Os limites da jurisdição constitucional – especialmente quando envolvidas matérias de ordem política – continuam a ser um ponto alto do diálogo institucional democrático. No desempenho do controle de constitucionalidade, aspectos extrajurídicos são inevitavelmente levados à apreciação judicial, notadamente no STF a quem cabe com exclusividade seu exercício concentrado e abstrato. Nesse contexto, além de seu crescimento quantitativo evidenciado na seção anterior, nota-se que recentemente a ADPF tem ganhado força também qualitativa, atributo que aqui se consubstancia na amplificação de suas temáticas de abrangência.
Ao cabimento de tal modalidade de ação, a sua legislação de regência afirma a necessidade de presença de um ato do poder público do qual resulte ou possa resultar lesão a preceito fundamental e a inexistência de outro meio processual capaz de sanar determinada lesividade (art. 4º, §1º, da LADPF). É a afirmação legal do princípio da subsidiariedade, também abalizado pela literatura jurídica especializada[7].
Não se quer aqui defender uma interpretação estrita e meramente objetiva desses requisitos (a existência efetiva de um ato do poder público e o atendimento à subsidiariedade), relativos. Entretanto, devem-se avaliar os efeitos de sua ampla flexibilização – como recentemente se tem notado na prática do Supremo Tribunal Federal –, uma vez que sua desfiguração possibilita o exercício da jurisdição constitucional para além de suas fronteiras constitucionais.
De um lado, apresentam-se situações absolutamente etéreas abstratas, sem que muitas vezes se apresente qualquer ato do poder público – revelando verdadeiros pedidos de consulta abstrata. Ao serem levados à apreciação direta pelo STF, a Corte acaba assumindo o risco de emplacar – no lado oposto da praça dos Três Poderes – teses jurídico-políticas que entende acertadas quanto ao mérito das políticas ou dos conflitos institucionais voltados desenvolvimento da nação. De outro lado, às vezes se apresentam casos que sindicam situação evidentemente concreta, em pleno desatendimento à essência do requisito da subsidiariedade, como forma de acionar, per saltum, o Supremo, como estratégia judicial principal em substituição aos meios processuais ordinários igualmente eficazes a afastar a alegada lesividade.
Não se negam, aqui, os efeitos específicos da tutela jurisdicional prestada pelo STF em processos concentrados e objetivos (quais sejam a eficácia vinculante e o efeito erga omnes) diante da peculiaridade dos quais essa Corte já entendeu atendido o princípio da subsidiariedade. Não se pode, tampouco, guiar a prestação da tutela jurisdicional – e notadamente a abstrata – por critérios eminentemente formais, mas sua justificação também por critérios materiais. Entretanto, ainda que de forma bem intencionada, essas pretensas materialidade e fungibilidade da jurisdição constitucional acabam servindo a propósitos antagônicos aos que recomenda a separação de poderes[8].
Exemplificativamente, a partir dessa flexibilização sucessiva, foi por meio de ADPF’s que se possibilitou ao STF pronunciar-se sobre aspectos como o etéreo estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro (ADPF 347/DF), a condução procedimental do rito de apreciação do impeachment perante a Câmara dos Deputados (ADPF 378/DF) e até mesmo, mais recentemente, o estabelecimento de requisitos não expressos no texto constitucional aos que ocupam a linha sucessória do Presidente da República (ADPF 402/DF).
O que se nota, portanto, é uma sucessiva ampliação, via interpretação do próprio Supremo Tribunal Federal, das hipóteses de cabimento e de flexibilização dos requisitos legalmente estabelecidos para a ADPF, o que pode revelar um aspecto bastante nocivo: possibilita àquela Corte imiscuir-se em matérias eminentemente políticas, decidindo – ou não – sobre determinadas questões conforme seu interesse institucional. É dizer: quando se tratar de controvérsia sobre a qual não se quer decidir, diminui-se o conceito de ato do poder público e enrijece-se o requisito da subsidiariedade. Quando, porém, for institucionalmente interessante ao Tribunal que se pronuncie sobre determinada questão, as consequências são invertidas.
Essa aleatoriedade jurisprudencial, num soslaio, poderia parecer esquizofrênica não somente a um observador externo. O que nos preocupa, contudo, é o estranhamento que esses usos acidentais têm proporcionado, não somente diante da narrativa da literatura doutrinária a respeito, mas, sobretudo, quanto à própria oscilação jurisprudencial que o tema tem recebido nessas reviravoltas.
Nesse particular, se, de um ponto de vista, se reconhecem ao Supremo maiores competências quanto à seletividade e à intensidade de sua atuação institucional e constitucional, de outro, surge o efeito deslegitimador da própria jurisprudência que tem sido compilada a partir dessas acumulações assimétricas de sentido quanto ao cabimento e aos usos possíveis da ADPF. Como fechamento desses contraditórios sinais de fumaça, não nos resta outra tarefa senão a crítica altiva a esse aspecto da jurisdição constitucional aplicada pela Corte. É necessário assumir a premissa metodológica de constranger o STF a produzir, ao menos, uma melhor narrativa e encadeamento acerca de suas intermitências jurisprudenciais.
Neste exercício de esquecimento acerca da memória institucional do Tribunal, parece que chega a hora em que, com o STF (e contra Saramago), descobrimos que o Supremo julga, de modo errático, muito mais do que antes sabia sobre a ADPF. No horizonte, surge uma Corte constitucional que tudo “quer” julgar, mas todo conhecimento “perde”. Eis o instigante contexto exploratório no qual se encontram os experimentos de (des)conhecimento em torno da ADPF.
[1] Haberle, Peter. Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.
[2] É importante consignar que a previsão constitucional da ADPF foi realizada desde a promulgação do texto constitucional originário, promulgado em 05 de outubro de 1988 (CRFB/1988, art. 102, parágrafo único). A única modificação específica relativamente ao descumprimento de preceitos fundamentais foi de caráter formal: a Emenda Constitucional de Revisão 3, de 17 de março de 1993, promoveu mera renumeração do dispositivo, o qual passou a corresponder ao § 1º do mencionado art. 102 do texto da Constituição.
[3] O número total de ADPF’s distribuídas foi aferido em 30 de novembro de 2016 (ou seja, às vésperas do décimo sétimo “aniversário” da Lei da ADPF – em 3 de dezembro de 2016).
[4] Essa estimativa foi aferida em 30 de novembro de 2016.
[5] O julgamento colegiado de ADPF’s, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), somente pode ser desempenhado pelo Órgão Plenário: o seu Tribunal Pleno. Nesse particular, merece destaque o fator de que a reforma regimental promovida pela Emenda Regimental 49, de 03 de junho de 2014, não modificou as competências internas para o julgamento dessa classe processual. Assim, diferentemente das diversas outras classes que sofreram modificação (como, por exemplo, ações penais, extradições, mandados de segurança e reclamações), não houve transferência de competência interna para quaisquer das turmas da Corte Constitucional. Vale o registro adicional de que tal postura institucional guarda certa coerência com a competência para a apreciação das classes típicas do controle concentrado. É dizer, as ações diretas de inconstitucionalidade (por ação ou por omissão), a ação declaratória de constitucionalidade, a representação interventiva e a arguição de descumprimento de preceito fundamental somente podem ser apreciadas e julgadas pelo Colegiado Pleno.
[6] Os dados foram obtidos a partir das informações disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=adpf, acesso em 30/11/2016.
[7] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 10. ed. revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2015, pp. 1.270/1.272
[8] Em sede doutrinária, também o Ministro Luís Roberto Barroso defende a impossibilidade de que quaisquer questões constitucionais sejam sindicáveis por meio de ADPF (BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 6ª Edição, 2012; 4ª tiragem, 2014, p. 322).