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Dija – Trinta anos no Carandiru

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Capítulo 1

Segundo capítulo - a história do preso mais antigo do Carandiru

Seu nome era Adjalnir Ferreira Ignácio, mais conhecido por Dija: um negro alto de chamar a atenção, magro, com feições duras e músculos fortes de tanto fazer halterofilismo na prisão. Estava preso há 29 anos e um mês, faltando 11 meses para ganhar a liberdade. Ele não quis dizer, mas me informaram depois que sua condenação atingia mais de 600 anos de reclusão, por prática de vários “157”, como costumam denominar o crime de roubo no meio carcerário. Todos cometidos quando tinha entre 18 a 21 anos. Deveria estar, portanto, com mais ou menos 50 anos de idade, imaginando-se que a prisão ocorrera aos 21 anos.

*     *     *     *

Era minha primeira visita à famosa Penitenciária do Estado, no complexo Carandiru, em janeiro de 2000, alguns dias após assumir a direção da Secretaria da Administração Penitenciária. O diretor do estabelecimento era Aniceto Fernandes Lopes, um dos mais antigos do sistema. Sua fama era ambígua: alguns diziam que se tratava de um dos mais competentes e sérios; outros sorriam maliciosamente quando eu perguntava sobre seu conceito. Não diziam nada, mas deixavam evidente o que pretendiam dizer. Era uma época em que buscávamos o máximo de informações sobre todos os diretores para decidir se os manteria. Apesar das dúvidas sobre a idoneidade e capacidade do Aniceto, minha intuição indicava que deveria mantê-lo. Tinha um jeito confiável, de pouca conversa e sem tendência para o “puxa-saquismo”, como muitos do sistema.

Além disso, há anos dirigia a PE (como chamavam a Penitenciária do Estado), segunda maior unidade do sistema (a maior era a Casa de Detenção, também no complexo [simple_tooltip content=’O Complexo prisional do Carandiru era composto pela Penitenciária do Estado, Casa de Detenção Flamínio Fávero, mais conhecida simplesmente por Casa de Detenção, Penitenciária Feminina, Centro de Observação Criminológica (COC) e Hospital Central.’]Carandiru[/simple_tooltip]) e até onde me informaram, sem maiores problemas. Diziam que a PE era onde menos problemas havia porque os criminosos, quase todos com altíssimas condenações, estavam conformados com a situação e sabiam que saindo de lá só restariam longínquos presídios do interior. Minha intuição não falhou a respeito de Aniceto. A ele acabei confiando muitas tarefas importantes da Pasta e nunca me decepcionou.

Ao final da visita tive a curiosidade de conhecer o preso mais antigo da mais antiga penitenciária do Estado de São Paulo. A PE fora construída em 1920 e está instalada em um majestoso prédio no Carandiru com projeto de Ramos de Azevedo. Com capacidade inicial para 1200 presos em celas individuais, por insuficiência de vagas, abrigava exatamente o dobro: 2400. Em todas as celas um dos detentos dormia no chão, porque havia só uma cama.

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Aniceto trouxe o preso Adjalnir Ferreira Ignácio, o Dija, e o apresentou como sendo o mais antigo de lá: estava recolhido desde 1971 e no final de 2001, após cumprir ininterruptamente 30 anos de reclusão, finalmente ganharia a liberdade. Não contive a curiosidade e perguntei:

— “Dija, você nunca viu a cara da rua nestes 29 anos”?

— “Não senhor, nenhuma vez” — respondeu com um jeito meio arrogante.

— “Então você não tem nem idéia do que ocorre lá fora, como o valor do dinheiro, o aspecto dos veículos, dos shoppings center”?

— “Só o que vejo pela televisão. Aliás, doutor, eu não agüento mais ficar aqui. Até completar 28 anos eu estava conformado. Agora, com a expectativa da liberdade para o final do próximo ano, estou muito nervoso e não agüento mais esperar. Temo fazer alguma bobagem até lá. O senhor tem que me tirar daqui antes do prazo. Se for solto, garanto que nunca mais cometo crime” — falou, com o nariz em pé, mantendo ainda certa arrogância.

Expliquei calmamente os trâmites legais necessários junto à justiça para obtenção da liberdade e deixei claro que a competência para libertar um preso não era minha. Para parecer simpático até disse que, se ainda fosse juiz, poderia tentar encontrar no processo alguma brecha para antecipar a liberdade, mas na qualidade de secretário não podia fazer nada. Sua fisionomia foi se descontraindo e ao final da conversa parecia mais calmo, ou, quem sabe, voltou ao antigo conformismo.

Passei por diversas salas de funcionários, cumprimentando a todos e deles recebi muitos sinais de boas-vindas, que me pareceram sinceros.

Fui também a uma sala onde antigamente serviam as refeições para os diretores. É um lugar impressionante. Tem uma enorme mesa rodeada de cadeiras de madeira com espaldar alto, todas finamente trabalhadas. No canto havia um piano e o tapete era de um vermelho vivo, daqueles que costumam usar na presidência do Tribunal de Justiça. Mas que luxo, pensei. “Para quê será que serve um piano numa penitenciária?” Na porta de entrada, um busto de bronze com o nome de Odon Ramos Maranhão, ex-diretor da casa.

O tamanho da PE é incrível. São três pavilhões com 800 celas cada um, em cinco andares e o vão central protegido com telas que servem para aparar a queda se algum funcionário ou preso for jogado lá de cima.

Terminada a visita, despedi-me de todos e voltei à secretaria.

*     *     *     *

Algum tempo depois, cerca de um ano e meio, fui visitar o Centro de Observação Criminológica – COC, também no complexo Carandiru. Estávamos desativando aquele centro, que seria transformado em hospital penitenciário, grande necessidade do sistema. Os detentos do COC eram especiais: justiceiros, ex-funcionários públicos, ex-agentes, ex-policiais militares, etc. Havia, enfim, “ex” de todas as profissões que pudessem sofrer alguma represália dos presos comuns. Até um ex-juiz estava lá. Estava também o cabo Bruno, famoso justiceiro expulso da polícia militar, condenado a mais de 200 anos por haver eliminado muitas pessoas suspeitas de envolvimento em crimes, a pedido de comerciantes, conforme contavam.

Fui fazer a visita para explicar aos presos os motivos da desativação e também para tranqüilizá-los, já que corria boato de que seriam espalhados nas unidades comuns, onde certamente morreriam. O ambiente era tenso. Estavam quase todos com a fisionomia carregada e com jeito de “bandidos” que não queriam saber de conversa mole. Quase todos com condenações que ultrapassavam 100 anos.

Entrei em todos os pavilhões, sem medo, sem constrangimentos e com a consciência tranqüila de quem estava tomando uma decisão para o bem de todos os presos do Estado.

Eles precisavam do hospital e sabiam disso. As explicações foram dadas, respondidas as perguntas e me pareceu que se não todos, a grande maioria compreendeu e se tranqüilizou, sabendo que iriam juntos para uma unidade na cidade de Tremembé, onde não haveria outros presos além deles mesmos.

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No último pavilhão, para minha surpresa, avistei no meio de mais ou menos 80 presos, o negro alto cuja fisionomia dificilmente seria esquecida: era o Dija. Mas o que será que esse sujeito “aprontou” para estar de volta? Com certeza já completara 30 anos de prisão e deveria estar em liberdade. Ele não se aproximou. Mais um sinal que deveria mesmo ter “aprontado”, pois é assim que normalmente os que reincidem costumam agir: têm vergonha de falar com a autoridade, a quem prometeram nunca mais delinqüir.

Antes de sair, chamei o Dija e perguntei:

— “Você é o Dija, que eu conheci na Penitenciária do Estado, não é”?

Ele abriu um largo sorriso, mostrando seus dentes brancos sem falhas:

— “O senhor lembra-se de mim”? — disse visivelmente satisfeito por ter sido reconhecido.

— “Pois é, doutor, o senhor nem pode imaginar o que me aconteceu” – continuou — “ao completar exatamente 30 anos de prisão, em 08 de dezembro de 2001, num sábado, fui solto. O diretor, [simple_tooltip content=’Hugo Berni Neto, que foi também diretor da Penitenciária II de Sorocaba e atualmente é Coodenador da Região Central.’]Dr.Hugo[/simple_tooltip], me chamou e me deu a sonhada liberdade. Ele advertiu-me para voltar após alguns dias para apanhar o alvará de soltura, já que, por ser sábado, a máquina de xérox estava fechada. Pois voltei, na maior boa fé, nove dias depois, no dia 17 de dezembro de 2001, e o diretor muito chateado, explicou que recebera telefonema de uma promotora para me prender de novo. A soltura, segundo disse, teria sido um engano”.

Fui ouvindo aquela história, meio cético, desconfiado que ele estivesse tentando me enganar. De qualquer forma, anotei seu nome em um pedaço de papel e prometi que examinaria seu caso. Não era possível que ele estivesse preso sem cometer novo crime.

*     *     *     *

Ao chegar na secretaria, para não me esquecer, chamei a [simple_tooltip content=’Selma Montanari Ramos é advogada concursada da FUNAP (Fundação Manoel Pedro Pimentel) e vem participando há muitos das atividades da APAC de Bragança Paulista, conforme é relatado no capítulo sobre os Centros de Ressocialização’]Selma[/simple_tooltip] e [simple_tooltip content=’Fabiane Furukawa foi advogada da APAC de Bragança Paulista, dirigiu a Assessoria Técnica de Gabinete da SAP, foi assessora especial da Presidência da Fundação CASA e hoje trabalha no Instituto de Administração Penitenciária do Governo do Acre, como assessora da presidência’]Fabiane[/simple_tooltip], ambas advogadas da minha assessoria, passei o pequeno pedaço de papel e pedi para que vissem o processo do Dija. Afinal, mesmo desconfiado, não custava nada conferir. Alguns dias depois elas vieram dizer que a história era rigorosamente verdadeira. E explicaram:

A Promotora de Justiça, Marisa Tucunduva, ao tomar conhecimento da soltura do preso, foi esmiuçar o processo e descobriu que em meados de 1972, quando ainda estava na fase de instrução (de ouvir testemunhas), o Dija foi levado para uma cadeia pública do interior. Lá brigou com outro detento e o agrediu. Foi indiciado pelo art. 129 do Código Penal (lesão corporal) e condenado a cumprir pena de 3 meses de detenção. Por essa pena entendeu a Promotora que ele deveria ser novamente preso. Pediu isso ao juiz da execução, que num simples despacho, embora houvesse declarado a extinção de todas as condenações, mandou prendê-lo novamente.

— “Isso não é possível” — falei. “É uma heresia jurídica e contraria toda jurisprudência que conheço sobre unificação das penas e o princípio de que ninguém fica preso por mais de 30 anos”. “É verdadeiramente um caso escatológico” — disse, usando uma dessas palavras difíceis que os advogados costumam [simple_tooltip content=’Escatologia significa doutrina das coisas que deverão acontecer no fim do mundo’]usar[/simple_tooltip]. E Selma adorava usar essas palavras difíceis. Tinha especial gosto por discutir a “Teoria do Duplo Binário” com o Clayton durante o almoço. E discutiam acirradamente. Poderia explicar aos leitores o que significa essa tal “teoria do duplo binário”, mas isso não vem ao caso agora.

— “Vocês precisam entrar com um habeas-corpus e soltar o Dija” — ordenei.

— “O senhor precisava estar presente quando levamos o habeas-corpus para ele assinar” — vieram as duas me contar.

— “Um homem daquele tamanho e com aquela cara de mau se desmanchou todo e não parava de chorar. Chorou copiosamente, de soluçar, dizendo que não acreditava que o ‘japonês’ havia se lembrado dele”.

Confesso que fiquei também emocionado com o relato. Não me parecia que um criminoso com mais de 600 anos de condenação, 30 anos ininterruptos na prisão, tido e havido como um dos assaltantes mais perigosos do Estado na década de 70, fosse capaz de chorar simplesmente porque eu tentava, como representante do Estado, desfazer algo que o próprio Estado impunha a um homem que cumprira sua parte. A injustiça era flagrante. Ele deveria é estar bravo por ser pobre e por não ter advogado. Se tivesse um, que nem precisava ser dos mais caros, certamente estaria solto, ou nem teria sido preso.

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Sempre achei que todos os homens, sem exceção, criminosos ainda que dos mais cruéis, guardam dentro de si uma pequena chama, ainda que mínima, de bondade. Assim como a minúscula chama em meio a uma floresta, assoprada adequadamente, se transforma em grande fogueira, num incêndio que destrói imensas paisagens, também no homem, com o sopro próprio da bondade, da esperança e, mais que isso, da justiça, a transformação pode ser alcançada. Quem sabe não será este o caso do Dija, pensei com meus botões, disfarçando a emoção.

Algum tempo depois Dija foi solto e veio à secretaria para agradecer. Selma em meio a uma audiência e outra entrou na sala e perguntou se eu não queria, pessoalmente, receber os agradecimentos. É claro que o recebi.

Dija falou longamente dos seus projetos, da sua esperança de viver honestamente e de reconstruir a vida, ao lado da mulher que conheceu no presídio e por quem dizia nutrir um grande amor. Estava montando uma serralheria na garagem da casa onde foi morar. Faltavam recursos e foi ao Banco do Povo para obter um empréstimo. O Banco do Povo é uma criação do Governo Mario Covas, que tem justamente a finalidade de fazer pequenos empréstimos para iniciativas daquele tipo.

Fiquei contagiado pelo entusiasmo do Dija e resolvi dar um pequeno empurrão: liguei para o Gustavo Ungaro, secretário adjunto da secretaria de Trabalho e das Relações de Emprego. Ao tomar conhecimento do fato Gustavo também se empolgou. Pediu para que o Dija, naquele mesmo dia, fosse à secretaria e ele o atenderia pessoalmente.

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Gustavo Ungaro é um jovem que considero especial. Eu o conheci no Ministério da Justiça, onde trabalhava na equipe de José Carlos Dias. Depois foi adjunto na secretaria da Justiça do Estado de São Paulo, adjunto na secretaria do Trabalho, secretário-geral do Tribunal de Alçada Criminal, secretário da Casa Civil da Prefeitura de Jundiaí e atualmente é diretor executivo do ITESP – Instituto de Terras do Estado de São Paulo. É competente, sério, capaz, trabalhador, sensível às causas sociais e sempre disposto a ajudar. É um jovem que vai ocupar cargos ainda mais relevantes pelo minucioso conhecimento da administração pública que tem, em várias áreas.

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O empréstimo saiu rapidamente. Mais que isso: eu e Gustavo combinamos que faríamos do exemplo emblemático do Dija alavanca impulsionadora das finalidades do Banco do Povo. Se um egresso com 30 anos de reclusão pôde se reerguer com sua ajuda, nada seria impossível…

Ao pagar a primeira prestação do empréstimo, já com sua oficina montada, Dija voltou para me contar as novidades. Estava se entendendo muito bem com a mulher, ajudando a sustentar os enteados, com a renda da pequena serralheria e de pequenos bicos. Nessa ocasião ele trazia vários quadrinhos de madeira, trabalhados manualmente, com pinturas simples de sua autoria. Era um dos seus bicos para aumentar a renda. Quis me presentear com um onde se retrata um varal com cinco peças de roupa velha estendidas ao sol ao lado de um casarão antigo. Tem a inscrição: “O medo de sofrer é pior que o próprio sofrimento”. Perguntei se a frase era dele.

— “Não, é do Paulo Coelho” — respondeu.

Embora insistisse, não aceitei o presente e pelo quadro paguei 5 reais, que Dija, baixando a cabeça, aceitou.

Passados alguns meses, procurei saber se havia alguma novidade do Dija.

Resposta decepcionante: novo mandado de prisão fora expedido e ele desaparecera, abandonando a oficina e a mulher. Mas o que será que ele fez? Certamente novo crime. É assim mesmo, pensei, já meio conformado com a repetição da história que inúmeras vezes escutei ou presenciei.

Não era isso, porém. De novo, a mesma promotora, inconformada com a soltura do Dija depois de três meses de prisão, pela agressão a outro preso em 1972, achara outro argumento jurídico e conseguira nova ordem de prisão. Desta feita argumentara que não bastava cumprir os três meses da condenação. O prazo de 30 anos tinha de ser contado de outra maneira: não do dia 09 de dezembro de 1971 — que permitiu a soltura em 08 de dezembro de 2001 –, mas do dia em que a agressão foi praticada. Havia, portanto, segundo esse raciocínio, mais alguns meses a ser cumprido.

Ao saber da ordem de prisão, Dija desapareceu.

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Tentei de todas as formas reverter a situação. Falei com juízes do Tribunal de Alçada Criminal, alguns colegas do meu concurso, acionei Selma e Fabiane, que entraram com várias petições mostrando o trabalho de reinserção social que estávamos desenvolvendo, com sucesso. Do envolvimento do Banco do Povo. Nada. Nenhum argumento resolveu a situação. A decisão, diziam, era imutável, ou irrecorrível, na linguagem jurídica.

Algum tempo após veio a notícia que no íntimo já esperava: Dija fora morto em confronto com a polícia, quando tentava assaltar…

Contei esta história, rigorosamente verdadeira, em uma reunião no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, onde os conselheiros comentavam o rigor da Justiça Paulista, seu conservadorismo. Ao terminar o relato, um dos conselheiros, boquiaberto, fez um curto comentário:

— “Puta que o pariu”.

E eu repito: “p.q.p”. Não há definição mais adequada para a situação.

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* O autor esclarece, ante a dúvida de muitos leitores, que os textos que estão sendo publicados foram escritos no segundo semestre de 2006 e que não foram atualizados.