Direitos fundamentais

Direito às garantias e deveres de proteção sob o diálogo das fontes no âmbito do processo penal

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Capítulo 1

É fácil trocar as palavras.
Difícil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado.
Difícil é saber como se encontrar!”


(Fragmento atribuído a Fernando Pessoa)

Somos ilhas no mar desconhecido.
O grande mar nos une e nos separa.
Fala de longe o aceno leve das palmeiras.
Mensagens se alongam nas líquidas veredas.
Cada penhasco é tão sozinho e diferente!
Ninguém consegue partilhar a solidão.
Ilhas no grande mar, aprisionadas.
Apenas o perfil das outras ilhas, vemos.
Só Deus conhece nossa exata dimensão”.

(Helena Kolody – Ilhas)
  1. Introdução à reflexão sobre a ipseidade do garantismo penal

As palavras que seguem traduzem meditação que transita entre o diálogo das fontes e alguns temas do processo penal, à luz de precedentes do Supremo Tribunal Federal. É um exercício de compreensão1 do que está na base de certas controvérsias relevantes na literatura jurídica criminal.

Buscamos uma oferta de ideias ao debate presente na experiência forense e no conhecimento jurídico: a soi-disant antinomia entre direito às garantias e deveres de efetividade na persecução penal. Afastamos nessa oblação de ponderações o proceder solipsista da resolução plebiscitária a escolhas impostas por falsos dilemas. Enaltecemos a razão de ser, por si só, das garantias processuais penais, bem como a proteção dos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento.

Intende-se, desse modo, homenagear a temática de fundo promovendo diálogos e problematizações normativas. Ambos se inspiram nos fragmentos poéticos à epígrafe; os versos acima sabem a porquês.

2. Contribuições da Teoria do Diálogo das Fontes na resolução concreta de conflitos aparentes de normas

As codificações normativas foram formatadas como ferramentas de concretização da segurança jurídica, na medida em que são editadas com a tendência de reduzir a indeterminação do direito, fornecendo ao intérprete instrumentos potencialmente úteis ao esquadrinhamento de determinadas controvérsias juridicamente postas. Almeja-se reduzir a complexidade e apreender a totalidade. A propósito, convém rememorar que, nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, “não há cogitar de Código onde falta espírito de sistema e dedução científica e harmônica de princípios2”. Dedução científica e harmônica que, ao fim e ao cabo, devem visar à salvaguarda e concretização da cognoscibilidade, unidade e coerência do direito. Eis o nascedouro metodológico do pensamento codificado.

Acerca das codificações no cenário normativo brasileiro, José Reinaldo de Lima Lopes3 esclarece que se trata de advento oriundo da Constituição do Império (art. 179, XVIII). Referido autor acrescenta ainda que, para aquela narrativa constitucional, focalizava-se a categoria normativa codificada como um dos componentes do catálogo de instrumentos vinculados à proteção de direitos. Nesse sentido, confira-se:

Essa simplificação e clareza do direito tinha, nesses ambientes, como fundamento a ideia de que pela razão natural era possível conhecer os direitos subjetivos e se o direito positivo se adequasse a esses direitos elementares seria fácil para qualquer um manejar todo o sistema jurídico.

(…)

O fato de a provisão constitucional sobre os códigos encontrar-se no artigo 179 diz muito sobre o assunto. O artigo era a declaração de direitos de nossa primeira constituição. Assim, os códigos aparecem como o instrumento adequado para a proteção de direitos.

Embora a codificação constitua um fenômeno exercitado, em certa medida, desde a Antiguidade4, a doutrina sublinha ainda que a Idade Moderna desvelou robustecimento dessa prática. Notadamente, inclusive por força da consagração do Estado de Direito, da necessidade de maior comprometimento com a segurança jurídica, perspectiva que também pode ser compreendida à luz das conquistas liberais que estabeleceram limites à intervenção estatal na esfera individual5. Nesse sentido, confira-se segmento de lição de Paulo Lôbo6:

A codificação, como método racional, teve importante papel no desmoronamento do sistema de valores do velho regime que ancorava na autoridade e no status social. A maximização do progresso material individual e ilimitado, exigente de normas certas, claras e precisas, para a segurança dos negócios, e a definição das conquistas liberais contra a intervenção do Estado na órbita privada, especialmente a defesa da propriedade individual, redundaram na codificação civil moderna.

Nessa ambiência, colhe-se clássica passagem de Norberto Bobbio na direção de que “a antinomia produz incerteza7”, a desvelar a compatibilidade e alinhamento entre o fenômeno da codificação e os ideais liberais verificados ao tempo em que editados diplomas normativos dessa natureza.

Paulo Lôbo prossegue afirmando que se a codificação, por um lado, retratava, ao menos sob o prisma econômico, o caráter liberal da ordem normativa, de outro, evidenciava o viés conservador do ordenamento ao disciplinar as relações sociais cuja força motriz não se centrava nessa reduzida expressividade patrimonial. Sob essa perspectiva, ilustrativamente, a codificação poderia ser considerada “[l]iberal para o mundo dos negócios, mas extremamente conservadora para as relações familiares, que permanecem ancoradas nos modelos passados do patriarcado, da desigualdade de gênero e da discriminação dos filhos8”.

Nada obstante sua relevância, inclusive sob o ponto de vista histórico, é certo que as constantes e crescentes transformações sociais não se contentaram com os conceitualismos que caracterizam grandes codificações aprovadas mediante deliberações inseridas em morosos processos legislativos que comumente não asseguram a atualidade normativa exigida9.

Uma das facetas vinculadas à insuficiência das codificações consiste precisamente na constitucionalização do direito10, desvelando o caráter central e a força irradiante dos direitos fundamentais, decorrência explícita da dimensão objetiva da dignidade humana e do cenário normativo vivenciado na ambiência posterior à Segunda Guerra11. São os tempos contemporâneos da descodificação e da complexidade fractal.

Além disso, a complexificação das relações sociais em geral tem repercutido na dimensão do tratamento jurídico conferido à realidade experimentada, gerando exponencial pluralismo normativo. Nesse sentido, a um só tempo, as codificações têm se debruçado sobre uma gama crescente de matérias, bem como é possível verificar a edição de normas especiais que passam a disciplinar recortes específicos da experiência humana12. Aí se insere a era dos estatutos ou microssistemas.

Essa expansão quantitativa e, quiçá, qualitativa – no sentido de versar sobre conteúdos até então não analisados de especial forma pelo ordenamento jurídico – de preceitos normativos, exige que o intérprete lance mão de critérios que se mostrem aptos a, de forma concomitante, angariar segurança jurídica e fazer frente às demandas que desafiam equacionamento pela via do Direito.

É que a proliferação de normas jurídicas, de cunho geral ou especial, desvela cenário propício a acarretar, em similar proporção, incremento de antinomias13, reais ou aparentes, no ordenamento jurídico. Assim, Maria Helena Diniz bem afirma que “a antinomia é um fenômeno muito comum entre nós ante a incrível multiplicação das leis”14.

Esse aspecto desafia, por certo, dedicação do intérprete à resolução desses conflitos potenciais15. Sobretudo em razão de que, comumente, as normas jurídicas não solucionam, prévia e especificamente, antinomias dessa natureza16. Ao revés, no mais das vezes, caberá ao intérprete fazê-lo, sobretudo à luz de critérios abstratos que se orientam a salvaguardar e, porque não o dizer, robustecer o caráter sistemático e harmônico do ordenamento jurídico. Tópica, jurisprudência e sistematicidade racional compõem tripé hermenêutico para casos complexos, insuscetíveis de resolução por silogismos tópico-dedutivos.

Vale dizer que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro consagra critérios de resolução de conflitos normativos. Nessa perspectiva, os aspectos hierárquico, especialidade e temporalidade são concebidos com a finalidade de implementar segurança jurídica e concretizar a aplicação de normas jurídicas de forma coerente com o sistema normativo.

Nada obstante, aponta-se que a adoção hermeticamente fechada desses critérios ditos tradicionais não se fundaria propriamente numa relação dialógica entre as normas jurídicas, mas, principalmente, sob o viés da proteção da coerência e integridade do sistema, forneceria um caminho previamente estabelecido para a resolução de potenciais incongruências. Nessa óptica, tais critérios poderiam acabar por desempenhar papel de opção plebiscitária na cogitada colisão de normas jurídicas, resultando, por consequência, no integral afastamento de uma das normas subjacentes à equação normativa.

Nesse passo, os critérios expressamente estabelecidos pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ao fim e ao cabo, teriam o condão, ao menos potencialmente, de negar aplicação a uma das normas que integram essa colisão, proporcionando o emprego isolado da figura normativa que, à luz da aplicação concreta das balizas abstratas, se sagrasse “vencedora” nessa relação conflituosa.

É nesse contexto que a Professora Claudia Lima Marques, partindo da concepção do Professor Erik Jayme, propugna, na ambiência jurídica brasileira, o emprego da Teoria do Diálogo das Fontes. Defende, em suma, mormente como instrumento de tutela de situações configuradoras de vulnerabilidades normativas, a aplicação conjugada de normas jurídicas, superando, mas não desprezando17, o manejo dos critérios previstos na LINDB, tudo com o intuito de conciliar as prescrições normativas e concretizar os escopos da ordem jurídica.

Impende rememorar que a Teoria do Diálogo das Fontes é inicialmente introduzida doutrinariamente, no cenário brasileiro, na espacialidade das relações recíprocas entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor. Nesse sentido, em apertada síntese, aponta a Professora Claudia Lima Marques que o Código Civil configuraria diploma normativo de caráter central, mas não total18. Assim, destinar-se-ia à regência, ainda que de modo não exclusivo, das relações civis em geral entre iguais, vale dizer, relações jurídicas caracterizadas por certa horizontalidade. Por outro lado, não dispensaria o acionamento adicional de outros diplomas normativos, notadamente em hipóteses envolvendo relações que exprimam desequilíbrio juridicamente relevante (eficácia diagonal).

Nessa ambiência, Claudia Lima Marques19 bem esmiúça as possíveis espécies de diálogo entre as aludidas fontes normativas:

Em minha visão atual, três são os tipos de ‘diálogo’ possíveis entre essas duas importantíssimas leis da vida privada: 1) na aplicação simultânea das duas leis, uma lei pode servir de base conceitual para outra (diálogo sistemático de coerência), especialmente se uma lei é geral e a outra especial, se uma é a lei central do sistema e a outra um microssistema específico, não completo materialmente, apenas com completude subjetiva de tutela de um grupo da sociedade; 2) na aplicação coordenada das duas leis, uma lei pode complementar a aplicação da outra, a depender de seu campo de aplicação no caso concreto (diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade em antinomias aparentes ou reais), a indicar a aplicação complementar tanto de suas normas, quanto de seus princípios, no que couber, no que for necessário ou subsidiariamente; 3) ainda há o diálogo das influências recíprocas sistemáticas, como no caso de uma possível redefinição do campo de aplicação de uma lei (assim, por exemplo, as definições de consumidor stricto sensu e de consumidor equiparado podem sofrer influências finalísticas do Código Civil, uma vez que esta lei vem justamente para regular as relações entre iguais, dois iguais-consumidores ou dois iguais-fornecedores entre si – no caso de dois fornecedores, trata-se de relações empresariais típicas, em que o destinatário final fático da coisa ou do fazer comercial é um outro empresário ou comerciante -, ou como no caso da possível transposição das conquistas do Richterrecht (direito dos juízes), alçadas de uma lei para outra. É a influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de double sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática).

Cabe salientar ainda que a Teoria do Diálogo das Fontes já contou com agasalho do Supremo Tribunal Federal. Exemplificativamente, menciona-se a ADI 2591 (Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Redator(a) p/ Acórdão: Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 07/06/2006), em que se concluiu pela submissão das instituições bancárias à regência do Código de Defesa do Consumidor. O eminente Min. Joaquim Barbosa, na ocasião do referido julgamento, ponderou o seguinte:

Em muitos casos, o operador do direito irá deparar-se com fatos que conclamam a aplicação de normas tanto de uma como de outra área do conhecimento jurídico. Assim ocorre em razão dos diferentes aspectos que uma mesma realidade apresenta, fazendo com que ela possa amoldar-se aos âmbitos normativos de diferentes leis. Um exemplo corriqueiro disso é a aplicabilidade tanto de normas do Código Civil como do Código Penal a um mesmo fato, sem que se possa falar em antinomias ou colisões.

A Emenda Constitucional 40, na medida em que conferiu maior vagueza à disciplina constitucional do sistema financeiro (dando nova redação ao art. 192), tornou ainda maior esse campo que a professora Cláudia Lima Marques denominou ‘diálogo entre fontes’ – no caso entre a lei ordinária (que disciplina as relações consumeristas) e as leis complementares (que disciplinam o sistema financeiro nacional). Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em ‘influências recíprocas’, em ‘aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente’.

Como se vê, embora o “método” do diálogo das fontes tenha sua aplicação mais comumente identificada no contexto das relações recíprocas entre as normas gerais do Direito Civil e as prescrições defensivas consumeristas, sua estrutura teórica, seguramente, pode ser empregada na perspectiva de outros ramos do direito e sob diversos enfoques normativos. Inúmeros recortes, portanto, podem ser selecionados para fins de exame de sua respectiva influência, efetiva ou potencial.

Ademais, conforme se intui da própria nomenclatura, o diálogo das fontes tenciona romper a tradição que em certos termos é adversarial entre cominações normativas. Em outras palavras, na perspectiva da incidência dos clássicos critérios estabelecidos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, exclui-se para se resolver o conflito normativo, enquanto que, para a Teoria do Diálogo das Fontes, inclui-se para se aplicar de modo otimizado as prescrições normativas contrastantes, sobretudo, à luz de suas influências recíprocas, com a finalidade de superlativar a concretização da dignidade humana20.

O foco, portanto, associa-se à proteção e à concretização de direitos. A propósito, essa realidade já estava subjacente nas lições de Norberto Bobbio que, ao se deparar com antinomias reais, advogava a aplicação da norma mais favorável às liberdades públicas, deflagrando uma certa funcionalização dos mecanismos de resolução de conflitos normativos e da definição da fonte do direito incidente em determinado caso concreto. Nessa perspectiva21, em caso de insuficiência, ponderava que o:

(…) critério com respeito à forma consistiria em estabelecer uma graduação de prevalência entre as três formas na norma jurídica, por exemplo, deste modo: se de duas normas incompatíveis uma é imperativa ou proibitiva e a outra é a permissiva, prevalece a permissiva.

Compreendida como adequado, portanto, “dar preponderância, em caso de ambiguidade ou incerteza na interpretação de um texto, à interpretação favorabilis sobre a odiosa”. E arremata:

O problema real, frente ao qual se encontra o intérprete, não é o de fazer prevalecer a norma permissiva sobre a imperativa ou vice-versa, mas sim o de qual dos dois sujeitos da relação jurídica é mais justo proteger, isto é, qual dos dois interesses em conflito é justo fazer prevalecer.

Na seara da temática aqui versada, qual seja, a ambiência processual penal, impende registrar que os direitos fundamentais figuram nos dois polos da equação constitucional que a subjaz22, na medida em que o processo23, a um só tempo, funciona como instrumento de salvaguarda de interesses do cidadão e também como ferramenta de proteção de bens jurídicos selecionados e tutelados pela via do Direito Penal no Estado de Direito democrático24.

Não há, portanto, no contexto de conflitos normativos, opção apriorística entre prescrições normativas que protejam interesses de acusados ou investigados e entre medidas que produzam condições para propiciar maior eficiência na elucidação de fatos e no alcance de uma resposta penal de mérito. A resposta adequada às interrogações que emergem desse balanceamento deriva da densificação do texto constitucional.

A rigor, o chamado garantismo penal integral compreende as perspectivas positiva e negativa25. Nesse contexto, o garantismo se desenvolve por meio de um equilíbrio no desenrolar processual, na medida em que os direitos fundamentais figuram tanto como limite ao poderio estatal quanto como norteadores dos escopos de sua atuação (imperativos de tutela).

Há, assim, apenas uma aparente dicotomia entre a eficiência da persecução penal e os direitos fundamentais. Trata-se, por assim dizer, de dilema tautológico.

A opção, em verdade, deve desencadear-se, à luz da proporcionalidade e especialmente dos mandamentos constitucionais, em exame concreto das situações submetidas ao crivo do Estado-Juiz.

Nada obstante, para os fins aqui propostos, não se está a fazer análise aprofundada de quais são os critérios para a determinação de qual interesse jurídico deve ser perseguido em conflitos normativos. O cerne da questão, no presente contexto, é que, de fato, essas categorias e interferências normativas traduzem cunho funcional e devem ser concebidas sob a vertente do fortalecimento da proteção dos direitos e garantias, positiva ou negativamente concretizados, que compõem o núcleo da dignidade humana.

Depreende-se, portanto, que o intuito de adequada proteção de direitos, cada qual à sua maneira, resta sendo o fio condutor dos movimentos de codificação, da descodificação, da constitucionalização do direito e do diálogo das fontes, atribuindo-se caráter funcional a determinadas estruturas normativas e de aplicação do direito. O desafio, nesse sentido, reside na definição de caminho normativo que, a um só tempo, resguarde a segurança jurídica do ordenamento, bem como promova a implementação das prescrições normativas e a concretização dos direitos fundamentais, aspectos indissociáveis da Teoria do Diálogo das Fontes.

3. Autonomia do Direito Processual Penal como premissa do diálogo das fontes

Sob a perspectiva do Direito Processual Penal, o acionamento da Teoria do Diálogo das Fontes não significa, em absoluto, mitigação, tampouco inobservância, da autonomia e cogência das regras especiais em contraste com prescrições de cunho geral.

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, frisou a preponderância das normas especiais que versam sobre processo penal em relação às prescrições veiculadas, por exemplo, por meio do Código de Processo Civil.

A título exemplificativo, cabe mencionar a compreensão do Tribunal Pleno, sob o enfoque o artigo 544 do CPC/73, em relação à manutenção do prazo de 5 (cinco) dias na hipótese de interposição de agravo em recurso extraordinário em matéria criminal. Confira-se:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PRAZO. LEI Nº 12.322/2010. MATÉRIA CRIMINAL. INAPLICABILIDADE DO ART. 544 DO CPC. INCIDÊNCIA DO ART. 28 DA LEI Nº 8.038/90. PRECEDENTES. QUESTÃO DE ORDEM REJEITADA E AGRAVO NÃO CONHECIDO. 1. A alteração promovida pela Lei nº 12.322, de 9 de setembro de 2010, não se aplica aos recursos extraordinários e agravos que versem sobre matéria penal e processual penal, de modo que o prazo do Agravo em Recurso Extraordinário criminal é o de 5 (cinco) dias previsto no art. 28 da Lei nº 8.038/90, e não o de 10 (dez) dias, conforme o art. 544 do CPC. Precedentes (AG 197.032-RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 5.11.97; AG (AgRg) 234.016-SP, rel. Min. Ilmar Galvão, 8.6.99). 2. Questão de ordem rejeitada para não conhecer do recurso de agravo. (ARE 639846 AgR-QO, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Redator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2011)

Não pesou para a Corte, portanto, a maior ou menor extensão do prazo recursal, mas, sim, a especialidade da normativa processual penal.

Ainda ilustrativamente, mais recentemente, o Plenário, ao examinar agravo regimental nos embargos de declaração na Rcl. 23.045/PR26, concluiu que a contagem de prazo no contexto de reclamações, na hipótese de o ato impugnado ter sido produzido em processo ou procedimento de natureza penal, submete-se ao art. 798 do Código de Processo Penal, afastando a incidência da contagem de prazo em dias úteis prevista no artigo 219 do Código de Processo Civil de 2015.

No referido julgamento, a propósito, o voto condutor explicitou que a aplicação subsidiária das normas do processo civil “decorre não do suposto caráter geral do Código de Processo Civil, mas, em verdade, da interpretação direta do Código de Processo Penal”. Vale dizer, não se trata de submissão das normas processuais penais ao processo civil, mas de método de diálogo que decorre da própria admissão explícita do Código de Processo Penal (art. 3º).

Faz-se esse registro para se atentar, desde logo, que não se trata, na presente oportunidade, de se defender uma espécie de teoria geral aplicável ao processo, tampouco de sustentar o caráter central das normas processuais civis. O que se pretende, ao revés, é enfatizar que a teoria do diálogo das fontes deve ser aplicada no contexto processual penal partindo da premissa de que, de fato, há relação de especialidade que subordina o acionamento de normas do processo civil, por exemplo. Mais do que isso, essa aplicação subsidiária tem como pressuposto relação de compatibilidade27, aspecto bem examinado por Norberto Bobbio na clássica e aqui multicitada obra Teoria do Ordenamento Jurídico28:

(…) um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Sistema aqui equivale à validade do princípio que exclui a compatibilidade das normas. Se num ordenamento vem a existir normas incompatíveis, uma delas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento tem certo relacionamento entre si, e esse relacionamento é o relacionamento da compatibilidade, que implica a exclusão da incompatibilidade.

É à luz dessa relação de compatibilidade que Bobbio aborda no contexto do ordenamento jurídico como um todo que deve ser verificado o manejo de normas de aplicação subsidiária ao processo penal.

Nesse contexto, o diálogo das fontes não dispensa a observância concomitante da especialidade das normas processuais penais e, sobretudo, da exigência de compatibilidade de prescrições aplicadas de forma conjugada ou complementar.

4. Filtragem do Direito Processual Penal: influências recíprocas entre distintas fontes normativas

Fixadas essas premissas, passa-se a examinar relações e influências recíprocas entre as normas do direito processual penal e outras específicas fontes normativas.

De início, cabe sopesar que o art. 3° do Código de Processo Penal institui mecanismo de integração de lacunas que resulta na aplicação subsidiária das normas processuais civis naquilo que não conflitarem com o sistema processual penal. Aqui, prepondera a especialidade das normas processuais e, em caso de lacuna, o acionamento de normas editadas em outros ramos, desde que compatíveis com a seara processual penal.

Em tais casos, nada obstante, o caráter dialógico é em certa medida no mínimo reduzido, tendo em vista que não se trata propriamente da aplicação conjugada ou sobreposta de prescrições normativas mas, mormente, de equacionamento de questões em espaços normativos não expressamente disciplinados pelo legislador processual penal. Em outras palavras, não é o caso de diálogo, que supõe falas distintas e recíprocas, mas de silêncio da norma processual penal. Silêncio este que pode ser suprido, segundo indica o próprio CPP, por normas integrantes de outros ramos jurídicos.

Também cabe enfatizar a relação desencadeada entre a Constituição da República e a lei processual penal. Embora, nessa hipótese, não se trate, sequer virtualmente, de conflito normativo, em razão da posição privilegiada da CRFB no ordenamento jurídico brasileiro, as noções atinentes ao diálogo das fontes é relevante para o fim de, ilustrativamente, extrair a ideia de que, de fato, os dispositivos normativos, em geral, não são acionados de modo dissociado ou isolado.

Com efeito, como decorrência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, os comandos e garantias constitucionais produzem eficácia irradiante sobre as regras processuais previstas na legislação infraconstitucional29. Afirma-se, nesse sentido, que é “como se a Constituição criasse um campo magnético ao redor das leis de modo que toda interpretação acaba sendo afetada por essa força”.30

Nessa toada, depreende-se que há, por exemplo, uma necessária relação dialógica entre a garantia constitucional do devido processo legal e as densificações processuais levadas a efeito pelo legislador ordinário.

A propósito, no sentido de que as normas processuais fundamentais elencadas no Código de Processo Civil, ao fim e ao cabo, traduzem materialização do devido processo legal constitucionalmente assegurado, leciona a doutrina31:

As normas fundamentais elencadas pelo legislador infraconstitucional constituem as linhas mestras do Código: são os eixos normativos a partir dos quais o processo civil deve ser interpretado, aplicado e estruturado. As normas fundamentais do processo civil estão obviamente na Constituição e podem ser integralmente reconduzidas ao direito fundamental ao processo justo (art. 5°, LIV, CF).

Ainda acerca do papel central da CRFB na ambiência do Direito Processual, complementa-se32:

O Código de Processo Civil não é pleno e nem central, nada obstante sirva, enquanto densificação infraconstitucional do direito ao processo justo, como direito processual geral – isto é, transetorial, sendo aplicável naquilo que não conflite em toda disciplina processual brasileira (art. 15, CPC). Não é pleno, porque o sistema é relativamente aberto a diferentes estatutos processuais previstos em leis extravagantes que convivem com o Código. Não é central, porque a centralidade na ordem jurídica brasileira é da Constituição. Isso quer dizer que a construção e a reconstrução do sistema processual civil parte da Constituição, vai à legislação e volta para a Constituição: o direito fundamental ao processo justo principia e enfeixa o processo civil brasileiro.

Há, nesse contexto, inegável influência recíproca entre as normas constitucionais que disciplinam garantias processuais e a normas infraconstitucionais que densificam esses comandos. Assim, cada espacialidade, a seu modo, interfere na outra. Ora norteando a atuação do legislador e a interpretação do operador, ora concretizando e até mesmo incrementando a eficácia fática dos mandamentos que traduzem a própria força normativa da Constituição da República.

Além disso, é o caso de apontar a possibilidade, e até exigência, de diálogo normativo entre as regras processuais internas e as prescrições emanadas de tratados internacionais que vinculam o Estado brasileiro, independentemente, para essa finalidade, da abordagem aprofundada, inclusive à luz da cláusula de abertura espelhada no art. 5°, §2°, CRFB, acerca da controvérsia referente à eventual equivalência constitucional ou supralegal dessas disposições supranacionais. A respeito dessa necessária interação, bem pontua a doutrina33 que:

A adequação das regras do processo penal, portanto, ultrapassa a mera adequação constitucional e adere à normatividade internacional, em perspectiva evolutiva das necessidades e possibilidades de realização e, sobretudo, de interdependência, em suma, na realização do devido processo, na perspectiva de um direito inserido na proteção humanitária internacional.

E ainda34:

A ordem jurídica contemporânea clama pelo ‘diálogo das fontes’ (Erik Jayme e Mazzuoli), pelo inter-relacionamento dialógico, na perspectiva da simbiose recíproca e não da exclusão, com um diálogo que permita a comunicação entre os sujeitos, as instituições além-fronteiras, de forma aberta e democrática, rejeitando-se os totalitarismos e imperialismos dominantes e de verdade única. Nessa perspectiva se inclui o ‘diálogo das fontes’. Evolui-se, paulatinamente, da restrição da incidência da normatividade internacional às relações entre Estados – domestic affair – à necessidade de efetivação dos direitos fundamentais e humanos na perspectiva da cidadania – international concern. A abertura às Cortes e às fontes internacionais propicia o diálogo normativo e jurisdicional, a incorporação de novos paradigmas e perspectivas de desenvolvimento do devido processo. Perceptível e factível a dinâmica dialogada entre as ordens normativas interna, regional e internacional.

Cabe mencionar que não é incomum nos afazeres do Supremo Tribunal Federal a resolução de demandas processuais penais com o acionamento de fontes normativas supranacionais, inclusive com menção à interpretação internacionalista.

A despeito da persistência de controvérsia a respeito da matéria, releva indicar o decidido no HC 93503, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 02/06/2009. Na ocasião, enfrentou-se a temática referente ao direito de presença e audiência de acusados em geral, sobretudo sob o enfoque de alegações estatais de insuficiência financeira para custear despesas afetas à remoção de pessoas presas por ordem estatal.

No referido julgamento, o eminente decano da Corte, com a percuciência que lhe é própria, teceu considerações acerca da essencialidade do estatuto constitucional do direito de defesa, dialogando com convenções internacionais que, em sua visão, incluiriam, de modo inafastável, o direito de presença dos acusados no feixe das franquias correspondentes ao devido processo legal.

Mais recentemente, o Tribunal Pleno (ADI 5240, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 20/08/2015) examinou a temática associada à audiência de apresentação, também chamada de audiência de custódia. A questão versava sobre eventual usurpação normativa decorrente de ato infralegal, emanado de Tribunal de Justiça, que, em âmbito estadual, disciplinou a apresentação de pessoas presas em flagrante delito.

O colegiado maior, por sua vez, compreendeu que o ato oriundo do Tribunal local, em verdade, apenas teria densificado e concretizado procedimento de apresentação de presos que já decorria de tratados e convenções internacionais, que contaram com internalização no ordenamento jurídico brasileiro (sobretudo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos) e que previram o dever estatal de proporcionar a apresentação, sem demora, de toda pessoa presa à presença de um juiz. Também se afirmou que o procedimento do habeas corpus, cujas balizas gerais estão contidas nos artigos 647 e seguintes do Código de Processo Penal, remonta à necessidade de apresentação de pessoas presas à autoridade judiciária.

Nesse sentido, concluiu-se pela higidez constitucional do diálogo normativo deflagrado entre a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o procedimento do habeas corpus sinalizado pelo Código de Processo Penal com a concretização infralegal, à luz dessas prescrições, da disciplina minudente do modo de implementação das audiências de apresentação.

Essa compreensão, inclusive com expressa menção à Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos e ao Pacto dos Direitos Civis e Políticos, foi reiterada pelo Plenário na ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, por meio da qual se suscitou e se concedeu, parcialmente, tutela provisória sob a perspectiva do reconhecido estado de coisas inconstitucional que acomete o sistema penitenciário brasileiro como um todo.

Novamente com o manejo de normas supranacionais, reafirmou-se essa posição no HC 157306, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 25/09/2018.

Como se vê, as normas processuais penais sofrem influência direta não apenas da Constituição da República mas, inclusive, de normas de origem internacional que, ao contarem com adesão do Estado brasileiro, materializam a densificação e concretização da cláusula do devido processo legal que, como já se disse, configura o fio condutor e a força motriz que origina as disciplinas processuais em geral que se organizam e se orientam com a finalidade de consecução de um processo justo.

Ademais, o alcance de um processo justo também guia a influência dialógica entre normas processuais internas que, em conjunto, integram o sistema processual penal.

Um bom exemplo é o decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no HC 127900, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 03/03/2016. Discutia-se, na aludida impetração, à luz da Lei n. 11.719/08, que alterou o Código de Processo Penal para prever o interrogatório como o último ato da instrução processual, eventual repercussão dessa previsão no processo penal militar, embora o Código de Processo Penal Militar previsse o interrogatório em fase anterior.

Ambos os diplomas normativos, vale dizer, o CPPM e o CPP, integram o âmbito do direito processual penal. Nada obstante, parece induvidoso o caráter especial da norma militar. Desse modo, com efeito, ao menos prima facie, eventual conflituosidade entre tais dispositivos normativos deveria ser solucionada em favor da norma castrense, em razão de suas especificidades próprias.

Nada obstante, o Tribunal Pleno, com foco na garantia do devido processo legal e nas demais disposições da CRFB, especialmente da ampla defesa, do reconhecimento do acusado como sujeito e não como objeto de direito e da presunção de inocência, com seus reflexos no ônus probatório, enalteceu a premissa de que o interrogatório consubstancia meio de autodefesa, razão pela qual seu exercício posterior à produção das provas potencialmente incriminadoras, de fato, é consentâneo com o estatuto constitucional do direito de defesa.

Assim, reconheceu-se a mutação normativa e funcional do interrogatório, de modo que a especialidade, nesse caso, não prevaleceu. Ao revés, prestigiou-se a eficácia irradiante da Constituição da República que proporcionou releitura do significado do ato de interrogatório, concluindo-se pela incidência da norma geral, prevista expressamente no Código de Processo Penal, não apenas para o contexto processual penal militar, mas para a integralidade dos demais procedimentos processuais penais em geral. Nesse sentido, fixou-se a seguinte tese de julgamento:

A norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aplica-se, a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado. (HC 127900, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/2016)

Esse pronunciamento bem demonstra a insuficiência, em determinados casos, da aplicação do princípio da especialidade. Impôs-se, na hipótese mencionada, a preponderância da regra prevista no CPP. Não por sua generalidade, mas por sua maior compatibilidade com a narrativa constitucional.

Depreende-se que o ponto fulcral não foi tão somente o caráter mais benéfico da norma geral ao exercício do direito de defesa. De fato, esse aspecto já havia sido rechaçado pelo Plenário ao proceder ao já citado exame do prazo recursal para interposição de agravo em recurso extraordinário em matéria criminal (ARE 639846 AgR-QO, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Redator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2011).

O que parece ter prevalecido na espécie é a releitura do próprio instituto do interrogatório, à luz da nova ambiência constitucional e dos ônus processuais conferidos às partes em um modelo processual que se guia pelo sistema acusatório e pela atribuição ao Ministério Público da tarefa de desconstituição do estado de inocência presumido.

Como consequência, naquele caso específico e em razão de particularidades muito próprias, a norma geral deveria preponderar sobre a especial. Isso porque, embora não tenha sido expressamente considerada inconstitucional, a previsão da realização do interrogatório como primeiro ato da instrução não se amoldaria ao figurino do devido processo legal ou, ao menos, espelharia, se comparada ao rito geral do CPP, menor conformação ao processo justo.

Verificou-se, portanto, que, no precedente mencionado, a opção do colegiado maior do Supremo Tribunal Federal pautou-se menos em critérios clássicos de resolução de antinomias, como o da especialidade, e mais na maior efetividade em direitos e garantias fundamentais que compõem o estatuto constitucional do direito de defesa e, por consequência, tendem a conferir maior concretude à dignidade humana. Mormente no caso específico, em que se tratava não da admissão de novas categorias ou fases processuais, mas sim de definição de sua ordem, sem que esse proceder gerasse prolongamento da marcha processual, arrefecimento da proteção de direitos fundamentais por meio das normas penais (imperativo de tutela), tampouco anulação de procedimentos, forte na expressa eficácia prospectiva do pronunciamento do Tribunal Pleno.

Em suma, o “método” do diálogo das fontes, embora intuitivamente mais identificado com relações entre normas de outros ramos, possui ampla aplicação na seara processual penal, sobretudo em casos em que a utilização isolada dos critérios clássicos de resolução de antinomias não se mostra satisfatória aos escopos constitucionalmente perseguidos. Nessa perspectiva, a aplicação e interpretação da norma processual penal não deve ser dissociada das normas constitucionais, convencionais e até mesmo infraconstitucionais que desvelam a essencial densificação do devido processo legal. Respeito, em síntese, ao sistema normativo cujas frações não devem ser capturadas por uma hermenêutica insular. Lealdade, pois, ao Estado de Direito democrático como integridade.

5. Conclusão: desafios republicanos da tutela dos direitos fundamentais no processo penal

Inscreve-se no memorial do dissenso as siamesas fórmulas da tese e da antítese, em igual dignidade de patamar argumentativo; aqui, portanto, sob uma dialética problematizante dos direitos fundamentais e da efetividade (qualidade compromissória da eficiência), não há ‘um só corpo e um só espírito’. Há um caminhar que reconhece, com o devido respeito, a existência de outros caminhos de compreensão.

À teoria do Diálogo das Fontes se presta homenagem pavimentada na seara do processo penal. A busca de respostas resolutivas de conflitos nela tem fio condutor que atravessa codificações, constituições e desconstruções da racionalidade normativa. Proteção dos direitos e garantias compõem um desses núcleos imanentes aos direitos fundamentais; de não menos relevância é a tutela aos bens jurídicos agasalhados na ordem constitucional do Estado de Direito democrático.

Bem salientamos as especificidades de Direito Processual Penal, imune a qualquer “teoria geral”. Nem de longe, no entanto, isso o torna impenetrável aos inputs e outputs oriundos da Constituição, cuja supremacia se impõe em todos os afazeres de interpretação. Outros diálogos há: a exemplo, no controle de convencionalidade.

Tais diálogos reacendem alguma esperança num “mundo em comum35”.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI. 2591. Relator(a): Min. Carlos Velloso, Redator(a) p/ Acórdão: Min.Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 07/06/2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 639846 AgR-QO, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Redator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2011.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 93503, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 02/06/2009.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 127900, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 157306, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 25/09/2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 636331, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl. 23.045/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 09/05/2019.

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1 “A ‘com-pre-ensão’ não se furta do mundo e não se furta do tempo.” (SOUZA CRUZ, 2015. p. 9)

2 PEREIRA, 2014, p. 66.

3 LOPES, 2017, p. 82.

4 PEREIRA, 2014, p. 66.

5 Nesse contexto, afirma-se que o “conflito de normas só se tornou um problema teórico-jurídico no século XIX, marcado pela positivação e pela concepção do direito como sistema, que propiciaram o aparecimento de condições imprescindíveis para os problemas da coerência lógica do sistema jurídico e da existência de antinomias jurídicas.” (DINIZ, 2009, p. 113)

6 LÔBO, 2015, p. 103.

7 BOBBIO, 2014. p. 91

8 LÔBO, 2015. p. 103

9 “As grandes codificações não lograram êxito em sua pretensão de racionalidade legislativa, reunindo em corpo legal único, todas as matérias a elas relacionadas. Para além dos códigos, surgiram como força crescente os denominados microssistemas jurídicos, que congregam várias áreas do Direito para regulamentação de determinada matéria, rompendo as classificações assentadas. Assim, no âmbito do Direito de Família, o Estado da Criança e do Adolescente ou o Estatuto do Idoso introduziram regras próprias de Direito Civil, de Direito Penal, de Direito Processual Civil, de Direito Processual Penal, de Direito Administrativo, que dialogam entre si para o fim de proteção desses sujeitos vulneráveis, derrogando as normas gerais dos códigos respectivos. A pluridisciplinaridade e o foco nas pessoas humanas marcam esses microssistemas.” (LÔBO, 2015, p. 103)

10 “Para Ricardo Lorenzetti, ocorreu a substituição dos códigos pela constitucionalização do direito privado. A constitucionalização viabilizou o estabelecimento de princípios norteadores a serem observados pelas novas leis compatíveis com a realidade social. As leis especiais têm a grande vantagem de ser menos extensas e mais facilmente discutidas pela sociedade civil, o que lhes confere uma legitimidade mais expressiva, um procedimento legislativo menos delongado que o de um código e maior aplicabilidade prática.” (LISBOA, 2013, p. 79)

11O desafio do jurista de hoje consiste precisamente na harmonização de fontes normativas, a partir dos valores e princípios constitucionais. O novo Código Civil deve contribuir para tal esforço hermenêutico – que em última análise significa a abertura do sistema -, não devendo o intérprete deixar-se levar por eventual sedução de nele imaginar um microclima de conceitos e liberdades patrimoniais descomprometidas com a legalidade constitucional. Portanto, o Código Civil de 2002 deve ser interpretado à luz da Constituição, seja em obediência às escolhas político-jurídicas do constituinte, seja em favor da proteção da dignidade da pessoa humana, princípio fundante do ordenamento.” (TEPEDINO, 2003-2004, p. 174).

12 Nesse sentido, confira-se: “A natureza formalista da codificação possuía um rigor lógico interno indiscutível, porém era incapaz de manter a segurança jurídica pelo fato de não acompanhar as transformações socioeconômicas. A abstração deixava o Código cada vez mais longe da realidade decorrente das grandes transformações sociais. Com isso, surgiram normas específicas dotadas de objetivos bem definidos pelo legislador, que geraram a fragmentação paulatina e crescente das codificações, que se mantiveram fechadas e no sentido liberal clássico. Essas leis específicas tornaram-se genuínos microssistemas jurídicos, que procuraram regular satisfatoriamente os diversos setores de atividade, sobre os quais a codificação não tinha condições de ser aplicada de forma condizente.” (LISBOA, 2013, p. 79)

13 Antinomia real é aqui traçada sob a perspectiva de Tércio Sampaio Ferraz Jr, que a define como “a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência dos critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado” (DINIZ, 2009, p. 19). Em sentido semelhante, Norberto Bobbio, embora reconhecendo que não se trata de conceituação completa, considera “antinomia jurídica como aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e com o mesmo âmbito de validade.” (BOBBIO, 2014. p. 91)

14 DINIZ, 2009, p. 14.

15 Resolução aqui é compreendida como o equacionamento de uma dada questão concreta, e não no sentido de eliminação abstrata da contradição das prescrições normativas. Nessa medida, o intérprete soluciona o caso concreto, mas, no plano abstrato, não elimina propriamente a antinomia jurídica.

16 Como exceção, verifica-se que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar a temática da reparação civil associada a transporte aéreo, reconheceu, à luz do art. 178, CRFB, a prevalência de normas internacionais sobre o CDC, fixando, na oportunidade, a seguinte tese: “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor” (RE 636331, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/05/2017 – Tema 210).

17 Sob a perspectiva de possível futura total superação dos critérios clássicos: “A encerrar o presente tópico, destaque-se que a teoria do diálogo das fontes surge para substituir e superar os critérios clássicos de solução das antinomias jurídicas (hierárquico, especialidade e cronológico). Realmente, esse será o seu papel no futuro. No momento, ainda é possível conciliar tais critérios com a aclamada tese, premissa que guiará a presente obra, que tenta conciliar o clássico e o contemporâneo, o moderno e o pós-moderno.” (TARTUCE, 2011, p. 64)

18 BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2017, p. 152.

19 BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2017, p. 152.

20 “Assim, podemos afirmar que o e. Supremo Tribunal Federal, os Tribunais Estaduais, os juízes de primeira instância e os JECs consolidaram o uso do método do diálogo das fontes como caminho para – em casos difíceis – assegurar prevalência do princípio pro homine e desta eficácia horizontal dos direitos fundamentais por aplicação do CDC às relações privadas”. (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2017, p. 150)

21 BOBBIO, 2014, p. 93.

22 SARMENTO, 2018, p. 449/48.

23 Na linha de que a proteção deficiente é vedada não apenas na espacialidade penal, mas, inclusive, na perspectiva processual penal, gerando obrigações processuais positivas a serem adimplidas pelo Estado, aponta-se que “a necessidade de proteção efetiva dos direitos tutelados pelas normas penais internas exige que sua afirmação vá além da mera previsão abstrata contida em tipos penais” (FISCHER; PEREIRA, 2018, p. 58/59)

24 Acerca do tema, afirma-se: “Por outro lado, a Constituição de 1988 e os tratados de direitos humanos também invocam a atuação do Direito Penal para sua proteção. Assim, o Direito Penal não é só limitado pelas Constituições e tratados, mas, em algumas situações, sua aplicação é exigida como instrumento essencial de proteção de bens jurídicos . Ao mesmo tempo em que o Estado não pode se exceder no campo penal (proibição do excesso ou Übermassverbot ), também não se pode omitir ou agir de modo insuficiente (proibição da insuficiência ou Untermassverbot). É uma nova faceta, agora amistosa, na relação entre os Direitos Humanos e o Direito Penal. Parte-se da constatação que, em um Estado Democrático de Direito, o Poder Público não pode se omitir na promoção dos direitos humanos, devendo protegê-los inclusive com o instrumento penal. Caso abra mão da tutela penal, o Estado incorre na proteção deficiente dos direitos fundamentais, violando a Constituição e os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil.” (RAMOS, 2014).

25 “Enfim, o sistema judiciário penal não tem unicamente a finalidade de garantir os direitos fundamentais dos acusados, mas também se move pelo propósito de fazer valer imposições de investigação e acertamento dos fatos supostamente delituosos, bem como de punição dos criminalmente responsáveis.” (PEREIRA, 2013, p. 49)

26 Tribunal Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 09/05/2019.

27 A questão da compatibilidade entre normas componentes de um mesmo sistema também é abordada no contexto do Direito Penal. Na perspectiva da chamada “tipicidade conglobante”, lecionam Zaffaroni e Perangeli: “Uma ordem normativa, na qual uma norma possa ordenar o que a outra pode proibir, deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma desordem arbitrária. As normas jurídicas não vivem isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras, e não podem ignorar-se mutuamente. Uma ordem normativa não é um caos de normas proibitivas amontoadas em grandes quantidades, não é um depósito de proibições arbitrárias, mas uma ordem de proibições, uma ordem de normas, um conjunto de normas que guardam entre si uma certa ordem, que lhes vem dada por seu sentido geral: seu objetivo final, que é evitar a guerra civil (a guerra de todos contra todos, bellum omnium contra omnes ) (WELZEL). Esta ordem mínima, que as normas devem guardar entre si, impede que uma norma proíba o que a outra ordena, como também impede que uma norma proíba o que a outra fomenta . (…) Isto nos indica que o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante , consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa.” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011. p. 400/401)

28 BOBBIO, 2014, p. 84.

29 No contexto da temática da boa-fé, Bruno Miragem enaltece a eficácia irradiante dos direitos fundamentais: “Seja no exame da legitimidade de exercício de um direito subjetivo em face da Constituição – por intermédio da concreção dos limites expressos na norma em face de uma situação concreta, ou por intermédio de sua aplicação como cláusula geral de proteção da confiança, cujo sentido conforme já foi referido, observa tanto a confiança na conduta do outro, quanto a confiança na correção e efetividade do sistema jurídico, do qual a Constituição e os direitos fundamentais que expressa, são o eixo normativo e valorativo fundamental.” (MIRAGEM, 2013, p. 207).

30 MARMELSTEIN, 2016, p. 338.

31 MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 142.

32 MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 143.

33 GIACOMOLLI, 2015, p. 32.

34 GIACOMOLLI, 2015, p. 33.

35 CARDOSO JÚNIOR, 2016, p. 165.