Esta reportagem foi produzida com o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center.
Vanda Ortega era uma criança que vivia na Aldeia Colônia, no Alto Rio Solimões, município de Amaturá (AM), fronteira com a Colômbia e o Peru. Era pequena de estatura, mas rápida e forte na rotina agrícola, o que lhe rendeu o apelido indígena de Tatu. É um costume de seu povo, os Witoto, nomear as crianças com características que eles reconhecem em animais. Ali não tinha escola, então ela aprendeu a ler e escrever com o pai na aldeia. Aos 10 anos seus pais decidiram deixar o território para que ela e os seis irmãos pudessem estudar. Sem dinheiro para comprar sapatos, a família conseguiu quatro pares doados e o jeito foi se organizar para poder frequentar as aulas. “O pai dividiu os filhos entre manhã e tarde para ter sapato para irmos para escola”, conta. Foi ali que uma trajetória de liderança começou.
Aos 16 anos, Vanda foi levada para Manaus para trabalhar como empregada doméstica e ganhar menos que um salário mínimo ao mês. Sofreu assédio moral e sexual, foi humilhada, a escola era refúgio e também treino para mobilizar muitas pessoas à sua volta.
A Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional garantem às crianças indígenas o acesso à educação – inclusive bilíngue em respeito às culturas dos povos originários – há mais de três décadas, mas a estruturação de escolas nas aldeias nos territórios é um desafio até hoje. Mudar isso é uma das principais motivações de Vanda, candidata à deputada federal de seu estado pela Rede Sustentabilidade nessas eleições.
O JOTA acompanhou um pouco de sua rotina de campanha eleitoral para entender mais sobre o que motiva mulheres indígenas a tentarem um cargo eletivo e o como ela e outras lideranças se articulam politicamente neste período de eleições.
“A grande virada de chave da minha vida foi alguém ter me falado sobre a universidade, que eu, como mulher indígena, poderia acessar a universidade. Então, a minha mãe me mandou o Rani [registro administrativo de nascimento indígena]. A gente nunca entendeu sobre o Rani, sobre ser Witoto”, comenta Vanda.
O Rani é usado para controle estatístico da Funai (Fundação Nacional do Índio). No caso de Vanda, serviu também para comprovar sua etnia e ajudá-la a acessar a universidade pública pela cota para indígenas.
O povo Witoto morava no Peru e Colômbia e foi amplamente perseguido e fugiu para o Brasil, onde foi acolhido pela Igreja Católica, conta Vanda. “Foi uma violência histórica vivenciada pelas minha bisavó, pela minha avó e pelo meu pai. Todo um silenciamento que a minha geração continuou sem entender porque que teria que negar a etnia. Eu não entendia porque eu não podia dizer que eu era Witoto”, conta. “Quando eu entro na universidade com esse documento, que diz que eu tenho um nome indígena, que eu faço parte de um clã originário Witoto. Eu comecei a pesquisar sobre o que era ser Witoto”, explica.
Vanda é auxiliar de enfermagem e professora. Um de seus trabalhos é resgatar sua cultura e ensinar para as crianças. Pelos seus estudos e trabalho com a cultura Witoto, ela foi eleita a representante do seu povo.
Durante a pandemia ela ajudou a montar uma unidade de saúde no Parque das Tribos, o bairro indígena de Manaus onde vivem 30 etnias diferentes. Pelo seu papel de liderança, ela foi a primeira amazonense a ser vacinada contra a Covid-19 e seu rosto foi estampado em capas de jornais de várias partes do mundo.
“São poucas as pessoas que direcionam as emendas parlamentares, recursos para que se efetivem as políticas já instituídas constitucionalmente no nosso país direcionadas para nossos povos, mas por ausência de representação essas políticas não são efetivadas. Precisamos de recursos públicos para construir escolas, postos de saúde”, defende Vanda.

“Meu tio morreu à espera de uma UTI aérea que nunca chegou ao território. Ele dizia que precisaria me candidatar, porque ele entendia que sem representação política, nós não teríamos escolas no território. Nós íamos continuar não assistidos”, explica Vanda sobre o que motivou a candidatura.
Também por não ver representatividade indígena na Assembleia Legislativa do Amapá que Simone Karipuna se lançou candidata neste ano. Ela é da terra indígena Juminã, no Oiapoque (AP). Ela é coordenadora executiva da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e norte do Pará (Apoianp). É assistente social e durante a pandemia promoveu com mais lideranças ações para seu território como montagem cestas básicas e kits de higiene.

“O que me motivou a me candidatar é a sensação de invisibilidade muito grande. Percebi que a gente precisava ter uma força politica na Assembleia que consiga dialogar com lideranças diferentes. Nós falamos nossa língua e eles na língua deles”, diz ao se referir aos políticos com mais poder aquisitivo que seu povo. “Eles não ligam e não têm interesse nenhum de reconhecer indígena como agente de construção.”
Candidaturas indígenas
O número de candidaturas indígenas femininas quase triplicou desde 2014, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral. Neste ano, foram registradas 85 candidaturas, se aproximando do número de 2018, quando 84 indígenas mulheres tentaram uma vaga nas eleições. Em 2014, eram 29. Dentre as 85 candidaturas, 5 foram indeferidas pelos tribunais regionais eleitorais e em outros 3 casos houve renúncia.
A eleição da primeira deputada federal indígena impulsionou esse movimento. As lideranças ouvidas por essa reportagem descrevem a eleição de Joenia Wapichana com a metáfora visual de uma ponta de lança que abriu o caminho para as outras.
Essas lideranças se organizam de diversas maneiras: em associações com fins comerciais, como as de apoio à produção artesanal de roupas ou cosméticos. Esses grupos além de fomentar o trabalho dessas mulheres e gerar renda, acabam por ser um espaço de articulação política já que naturalmente algumas delas se destacam na coordenação.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou nestas eleições uma campanha para fortalecer 30 candidaturas, sendo 16 de mulheres. A maior parte do grupo são representantes da Amazônia Legal.
Mas como será que funciona uma campanha indígena, sobretudo na região amazônica em que há tantas línguas faladas? Vanda Witoto explica que a estratégia dela é dialogar. “Nós vamos até os territórios [indígenas] e conversamos com as pessoas, vamos às feiras e conversamos. Mostramos nossas propostas”.
A reportagem ouviu diversos relatos sobre casos em que candidatos que elas descrevem como “políticos tradicionais”, aqueles que já elegeram muitas vezes, vão às aldeias e prometem telha, tijolo e gasolina. Todas as candidatas ouvidas pela reportagem criticaram a conduta e defendem que a conquista do voto com propostas consistentes e diálogo.
“Vamos focar em jovens, mulheres e idosos e fazer um bom trabalho, parente. Porque muitas vezes o cacique não tá nem aí para gente”, conversa ao telefone uma candidata com outra indígena de território distante.
Indígenas de povos diferentes se tratam uns aos outros pelo termo “parente”, mesmo não sendo da mesma família. É uma forma de eles se reconhecerem como indígenas em relação ao restante da sociedade.
Por essa proximidade de se reconhecer indígena, mesmo que sejam de povos diferentes, as lideranças acabam por conversar e articular políticas públicas locais. Algumas se filiam a partidos. Não à toa, parte das mulheres ouvidas nesta reportagem afirmam ter sido consultadas e cogitado se lançar candidatas às câmaras municipais em 2020.