ao Dr. Emygdio Machado Neto, Delegado de Polícia Divisionário, para que o pedido fosse atendido (fls. 669 e 67). O Dr. Clayton Alfredo Nunes, Secretário Adjunto, autorizou a transferência (fls. 671).

O paciente não teve nenhuma atuação na transferência de Cristiano e na transferência de Carlos ele despachou um mero expediente.

A denúncia afirma que o paciente teria recebido vantagens ou favores para que as transferências de Carlos e de Cristiano fossem feitas. A denúncia faz menção a transferências de outros presos sem mencionar nomes. Estas menções por serem vagas e não identificadas não podem ser objeto de denúncia. De concreto há, somente, as transferências de Carlos e de Cristiano.

Admitindo-se que os fatos fossem verdadeiros, tem que se reconhecer que o paciente exerceu influência ou subornou as seguintes pessoas: Valdemir Jorge, Newton Lara, Clayton Alfredo Nunes, José Reinaldo da Silva, Nelson Rodrigues, G. Bittencourt Filho, Jurandir Correia de Sant’Ana, Ruy Ferraz Fontes e Emygdio Machado Neto. Todas elas participaram das transferências.

O nome de nenhuma dessas pessoas consta na denúncia. Nenhuma delas foi arrolada como testemunha. O paciente não conversou com nenhuma delas para conseguir as transferências de Carlos e de Cristiano.

Considerando-se que o paciente se tenha associado ao demais denunciados para transferência de presos e reconhecendo-se que eles somente podiam cometer corrupção passiva, pois recebiam, segundo a denúncia, dinheiro para providenciar as transferências, a denúncia tinha que mencionar quais foram as pessoas que receberam dinheiro do paciente e de seus associados para providenciar as transferências, considerando-se que elas não foram realizadas pelo paciente.

A denúncia não aponta ninguém que o paciente tenha subornado ou feito pedido para conseguir as transferências. O paciente, pelo que se observou pela prova testemunhal, não participou das transferências de Carlos e de Adriano. Não houve corrupção ativa e nem passiva nas aludidas transferências. Em suma, as transferências foram feitas sem qualquer interferência do paciente.

Firmados estes pontos, não há como falar que o paciente violou o § 2º do artigo 317 do Código Penal. Dispõe esse parágrafo: “Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem”.

Viu-se que o paciente não teve nenhuma participação nas transferências. Ele é funcionário público. Seu dever de ofício é exercer as funções em que se encontra investido. Ele foi conclamado a manifestar-se no expediente de transferência de Carlos e o despachou. Ele cumpriu seu dever de ofício.

A denúncia afirma que ele sabia que Manoel ganhava dinheiro com transferência de preso e nenhuma providência tomou.

Manoel não era funcionário público, mas sim ex-detento e, assim, não se pode falar em condescendência criminosa (art. 320 do Código Penal) pelo fato do paciente não o ter denunciado. O único dever de ofício que o paciente teria, em relação a Manoel, era levar o fato ao conhecimento da autoridade competente caso ele fosse funcionário público e seu subordinado.

A denúncia insinua que o paciente recebeu dinheiro ou favores de Manoel e de Ulisses, mas não diz para que fim. Se o dinheiro ou favores foi para que o paciente deixasse de praticar ou retardasse ato de ofício, a denúncia tinha que mencionar qual foi esse ato que ele não praticou ou retardou.

Em relação às transferências, quais atos de ofício que o paciente tinha o dever funcional de praticar? A denúncia não fornece resposta a essa indagação. A título de argumentação é de se reconhecer que em procedimento de transferência, o servidor possui dois deveres funcionais: manifestar-se a favor quando o pedido possui suporte legal e manifestar-se contrariamente quando o pedido é ilícito.

Nas transferências mencionadas na denúncia, os pedidos não podem ser considerados ilegítimos. Por outro lado, não competia ao paciente deferir ou não os pedidos. Ele não indeferiu os pedidos e nem os aceitou porque não era de sua competência funcional os apreciar. Logo, não se pode afirmar que o paciente deixou de praticar ou retardou ato de ofício.

Transferências de presos não constituem crimes e, assim, não se pode falar em violação do artigo 288 do Código Penal quando pessoas se associam para providenciar transferência de presos de um presídio para outro.

Transferências de presos constituem crimes quando são feitos através de corrupção ativa ou passiva. A denúncia não aponta nome de nenhum funcionário que recebeu vantagens para interceder nas transferências de Carlos e de Adriano de um presídio para outro e, assim, não de pode falar em violação do artigo 288 do Código Penal pelo paciente, considerando-se que as transferências foram as únicas acusações lançadas contra ele.

A denúncia não aponta ato de ofício que o depoente deixou de praticar ou retardou nas transferências dos presos Carlos e Adriano. O paciente não tinha obrigação de denunciar possíveis crimes praticados por Manoel porque ele não é funcionário público e nem seu subordinado.

Conclui-se que a denúncia é inepta porque os fatos descritos não tipificam crimes que possam ser imputados como praticados pelo paciente.

Concede-se, por esses motivos, a ordem para rejeitar a denúncia em relação a João Batista Paschoal, anulando-se o processo, em relação a ele, desde o despacho que a recebeu, inclusive”.

São Paulo, 14 de agosto de 2006.

ALMEIDA BRAGA

Relator Designado.

Esta foi a palavra oficial da Justiça Paulista sobre o caso. João Batista Paschoal, “o homem de confiança” de Nagashi Furukawa não cometeu crime: só cumpriu seu dever funcional.

Apesar da decisão, dificilmente conseguirá restabelecer a situação anterior. A execração pública a que foi submetido, divulgando-se seu nome como pessoa ligada ao crime organizado, qualificado como “vendedor de transferências”; sua fotografia exposta em todos os jornais e a imagem exibida nas emissoras de TV são marcas que certamente o acompanharão pelo resto da vida. Depois de 30 anos de exercício digno da profissão, às vésperas da aposentadoria, entre Natal e Réveillon de 2005 foi “premiado” com a prisão. E o papel dos meios de comunicação no episódio? Será suficiente dizer que estão isentos de responsabilidade porque tinham suporte na palavra oficial de autoridade pública?

O que eu posso dizer diante do que aconteceu?

Não foram poucas as pessoas que comentaram que o verdadeiro alvo dessa desastrada ação policial era a secretaria da Administração Penitenciária. Uma acusação grave como essa ao “homem de confiança” do secretário certamente seria capaz de abalar seu prestígio junto ao Poder Judiciário, Ministério Público, Ordem dos Advogados e, especialmente, junto ao governador e aos demais secretários.

Ainda que as acusações fossem verdadeiras, uma ação com essa dimensão, promovida por uma secretaria, atingindo em cheio o trabalho de outra, tinha que ser levada ao conhecimento do governador, para receber sua coordenação, justamente para evitar excessos e para que a divulgação pública só fosse feita depois de um mínimo de segurança nas provas que lastreavam a acusação.

Não! Ficaram [simple_tooltip content=’Segundo Nota Oficial da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo.’]“cinco meses em intenso trabalho”[/simple_tooltip], às escondidas, na surdina, e apresentaram ao Poder Judiciário “800 páginas com transcrição de conversas e centenas de documentos apreendidos” (ainda segundo nota oficial), que foram transformados em pó no relatório do Desembargador Almeida Braga. Foi preciso Sua Excelência ensinar ao Promotor responsável pela denúncia e aos policiais que trabalharam no caso que “transferência de presos de um presídio para outro não é crime”; que o fato da advogada cobrar para conseguir transferências também não é crime. Só haveria delito se o dinheiro fosse usado para corromper funcionários. A advogada não foi acusada de corromper e não se provou que Paschoal recebeu dinheiro.

Não sei dizer se houve má-fé ou despreparo.

A verdade foi recolocada em seu lugar com a decisão oficial do Poder Judiciário de São Paulo. O triste nessa história é que Paschoal, depois de sair da prisão, tem feito comentários com sérias críticas à minha administração, talvez se esquecendo de que foi uma das pessoas mais importantes nessa gestão; talvez, com essa conduta, buscando espaço na nova administração. Ouvi dizer também que tem criticado o trabalho do escritório de advocacia que o defendeu gratuitamente. Nenhuma palavra de gratidão. Só de rancor e de mágoa.

É difícil compreender o ser humano. Se era compreensível que criticasse a todos enquanto preso, revoltado e com a mente confusa, é inaceitável que agora, com tempo para meditar, Paschoal não tenha percebido o que seus companheiros foram capazes de fazer para livrá-lo daquela situação a que não deram causa; não seja capaz de reconhecer o imenso trabalho do escritório “Toron, Torihara e Szafir” para conseguir sua liberdade, trancando a ação penal. Ninguém com certeza espera agradecimentos, mas todos exigem, pelo menos, que não desvirtue a verdade dos fatos.

*     *     *     *

Uma de suas filhas, na época em que ele esteve preso, escreveu uma mensagem ao Consultor Jurídico, dizendo:

“Como as pessoas podem ser tão ignorantes a ponto de não conhecerem nada sobre o sistema penitenciário e julgar uma pessoa como o Dr. Paschoal? Acredito que esse Dr. Bittencourt deve estar querendo chegar a outras pessoas maiores através de um inocente. Bittencourt, você está menosprezando os valores morais de uma pessoa que deixou de viver para a família para cuidar daquilo que era seu objetivo” (…) “Minha fé em Deus é maior que tudo o que está acontecendo” (…) “Meu pai vai sair dessa prisão e provar com certeza sua inocência. E pessoas como esse Bittencourt vão pedir desculpas a Deus por ter julgado um pai de família que me orgulho de ter e de levar seu nome em minha longa caminhada” (Lilica – funcionário público – “in” Consultor Jurídico de 06 de janeiro de 2006).

A prisão de Paschoal não abalou o orgulho da filha, que fez questão de manifestá-lo publicamente. Espero que agora, solto, continue a merecer esse orgulho.

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* O autor esclarece, ante a dúvida de muitos leitores, que os textos que estão sendo publicados foram escritos no segundo semestre de 2006 e que não foram atualizados.