Direito Penal

Dos canaviais à magistratura

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Capítulo 1

Cercanias

A estreita rua Romualdo de Brito é tradicionalmente tomada pelo comércio popular de Lauro de Freitas, município na região metropolitana de Salvador, capital da Bahia. O cheiro de combustível queimado impregna as pessoas que vem e vão, em conversas entrecortadas pelo barulho do motor dos carros e do axé que sai das caixas de som de uma loja de discos. Cercado por ruelas com calçadas incompletas do centro da cidade fica o Fórum Criminal, um prédio de pintura gasta, com sinais de mofo, protegido por uma pequena cerca e grama alta. Não passava das nove da manhã de uma quarta-feira e o segundo andar do edifício estava apinhado de gente. Detrás do computador da sala de audiências, a juíza Antônia Marina Aparecida de Paula Faleiros, titular da Vara Criminal, preparava a primeira do dia enquanto atendia uma menina grávida, negra, com um filho de cinco anos no colo e uma sacola plástica de supermercado nas mãos. Ela buscava informações sobre o processo do companheiro Cristiano, preso por tráfico de drogas no presídio de Simões Filho, a 21 quilômetros dali. “Ele já foi informado sobre o processo e agora tem 10 dias pra apresentar defesa, está bem? Conversa com a defensoria pública ali no primeiro andar”, explica a juíza, com voz estridente ensaiando rouquidão, enquanto distrai a criança com o furador de papel.

Com sapato de salto alto e blusa de renda rosa presa na parte da frente da calça social creme, a juíza dá passos rápidos e curtos, em direção à sala contígua para conceder um habeas corpus a um preso em flagrante na noite anterior. No corredor, sentado ao lado da mãe, um rapaz de 21 anos acusado de roubar dois celulares e R$ 100 de uma loja de cosméticos aguardava para ser ouvido de frente para a magistrada. Ouve com o semblante fechado e os ombros caídos a acusação e os testemunhos de três policiais que registraram o boletim de ocorrência das vítimas. Hesita quando a juíza pergunta se quer ficar em silêncio ou conversar sobre o que ocorreu em maio de 2014. Sem deixar que as pontas dos dedos saiam do teclado e concentrada na tela do computador, ela transcreve em minúcias a confissão do réu, que fora solto em abril depois de um ano e meio preso por tráfico de drogas e associação. “Foi besteira minha”, diz, quase sussurrando, o rapaz que afirma trabalhar como pedreiro e não ter título de eleitor. Feitas as alegações finais do Ministério Público e da Defensoria, a juíza anuncia que sentenciará o caso no fim de semana e, antes mesmo de imprimir e pedir que todos assinem os depoimentos, pergunta à assessora se as partes da audiência das 11h estão no local.

Durante um dia e meio, acompanhei o trabalho da mulher que deixou o corte de cana no sul de Minas Gerais para conduzir 15.580 processos criminais em Lauro, onde atua como juíza criminal desde 8 de julho de 2013. Queríamos viver e mostrar a rotina na primeira instância, porta de entrada do Judiciário. O município, de 185 mil habitantes no litoral baiano, retrata fielmente a contradição das cidades brasileiras ao abrigar bolsões de pobreza e praias que enchem os olhos de turistas.

Capítulo 2

A história do pé quebrado

Crime e infância nas mesmas mãos

Conheci a doutora Antônia – como é chamada pelos poucos funcionários – em abril de 2014 quando tramitava no Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) um processo administrativo para desmembrar a Vara Criminal da Vara da Infância e Juventude. Chamou-me atenção a concentração de processos de adultos e menores de idade em um mesmo julgador, apesar de a legislação brasileira prever ritos processuais e tratamentos próprios para cada um. Surpreendeu-me ainda o fato de a juíza atender aos telefonemas da vara enquanto milhares de processos a aguardam. Quando a magistrada assumiu as duas competências há dois anos, casos de adoção atingiam a maioridade por estarem sem andamento há 18 anos enquanto processos criminais restavam esquecidos em um depósito do fórum.

Uma vara exclusiva da infância foi inaugurada há nove meses. A nomeação da nova juíza ainda demorou e só ocorreu em junho passado. Depois de um breve intervalo, porém, Antônia voltou a acumular temporariamente as ações penais com os processos de adoção, de guarda e atos infracionais de menores. “A juíza titular quebrou o pé e pediu licença de dois meses”, explicou, acrescentando divertida: “O abominável homem das neves não tem o pé mais frio que o meu”.

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Interligadas, a sala de audiência e o gabinete de Antônia dão a conta do volume de trabalho. No chão do gabinete há arquivos de inquéritos policiais de 1987. Nos dois ambientes, as estantes estão preenchidas por processos em papel, anteriores a 2012, quando foi implantado o processo digital. Mas o pé frio da juíza não dá trégua. “É uma benção”, ironiza ao falar do sistema de informática do tribunal que trava a todo o momento. “Quando o processo é virtual demora ainda mais para analisar. Você pega um auto de duas mil folhas, abre na página 1.285, e esse sistema maravilhoso empaca. Tem que fechar, desligar o computador e começar tudo outra vez para chegar na folha 1.285 para saber o que tem na 1.286. Dá vontade de chorar”, conta, soltando uma gargalhada curta e nervosa.

Capítulo 3

"Decretar prescrição é o mesmo que passar recibo da inoperância dos órgãos jurisdicionais"

Agonia de julgar

A lentidão do sistema de informática vai na contramão da velocidade da criminalidade. “Nas maiores cidades, o crime está muito relacionado ao tráfico de drogas e à juventude. A população carcerária é jovem por excelência”, diz a juíza. De acordo com o Mapa da Violência de 2015, Lauro de Freitas é o terceiro município brasileiro com o maior índice de mortes por armas de fogo entre jovens. Passa de 200 mortes por 100 mil habitantes. A primeira é a vizinha Simões Filho, sede da unidade prisional da região, onde Cristiano está preso. A população carcerária é predominantemente de jovens até 29 anos. De 2005 a 2012, homens entre 18 e 24 anos foram a maioria entre presos, de acordo com o Mapa do Encarceramento.

Para o Judiciário, esse cenário adiciona um problema extra. O artigo 115 do Código Penal reduz pela metade o prazo prescricional para os menores de 21 anos na data do delito. “Por isso eu fico na agonia de julgar. Decretar prescrição é o mesmo que passar recibo da inoperância dos órgãos jurisdicionais, principalmente em casos de crimes com prazos prescricionais longos, como tráfico de drogas, latrocínio, estupro que têm prescrição de 20 anos. Se for menor de 21 anos, a prescrição cai para 10 anos. São os casos de 2005, foi ontem”, diz.

Para conceder habeas corpus, expedir alvará de soltura, cartas precatórias para citar e intimar partes e testemunhas, atender advogados e parentes de réus, fazer audiências de instrução e sentenciar os processos, a magistrada conta com a ajuda de dois servidores do quadro do Tribunal de Justiça da Bahia, uma assessora e dois estagiários de Direito. O escrivão – que, na verdade, é um técnico de segundo grau – foi alocado para ajudar a diretora da secretaria, Janete Souza, no cartório da vara.  A magistrada conta ter pedido ao tribunal um juiz auxiliar, que teria sido negado porque não há processos represados. “Quer dizer, somos prejudicados por trabalharmos direitinho”, conclui com a voz estridente sinalizando rouquidão.

Com poucas mãos para ajudar, é a própria juíza quem chama as partes e testemunhas para entrar em audiência, transcreve depoimentos, imprime e digitaliza os documentos para juntar aos autos, e escreve todas as decisões – a maioria durante os sábados e domingos. Faz por dia até quatro audiências de segunda a quinta-feira porque, às sextas-feiras, o promotor Marcelo Mascarenhas de Cerqueira atua na comarca de Cipó. A juíza também atende ao telefone, embora naquela quarta-feira trabalhasse com a ajuda do silêncio. As três linhas da Vara Criminal estavam mudas. Ninguém sabia o motivo. “Estão bichados”, brincou Antonia, tirando em seguida o sorriso do rosto para apontar que ela e os servidores usavam os celulares pessoais para falar com delegados e juízes de outras comarcas.

No dia seguinte, dois réus, um advogado, um promotor e três testemunhas aguardavam a juíza para uma audiência sobre uma acusação de roubo a mão armada quando a energia do fórum caiu. Passavam 10 minutos e já se cogitava cancelar a audiência. “Se você conta não acreditam. Acham que é anedota”, soltou, levando o braço para cima.

Capítulo 4

Das noites na rua à faculdade de Direito

Estrutura com folha de bananeira

Antes mesmo de nascer, Antônia Marina Aparecida de Paula Faleiros já se insurgia contra a falta de estrutura. O nome de batismo comprova. “Para que eu sobrevivesse, a parteira fez promessa para Santo Antônio e minha mãe, que já vinha de abortos anteriores, para Nossa Senhora Aparecida”. Nasceu prematura e, segundo lhe contaram, com a pele transparente. “Se enrolasse em tecido arrancava a pele como se fosse queimado, sabe?”, conta, com um leve sotaque mineiro. O tratamento consistia em fazer uma espécie de colchão de cinza peneirada do fogão a lenha e envolver a recém-nascida em folha de bananeira aquecida. “Anos depois descobri no ‘spa’ de Ligia Azevedo, que é uma esteticista conhecida, que são feitas com folha de bananeira as bandagens da cicatrização do peeling de fenol, feito em rostos muito enrugados”, conta.

Nascida na área rural de Serro Azul de Minas, município a 272 quilômetros ao norte de Belo Horizonte, Antonia é a filha mais velha de uma dona de casa e de um funcionário do Departamento de Estradas e Rodagem (DER). Foi alfabetizada pela mãe, a quem fazia companhia enquanto o pai passava meses longe de casa abrindo e recuperando estradas. “Leio desde os quatro anos e trabalho desde que me entendo por gente”, conta orgulhosa.

Aos 12 anos, saiu de casa para trabalhar na lavoura. Fez o ensino médio na cidade vizinha de Serro. Cortou cana na divisa de Minas Gerais com São Paulo, lavou roupa, dançou na noite e morou por sete meses em um ponto de ônibus, no centro de Belo Horizonte. “Dormir não dorme, mas ficava lá esperando a noite passar”. Conheceu pasta de dentre aos 17 anos. “Quando eu e meus irmãos saímos de casa, sentamos com nosso pai e nossa mãe e dissemos que quem não conseguisse nem tratar os dentes não voltaria nunca mais… eu tinha medo de abrir a boca por causa dos dentes podres, muito feios…”.

Estudou para o primeiro concurso público com material didático descartado pela secretária de um cursinho preparatório. Em 26 de agosto de 1984 assumiu o cargo de oficial de justiça do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Tinha 21 anos. Por insistência do desembargador Walter Veado, entrou na faculdade de direito da Universidade de Minas Gerais. “Não tinha noção exata do que era juiz. E ele começou a me incentivar a fazer direito e eu respondia ‘não, acho esse pessoal muito estranho, distante, muito cheio das vontades’. Queria fazer algo mais simples, mais pé no chão, como engenharia ou matemática”.

Formou-se em 1991 e foi contratada como advogada no Sindicato dos Trabalhadores na Educação de Minas Gerais, onde estagiava. Montou o próprio escritório, foi delegada da polícia civil, procuradora da Fazenda de Minas, em Uberlândia, e do Banco Central, em Brasília. “Tive a oportunidade de trabalhar em Nova York. Era época de privatizações, leilão de teles, aquele furdunço todo… então tinha gente resgatando título, monitorando leilão nas bolsas. Mas minha irmã morava comigo e estava terminando o segundo grau. Achei que precisava estar mais um pouco com ela, que não seria justo deixar ela sozinha”, conta Antonia.

Virou juíza quase que por acaso. Na volta de uma viagem ao Mato Grosso em 2002, viu uma propaganda de turismo “Conheça a Bahia”. “Falei para meu marido: ‘vou fazer concurso nesse lugar’. Entramos na sala vip do Diners Club, fui xeretar lá, estava no prazo final de inscrição”. Fez a prova em setembro e tomou posse como juíza do Estado da Bahia em dezembro. A primeira vara que assumiu foi a de Mucuri, a 872 quilômetros ao sul de Lauro de Freitas. “Entusiasmei com alguns projetos sociais por lá. Não sei se é porque já tinha saído da minha terra há muito tempo, mas não lembrava mais como era a vida tão miserável e sofrida no interior”, diz.

Capítulo 5

Juiz não é Deus

“Essa mulher é uma coisa horrorosa”

Há 13 anos na magistratura, Antonia chama atenção de advogados e da repórter. Pela praticidade, rapidez e memória que tem dos casos, por atender qualquer um que bate a sua porta, por despachar casos criminais, de violência doméstica e de guarda e adoção de menores quase que ao mesmo tempo, por transcrever as audiências e até por levantar da cadeira no meio de uma audiência para chamar testemunhas no corredor do fórum. A juíza responde com certa irritação aos elogios pela atenção dispensada: “é meu serviço, sou paga para isso”. Por vezes, afaga a si própria: “essa mulher é uma coisa horrorosa”, diz divertida sobre si mesma.  Só consegui entabular mais de dois minutos de conversa com ela foi desafio só alcançado durante 15 minutos de almoço e depois das seis da tarde, quando o fórum fecha para o público.

Quase escondida atrás de pilhas de processos, a mesa da juíza parece um balcão de informações em que tenta traduzir a linguagem jurídica a algo que faça sentido para quem está do outro lado. Num misto de solicitude e pressa, lança rapidamente perguntas como: “É sobre?”, “Qual o nome da pessoa?”. Às vezes perde a paciência: “Todo mundo consegue ver Big Brother, novela. Processo é a mesma coisa. É só entrar no www.tjba.jus.br”. Insiste para que os visitantes sentem em uma das seis cadeiras do gabinete que divide com a assessora Denise Castro Lima. Quando ouve vozes no corredor, pede imediatamente para saber se o assunto é com ela. Reafirma sua autoridade quando a informação ou orientação que dá é questionada: “Eu sou a juíza”, diz, com voz firme.

A rotina, por vezes, é quebrada por cenas desconcertantes. Passava das cinco da tarde, a juíza proferia decisão autorizando a continuidade de escutas telefônicas em uma investigação de tráfico de drogas quando bateu a sua porta um homem forte, negro, de camisa polo azul turquesa carregando uma pequena bolsa preta. A pedido da irmã, ele vinha de Aracajú, capital de Sergipe, a 303 quilômetros de distância, para pagar a fiança do irmão, preso há dois meses. Encurvado na cadeira, queria saber o que mais precisava ser feito. “Seu irmão foi citado, foi informado que existe o processo. Mas ainda não apresentou defesa. Ele tem dez dias para fazer isso. Agora ele precisa apresentar defesa, entendeu?”, respondeu, consultando o processo no sistema do tribunal e repetindo a mesma informação mais algumas vezes. “O que é defesa?”, perguntou o rapaz. “Ele vai ter que dizer se fez o que disseram que ele fez. E se fez, por que fez”. Um pouco hesitante, o rapaz levantou e já ia saindo quando perguntou se poderiam lhe dar um atestado para o trabalho. Foi prontamente atendido.

No dia seguinte, a juíza amanheceu com a visita de uma jovem de 27 anos acompanhada de três de seus quatro filhos. Queria mostrá-los a juíza e saber sobre seu processo. “Você quer que marque a audiência para agora ou que demore mais um pouco?”, perguntou Antônia, de forma gentil. A mulher não responde com precisão. Meses antes fora presa por tráfico de drogas por decisão da própria juíza. Estava grávida de oito meses da filha mais nova. “Eu mesma mandei prender. Ela vem me mostrar que está dando banho nas crianças, que elas estão indo para a escola”, me contou depois que a moça, viciada em crack, deixou a sala.

Para Antônia, o distanciamento do juiz com as partes e a comunidade não existe. “Não tenho contato com o além, nenhum super poder, nenhum deus que interceda por mim na hora de sentenciar um caso. Não tenho procuração da Justiça. A decisão judicial é fruto do bom senso, da interpretação, da lógica”, afirma a magistrada, acrescentando: “Se eu conseguir sair dessa vida tendo mostrado para as pessoas que o juiz pode ser uma pessoa comum, que os atende normalmente como qualquer outro servidor, eu estarei feliz”, reforça. Aos 52 anos, a juíza tem feito o trajeto de uma hora e meia de ônibus ao trabalho por causa de uma crise de labirintite.

O dia a dia na vara criminal levou a magistrada a estudar o impacto da pressão da mídia por solução de determinados casos na saúde dos profissionais da segurança. No trabalho de mestrado que será defendido quando a Universidade Federal da Bahia sair da greve, Antônia buscou relacionar a Síndrome de Burnout entre policiais, delegados, promotores e juízes. O transtorno acomete especialmente profissionais da saúde e da educação, e consiste em um esgotamento físico e mental sentido pelo fracasso de exercer a função aquém do potencial.

“Na magistratura, vejo que isso faz com que o juiz tenda a cumprir sua função como um robô ou a querer abraçar o mundo, a virar um herói, uma mistura de deus com homem. Mas nos dois casos, a instituição Poder Judiciário é enfraquecida”, opina ela durante nosso almoço moderado regado a arroz, feijão de corda, carne assada e refrigerante em um restaurante self service em uma rua paralela ao fórum. Pergunto à juíza em qual dos grupos ela se insere, e ela responde que está no meio do caminho.

“Mentalizo todos os dias de manhã que não posso perder o entusiasmo pelo que faço. Mas tenho consciência de que não vou resolver o problema da segurança”, pondera a magistrada ligada a Associação Juízes para a Democracia, que trabalha pelo resgate da cidadania dos juízes.

Capítulo 6

As forças-tarefas da vara criminal

“Não julgo papel, eu julgo gente”

Em julho de 2013, quando assumiu a vara criminal de Lauro de Freitas, a juíza e a diretora da vara, Janete Souza, tiveram que lidar com reclamações de advogados que pediam acesso a autos que elas não encontravam. Pior: precisaram buscar explicações para pessoas que continuavam com a certidão de antecedentes criminais positiva apesar de já terem cumprido pena. Descobriram milhares de processos estocados em sacos pretos de plástico, espalhados pelo chão de um depósito do fórum. “Era um tal de barata e rato por aqui. Não dava para ver nem que tinha janela nessa sala tamanha a quantidade de papel”, conta Janete, enquanto me mostra o resultado do trabalho de sábados, domingos e feriados que resultou na catalogação do arquivo morto apertado.

A força tarefa hoje é passar um pente fino nos 15.580 autos em andamento para verificar a existência de processos com numeração dobrada, casos de réus mortos e processos findos não registrados no sistema. A expectativa da juíza é que o estoque seja reduzido pela metade.

Praticamente sozinha no trabalho do cartório, Janete de Souza diz que o maior desafio do dia a dia é olhar para o processo e ter em mente que está lidando com a vida de alguém. “Em sexta-feira antes de feriado, fico aflita em mandar todos os alvarás de soltura [para as unidades prisionais]. Caso contrário, serão pelo menos mais quatro dias em que o sujeito vai ficar preso”, diz.

Os funcionários da vara criminal parecem ter introjetado uma frase repetida a todo o instante pela juíza titular: “Não julgo papel, eu julgo gente”. Para Antonia, a impunidade é sentida pela mistura entre lei e pecado e pela ideia de justiça criminal e de Estado ainda ser fortemente atrelada à religião, fé e castigo. Segundo a juíza, porém, a justiça criminal existe mesmo com a carência de recursos humanos e financeiros.

“Todos nós, inclusive eu, temos dificuldade de entender a justiça criminal como a aplicação de uma lei penal pré-estabelecida. Não nos contentamos. Queremos mais, queremos que o acusado demonstre arrependimento, se penitencie, abaixe a cabeça. Quando o criminoso dá um sorriso ou ouve a sentença de cabeça erguida isso é considerado uma afronta, o que não deveria. Se a lei diz que a pessoa tem que cumprir cinco anos de prisão, e ela cumpre essa pena, não deveríamos ficar incomodados por ela andar novamente na rua”.

Capítulo 7

Quando todos vão embora

...Tiritar

Chegava perto das onze da manhã de quinta-feira. Lá fora, o clima é úmido e abafado. Dentro do gabinete, alguns, como mãe e filha acusadas de venda de cocaína, batiam os dentes com o ar condicionado. Em meio ao entra e sai, bate na porta da sala da juíza um delegado da região. Ele expõe um dilema: funcionários de um hotel em uma praia próxima têm sido demitidos por justa causa por furtarem pequenas quantidades de carne de sol e camarão. O empregador registrou boletins de ocorrência como forma de se resguardar em eventual ação trabalhista. “Tenho receio de o juiz pedir o inquérito e eu não ter. Minha preocupação é social porque com um antecedente criminal colocamos um caminhão de pedra na trajetória dessas pessoas. Não vão arrumar mais emprego em canto nenhum”, conta à magistrada.

A justiça criminal tem atuado no contexto de “carências sociais, culturais e de distribuição de renda extremamente concentrada”, afirma a juíza. Mas, em sua opinião, seria mais bem efetivada com a distribuição uniforme de recursos humanos e materiais do Poder Judiciário. “Não acho que precisamos de mais gente ou dinheiro. Precisamos racionalizar”, afirma, pontuando que um juiz que tem 500 processos poderia ajudar outro com 15 mil.

A carência dessas profissionais é um dos maiores problemas de que padece a justiça criminal, opina a magistrada. “Eu não tenho preferência por nenhum processo. Mas se um advogado chega e começa a buzinar na orelha eu vou acabar chegando no caso dele. É evidente que um defensor não consegue fazer o trabalho de um advogado particular”, afirma, fazendo um paralelo com o trabalho dos juízes. “Dá agonia ouvir no noticiário sobre juízes que atuam em um caso. O Sergio Moro com a Lava Jato, por exemplo. Se me dessem um processo só para cuidar eu também seria um espetáculo. O problema é que tenho 15 mil”, diz gargalhando.

Em 70% dos casos em andamento na vara criminal de Lauro de Freitas os réus são defendidos por um único defensor público. Apenas um.

Nos dois dias que acompanhei a rotina no fórum de Lauro de Freitas, a juíza foi a última a deixar o local. Ficou acompanhada somente de um porteiro que vestia chinelos e ouvia uma música alta na porta dos fundos do prédio.

“Há juiz superior que tem o gabinete com tapete grosso e elevador privativo. Desembargadores e ministros têm motoristas enquanto os fóruns não têm um carro para fazer o trabalho básico, para o oficial cumprir mandado. Já passei por varas em que a goteira caía na minha cabeça, que enchia de gambá no forro. Teve uma em que a janela de madeira não fechava totalmente, se alguém quisesse enfiar uma espingarda no meio e dar um tiro nas minhas costas…”, diz Antonia, sorrindo.