Delação premiada pede novas regras para coibir arbítrios, afirma José Eduardo Cardozo

Pular para conteúdo
Whatsapp
comentários

Capítulo 1

Abertura

Menos de dois anos depois de assinar a Lei das Organizações Criminosas, que tinha o objetivo de impulsionar o uso da colaboração premiada como meio de obtenção de provas criminais, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, avalia que é preciso atualizar as regras da delação – instrumento largamente utilizado na operação Lava Jato -, para evitar “arbítrios” e reduzir a discricionariedade.

O ministro conversou com o JOTA durante 40 minutos na tarde de segunda-feira (20/07), horas depois de vir à tona a primeira sentença do juiz federal Sérgio Moro beneficiando integrantes do cartel que fraudou licitações da Petrobras com prisão domiciliar e, durante protestos de sindicatos na Esplanada dos Ministérios contra o governo Dilma Rousseff,

De forma enfática, Cardozo defendeu a prerrogativa de advogados de defesa e enumerou críticas aos excessos de autoridades que visam aplausos e holofotes. Falando em tese, uma vez que pode vir a julgar o comportamento de delegados federais, repetiu que não tem poder sobre investigações em curso e salientou que, se houve, os excessos no uso de grampos ou de condução coercitiva foram causados por todo o sistema de Justiça – incluindo magistrados e membros do Ministério Público, não apenas da Polícia Federal.

Aliado fiel e próximo da presidente Dilma desde sua campanha de sucessão de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2010, Cardozo criticou a redução da maioridade penal, mas defendeu o aumento das medidas socioeducativas. Evitou comentar a proposta de uma nova Lei Orgânica da Magistratura, deixando claro que um compromisso com o Orçamento impede um reajuste de vulto para o Judiciário, mas não afasta um eventual plano para as carreiras jurídicas.

Mais longevo no cargo desde a redemocratização, o petista avaliou que a indenização a detentos por condições degradantes de encarceramento, que será julgada pelo Supremo Tribunal Federal, deve ser vista caso a caso e traçou um cenário desafiador para o sistema prisional.

Indagado sobre rumores de seu cansaço e vontade de sair do governo, Cardozo afirmou que fica enquanto puder contribuir com o projeto de Dilma Rousseff. Não sem antes revelar que perdeu 22 quilos nos últimos meses com uma dieta mais rigorosa.

Leia a entrevista abaixo:

Capítulo 2

Prerrogativas

"A tentação do aplauso fácil faz com que autoridades abusem do poder"

O sr. emagreceu muito…

Vinte e dois quilos. Regime…fechei a boca. Só fechando a boca mesmo.

Inicialmente, obrigado por receber a gente nesse turbilhão. Tem toda a questão do cenário político, mas gostaríamos de comecar com temas que dividem a classe jurídica com opiniões muito exacerbadas. Durante a Lava Jato e a Zelotes temos um debate intenso sobre as prerrogativas. Advogados impedidos de acompanhar clientes, buscas e apreensões de documentos em escritórios. Um combate maior à corrupção ao ilícito deve passar por flexibilidade das prerrogativas dos advogados?

Não vou discutir nenhum caso concreto, porque a partir do momento em que fizer pode haver apuração administrativo e posso ser obrigado, a posteriori, a analisar isso no âmbito da Polícia Federal. Não vou comentar caso em concreto, vou falar em tese. Eu acredito que no Estado de Direito, as prerrogativas dos advogados são inafastáveis. Quando você fala de investigação de combate à corrupção, ou qualquer tipo de investigação contra formas de atuação do crime organizado, acredito que estamos falando de algo que é necessário, de algo que a sociedade exige e que é uma decorrencia natural da legislação que assim seja feito.

Porém, jamais, em Estado de Direito, posso ter a ideia de que os fins justificam os meios. O Estado de Direito é meio e é fim. Ou seja, tenho que atuar de acordo com a lei para que a lei seja respeitada ao final da investigação.

Isso é muito importante porque o fim de prerrogativas que são legalmente estabelecidas, não por uma questão que não seja o respeito à Justiça, é algo que é inaceitável e só se admite em tempos de regimes autoritários e de ditaduras. Portanto, acho que jamais se pode abrir mão de prerrogativas em Estado de Direito.

Claro, se um advogado age de forma ilícita, se comete crimes, tem que ser investigado, tem que ser punido, do ponto de vista ético e do ponto de vista penal. Agora, enquanto ele atua como profissional, as prerrogativas existem justamente para que o Estado de Direito prevaleça. Por maior que seja a tentação que autoridades por vezes possam ter de atuar contrariamente àquilo que a lei estabelece, quanto a prerrogativas de advogados é inaceitavel qualquer comportamento neste sentido.

Ou seja, não há investigação importante a ponto de violar direito de defesa, privilégio advogado-cliente…

A boa polícia ou o bom investigador no Estado de Direito é aquele que descobre os delitos, mas respeita a lei. Isso é peça-chave. O bom investigador, o bom delegado, o bom membro do Ministério Público, o bom magistrado é aquele que aplica a prestação jurisdicional, aquele que investiga dentro da lei. Quem age de forma arbitrária não pode ser visto como bom juiz, bom membro do ministério público ou bom delegado.

Mas isso não ajuda aqueles que usam suas prerrogativas de advogado para fazer parte de um esquema? Sem citar caso concreto, sabemos que algumas investigações hoje levam em conta a quebra de sigilo dos advogados com o argumento de que fariam parte do esquema. E muitos dizem que ao proteger as prerrogativas dos advogados indiretamente se impede a investigação dos casos. Como medir?

Se há indícios que um advogado participa de uma organização criminosa ou se é membro atuante, autor de ilícitos, é investigado como qualquer outro. Agora, se ele atua no exercício legal da advocacia, as prerrogativas legais que são a ele estabelecidas devem ser respeitadas, não se admite que um advogado utilize prerrogativas para atuar como membro de organização criminosa. Ele passa a ser tão criminoso quanto qualquer cidadão que o faça. Agora, as prerrogativas são próprias e  atribuídas a um profissional, que devem ser respeitadas. Esse discernimento tem que ser muito claro, não posso ir nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Não posso dizer que advogados sejam intocáveis quando atuam de forma ilícita, como membros de uma organização criminosa, nem posso dizer que a pretexto de se descobrir a verdade, as prerrogativas de um advogado devem ser ignoradas. Temos que entender a razão de ser de as prerrogativas são concedidas: não para que se protejam criminosos, mas porque é necessário para o exercício do direito de defesa que essas prerrogativas existam. E não existe Estado de Direito sem que se assegure o contraditório e a ampla defesa.

O sistema de Justiça está pronto para assegurar os direitos aos advogados?

O sistema de Justiça está sim. Mas vamos encontrar na magistratura, no Ministério Público, na Polícia Federal, no Congresso Nacional, no governo, pessoas que agem corretamente e pessoas que agem incorretamente. O sistema está preparado. Resta saber se as pessoas atuam de acordo com aquilo que o sistema preconiza. Às vezes, a tentação do aplauso fácil faz com que autoridades abusem do poder. Outras vezes podemos encontrar autoridades que, receosas ou tíbias, não tomam as medidas que precisam ser tomadas. Quem não age de acordo com aquilo que a lei determina, quem não respeita o Estado de Direito ou quem se omite, age mal. É por isso que é necessário sempre ter uma posição de equilíbrio nesta hora. O aplauso fácil é algo que não deve ser buscado por nenhuma autoridade que investiga. Por outro lado, o caráter frágil, o comodismo, a inércia também devem ser tidas como algo reprovável naqueles que têm a missão importante de investigar a cumprir.

Capítulo 3

Controle da Polícia Federal

"É mais desinformação do que divergência"

No Estado Democrático de Direito qual deve ser o controle ou interferência do Ministro da Justiça sobre a Polícia Federal?

Tenho falado muito sobre isso e acho que nem sempre isso ecoa como deveria ecoar. O ministro da Justiça é o superior hierárquico direto da Polícia Federal. Isso, porém, claro, determina que o ministro tenha poder hierárquico sobre a PF. Salvo naquilo que a lei expressamente exclui. No caso dos inquéritos policiais, estamos diante de um procedimento administrativo regulado pela legislação penal, onde não existe propriamente uma incidência hierárquica do ministro sobre os delegados que conduzem o inquérito policial. Ao delegado cabe a presidência do inquérito. A ele se confere uma autonomia para investigar, o ministro não pode jamais, sem incorrer ele também em abuso de poder, determinar quem se investiga, o que se investiga, e quem ou o que não deve ser investigado.

É um equívoco imaginar-se que a hierarquia se colocaria em face das regras que estao presentes no nosso Codigo de Processo Penal e outras leis que regem a matéria. Portanto, tenho como exercer o poder hierarquico e devo exercê-lo em todos os demais aspectos da vida da Polícia Federal. Sou eu que autorizo viagens, ou que nego viagens, sou eu que estabeleço diretrizes dos planos maiores de intervenção da área de segurança pública, sou que defino a diretriz de atuação em fronteiras, entre muitas outras coisas.

Agora, no que concerne a investigação em si, o ministro não tem esse poder hierárquico porque a lei não me dá. E é correto que não se dê. Os países em geral, no âmbito do Estado de Direito, dão garantias para uma investigação autonoma, em muitos países são os juízes que realizam investigações, então todas as garantias próprias da magistratura. Em outros países você vê as investigações sendo conduzidas pelo Ministério Público. Também com garantias. O sistema brasileiro prevê que a presidência de inquérito seja feita por delegados, eé absolutamente corretos que devam ter autonomia investigatória.

O que não podem fazer, jamais, mesmo no exercício da investigação, é incorrer eles também em abusos ou em desvio de poder. Aí sim, se incorrerem, por ser uma questão disciplinar, o Ministro da Justiça deve atuar determinando apurações, investigações e, em última instância, as sanções disciplinares que forem cabíveis em cada caso.

O sr. atribui algumas tentativas de vincular o sr. a alguma ingerência na Polícia Federal a desinformação ou esse tipo de acusação faz parte desse momento de polaridade?

Eu atribuo a absoluta desinformação. Um país que viveu tanto tempo nas ditaduras, ainda tem uma cultura autoritária por trás da visão de mundo de algumas pessoas, que não entendem como é que se pode imaginar que um chefe não interfira no cotidiano de uma investigação. Quando, na verdade, o Estado de Direito, por seus princípios, por conta do princípio da impessoalidade, da isonomia, das regras do Código de Processo Penal, determina exatamente isso. O mérito de uma investigação não pode ser objeto de uma orientação do superior hierárquico. Justamente para que uma investigação não tenha componentes políticos, não saia daquilo que efetivamente se espera dela. O que um superior hierárquico deve fazer, no caso o ministro da Justiça, é atuar no caso de abuso, em casos de desvios, como nós temos feito ao longo deste período. Diria que isso é mais desinformação do que divergência.

Há críticas em relação ao excesso de grampos telefônicos e conduções coercitivas pela PF. Além disso, fala-se muito hoje sobre um eventual abuso de colaboração premiada nas investigações…  

Muitas vezes algumas situações são atribuídas à Polícia Federal como se a PF fosse o ator único de um processo dessa natureza. Quando você diz que grampos excessivos são decisões da PF, quando você diz que conduções coercitivas são determinadas pela PF,  em síntese, quando você atribui muitas vezes medidas investigativas à PF há um desconhecimento de que a PF é um dos atores que intervem nesse processo.

Uma interceptação telefonica pode ser solicitada pela PF, mas passa pelo crivo do Ministério Público e pela decisão de um juiz. Interceptação telefônica que fosse feita só pela PF seria ilegal. É um juiz de direito que decide. O mesmo, a condução coercitiva. É uma medida que o delegado até pode pedir, mas quem decide é o juiz, sob apreciação prévia do Ministério Público.  Ah, a Polícia Federal está grampeando demais, está fazendo conduções coercitivas demais… Então vamos falar de quem intervém: PF, Ministério Público e Judiciário. Ou seja, o sistema de investigação estaria fazendo em tese demais. Claro, se é um caso de grampo ou condução coercitiva e não há base para isso o próprio Judiciário pode rever, se não houver base para isso. Claro que a Polícia Federal pode ser o solicitador e o executor, mas quem decide não é a PF. Há que se entender com clareza isso para que não se façam críticas indevidas.

No que diz respeito às conduções coercitivas, é importante observar que de fato elas vêm crescendo nos últimos tempos. No entanto,  se você olhar um quadro comparativo, crescem as conduções coercitivas e diminuem as prisões preventivas. Porque a partir da lei das cautelares, os juízes começaram a entender que seria melhor não dar prisões e dar conduções coercitivas. Embora no passado a condução coercitiva fosse usada para os casos em que a pessoa deixa de comparecer à delegacia de polícia quando intimada, a partir de um determinado momento se passa a utilizar a condução coercitiva como forma de medida cautelar mais branda para que se evite a prisão. Justamente para evitar que a pessoa, ao ser conduzida, não desfaça provas, não mantenha contatos com outras pessoas. A condução coercitiva, a meu ver, vem crescendo como substituto de prisões. Pelo menos é esse quadro que tenho na Polícia Federal.

Quando o sr. diz que não é uma decisão isolada da PF e sim precisa do MP e do juiz, lembro que há alguns anos o ministro Gilmar Mendes dizia que estes atores atuavam próximos demais na primeira instância… O sr. concorda?

Às vezes, é muito frequente juízes indeferirem solicitações da Polícia Federal. Às vezes, indeferem interceptações telefônicas, às vezes indeferem conduções coercitivas, às vezes indeferem pedidos de prisões. Nem sempre há um alinhamento automático como se imagina, embora na maior parte das vezes possa existir. O importante não é dizer que há um alinhamento automático ou não. O importante é verificar se há fundamento na decisão. Se ela não tem fundamento é passível de reprovação no Judiciário, através dos recursos que sejam tomadas.

Esse alinhamento, sem fundamento…

O próprio Judiciário controla…

E ele fere a ampla defesa…

Uma medida restritiva de qualquer natureza que não tenha fundamento também é um abuso de poder. Só que será um abuso de poder judicial. O solicitar não significa decidir, quem decide é o juiz. E se o juiz diante da ausência de fatos e pressupostos decreta uma medida dessa natureza ele também abusou de seu poder judicial e aí caberá às instâncias superiores da Justiça rever isso.

Capítulo 4

Novas regras

"Delação premiada é um instituto importante"

O juiz Sergio Moro concedeu prisão domiciliar em troca da colaboração de executivos. Seria preciso regulamentar adicionalmente esse instrumento, para que houvesse regras claras sobre que benefícios seriam obtidos com determinadas informações?

No que diz respeito à delação premiada, o que posso dizer é o seguinte: Esse é um instituto que existe em várias partes do mundo, talvez inclusive sem um regramento muito rígido. No Brasil, é relativamente recente. Embora fosse adotado anteriormente foi com a lei que disciplina as investigações contra organizações criminosas (Lei 12.850), em 2013 se não me falha a memória, é que ela passou a ser regulamentada. Portanto é um instituto relativamente novo. Aí temos que aprender com isso que estamos vendo. Aquilo que vem acontecendo deve nos levar à reflexão para a melhoria da nossa legislação.

Acredito que talvez fosse necessário, sim, regulamentar melhor esse instituto. Justamente para que a zona cinzenta entre discricionariedade e arbítrio seja mais definida. Há uma clara diferença entre a discricionariedade e o arbítrio: a discricionariedade é o exercício de um poder de opção dentro da lei. Um poder de liberdade decisória legal. Quando esse limite legal é rompido, a discricionariedade se transforma em arbitrariedade, em ato ilícito. E essa fronteira, quando a lei deixa muita margem de liberdade para o magistrado, para o membro do Ministério Público, para o delegado, muitas vezes essa lei pode ser ferida. Talvez seja melhor definir mais claramente até o alcance de certas situações até para que a zona discricionária fique mais evidenciada, sem zonas cinzentas tão aprofundadas em relação ao arbítrio que pode ocorrer nestes casos.

Antes de regulamentar, a Justiça continuará usando…

Claro, é a legislação em vigor e deve continuar a ser usada pelas autoridades competentes.

É o caso de o CNJ ou STF se debruçarem sobre esta questão institucionalmente, uma vez que é um instrumento importante que tem sido usado de forma tão relevante?

Sem dúvida. Acho que tanto o legislador, entendendo-se aí o Congresso Nacional provocado ou não pelo Poder Executivo, como as autoridades judiciárias, seja através de resoluções do Conselho Nacional de Justiça, seja através – desde que fiquem claro os pressupostos – de súmulas, ou súmulas vinculantes, pode se manifestar, sem dúvida para dar um maior parâmetro normativo à atuação deste instituto.

Acho que a delação premiada é um instituto importante, como também acho que o acordo de leniência é um instituto importante. A experiência empírica irá demonstrar a melhor maneira que isso possa ser regulado para evitar o arbítrio de quem quer que seja .

Mudando de assunto, o senhor falou de sistema e a gente tem em breve uma parte importante dos freios e contrapesos constitucionais, que é a indicação, pela presidente, do novo procurador-geral da República. Existe a chance do atual procurador ser reconduzido. Até onde a gente vê, existe até um clima muito propício a isso na carreira, mas aqui do outro lado da rua vamos dizer que Janot não criou muitos amigos ao solicitar a busca e apreensão na casa de congressistas na semana passada. Existe clima político para a recondução do atual PGR?

 Olha, nao vou falar em tese. nós sabemos que existe uma lista que será encaminhada à presidente da República, após um prévio procedimento eleitoral do Ministério Público. Então, vamos aguardar como se desdobra e a presidente da da República dará sua decisão a respeito.

Mas é uma lista que não necessariamente precisa ser seguida, não é? 

É uma praxe.

Virou tradição desde o governo Lula…

Um exemplo: o presidente Fernando Henrique Cardoso, apesar de ter recebido listas, nomeou fora da lista. O presidente Lula e a presidenta Dilma vêm seguindo a lista como uma forma de expressão e reconhecimento à autonomia do Ministério Público. Agora, não vamos nos antecipar. Vamos esperar o processo e manifestação do Ministério Público e, a seguir, a presidente da República decidirá.

E como é que o senhor vê as críticas em relação ao trabalho do procurador-geral da República, quando dizem que existiria uma certa ingerência do Executivo, do Palácio do Planalto, abstratamente, para atingir alvos específicos dentro do Legislativo?

Acho essa crítica absolutamente fora de propósito. Veja, nós temos tido uma postura muito clara do governo de garantir a autonomia da investigação pela Polícia Federal, e em garantir nomeações que respeitem a autonomia do Ministério Público. Em nenhum momento, a presidenta Dilma ou o próprio presidente Lula nomearam pessoas que poderiam ser tidas como engavetadores de processos. Ou de investigações. A partir desse momento, temos visto que as investigações realizadas pelo Ministério Público ou pela Polícia Federal são realizadas independentemente de quem efetivamente seja, do ponto de vista de ser aliado ou oposicionista ao governo. E me parece esquisito imaginar que o governo influencie nessa investigação, quando algumas pessoas que inclusive foram integrante do governo e que pertencem à base do governo são investigadas. Ou seja, que interferência é essa que abre investigações em relação aos amigos…

Masoquismo, né ministro?

E nem sempre abrem em relação aos adversários. Ou seja, é uma coisa completamente estranha essa avaliação. Não consigo entender, inclusive a lógica de pessoas que tem sustentado essa tese.

A gente vê as vezes um argumento um pouco contraditório, porque…

Bastante contraditório.

….tem vezes que se lê no jornal críticas de que o sr. não tem ingerência na Política Federal, que está atingindo pessoas do governo e, outras vezes, que o senhor tem ingerência..

Digo que normalmente o ministro da Justiça é uma pessoa que está submetida a críticas esquizofrênicas. Porque, ora se critica que o ministro não controla e que a Polícia está descontrolada. E ora se critica para dizer que ele controla para punir os adversários. Ou seja, quais das duas que prevalece? Diria, não é nenhuma das duas. Nem uma coisa, nem outra.

Capítulo 5

Funcionalismo, penitenciárias, nova Loman

"O sistema prisional brasileiro chega a ser catastrófico"

Ministro, algumas questões bem pontuais. Uma diz respeito totalmente Judiciário. O Congresso aprovou o aumento vemos uma greve afetando tribunais superiores, como Supremo e STJ, por conta de funcionários cruzando os braços. Como fica essa questão em meio à restrição fiscal gigantesca? O ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, já falou que não tem como dar um reajuste tão alto para o Judiciário. É pão pão, queijo, queijo, ou tem alguma margem para negociar? 

Veja, o governo tem um dever e responsabilidade com a sociedade brasileira em relação ao nosso orçamento  a nossa economia. Evidentemente, a decisão final compete à presidente da República, que ainda não a tomou. Mas, claro, se os números demonstrarem a quase impossibilidade de que esse aumento, da forma como foi aprovado, seja dado sem comprometimento das finanças públicas, evidentemente que a presidente da República decidirá contrariamente a ele. O que não afasta a possibilidade de se encontrar uma política salarial, não só para o servidor do Judiciário, mas também para todos os servidores da administração pública federal. Ou seja, o governo tem que buscar o que ele pode fazer dentro do quadro financeiro e orçamentário existente. Tenho a certeza que a presidente adotará a melhor solução possível para os servidores, sem comprometer efetivamente o equilibrio das nossas conta.

O Supremo vai decidir se detentos merecem indenização por estarem submetidos a condições degradantes. Cabe ao Estado indenizar preso que é submetido a tratamento desumano? 

Veja, a Constituição é muito clara no artigo 37 parágrafo 6º, quando diz que sempre que o Estado causar dano a alguém, deve indenizar. E aí a Constituição adota a teoria objetiva em relação à observação de um nexo de causalidade entre fato e dano. É verdade que, quando se fala da falta de serviço ou da omissão de serviço, boa parte da jurisprudência exige a demonstração da culpa por parte do Estado. Ou seja, materializada nos conceitos de negligência,  imprudência ou imperícia. Tudo isso tem que ser analisado no caso concreto. Se efetivamente nós temos o artigo 37 parágrafo 6º da Constituição Federal, existe a demonstração da responsabilidade do Estado, deve haver o dever de indenizar. Se não existe, isso não se imporá. Isso implica uma análise caso a caso.

O que eu posso dizer, todavia, é que, tirando algumas exceções, o sistema prisional brasileiro chega a ser catastrófico. É caracterizado por verdadeiras escolas de criminalidade, de centros violadores de direitos humanos, que não só não recuperam o detento para uma reinserção social, como também agravam a possibilidade de ele entrar como um pequeno delinquente e sair como um membro de uma organização criminosa. Isso tudo tem que ser considerado.

Por mais que se construam unidades prisionais, temos que ter clareza que em dados momentos isso pode ser absolutamente impossível de ser resolvido com essas medidas. Só pensar que o nosso déficit prisional é de mais de 200 mil vagas, que hoje estão cumprindo penas em situação de superlotação de presídios; temos mais de 400 mil mandados de prisão em aberto. Falamos de mais de 600 mil vagas em aberto, é como se tivéssemos que fazer um outro sistema prisional igual ao atual para resolver o problema que hoje existe.

Então, quais são os caminhos? Primeiro, não agravar o problema. É como se diz, muito ajuda quem não prejudica. E o que significa não agravar o problema? Siginifica não aprovar a redução da maioridade penal. Que caso seja adotada implica um acréscimo no sistema de aproximadamente 50 mil vagas/ ano. Ou seja, o governo federal lançou em 2011 um programa de apoio aos Estados para a construção de sistemas prisionais. É o maior programa da nossa história. É a construção de 40 mil vagas ao custo de R$ 1,1 bilhão para a construção.

Não cobriria nem um ano desse acréscimo…

… e com um dado: a construção demora quatro anos. Vou lançar as primeiras unidades inauguradas nesse programa agora no final e 2015, já que ele foi lançado no final de 2011. Ou seja, um ano come tudo aquilo que nós investimos num programa recorde por quatro anos. Então, a primeira questão é não agravar mais o problema. Se for aprovada a redução da maioridade penal, nós teremos em curto espaço de tempo uma situação desastrosa no sistema prisional.

Ponto dois: há que se refletir muito sobre a maneira como as sanções penais são aplicadas no Brasil. O presidente Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, menciona muito uma expressão que é a “cultura do encarceramento” que, na verdade, parece sugerir que a única forma penal eficaz de combater o crime e a impunidade é a sanção restritiva de liberdade. O que é incorreto, absolutamente incorreto. Nós temos outras formas mais eficazes do que o próprio aprisionamento para cumprimento das sanções penais sem que se gere os efeitos colaterais do que isso realmente ocorre com a privação da liberdade. Quem tem que ter a situação privativa de liberdade? aquela pessoa que efetivamente precisa disto do ponto de vista da proteção social, do ponto de vista da eficácia plena do sistema.

Pessoas que praticam delitos menores, pessoas que não oferecem risco à sociedade devem ter outras sanções que evitam o encarceramento, mas que sirvam também como forma de punição e de recuperação das pessoas. Isso é uma tônica mundial. O mundo hoje tem visto que os países que tem grande população carcerária tem buscado ao máximo diminuir as taxas de encarceramento, buscando outras formas mais eficazes de sanção sem os efeitos que o encarceramento traz para a sociedade. Cito como exemplo o seguinte: o Brasil é o quarto país do mundo em população carcerária. Primeiro é os Estados Unidos, o segundo a China, o terceiro a Rússia e o quarto o Brasil. Todos esses países tiveram uma redução de sua população carcerária nos últimos anos. Estados Unidos quase 10%, a Rússia chegando, se não me falha a memória, a 25%. O Brasil, enquanto o mundo reduz a população carcerária, faz crescer. Tivemos 33% de elevação neste último período, em relação à população carcerária anterior.

A ilusão de que se reduz a violência quando se encarcera, quando é exatamente o oposto. Muitas vezes, quando você encarcera sem critérios, sem soluções adequadas do ponto de vista penal, você aumenta a inserção de organizações criminosas que atuam dentro das unidades prisionais e gera, portanto, mais violência. Portanto, não é só necessário construir mais unidades prisionais, mas seguir outros caminhos penais para que possamos ter sanções penais eficientes para aqueles casos em que o encarceramento não seja preciso.

Ministro, nesse tema especifico, o senhor citou a maioridade penal que está sendo discutida agora na Câmara e precisa ser votada em segundo turno. O Ministério da Justiça sempre teve uma atuação muito presente através da Secretaria Assuntos Legislativos e que conseguiu ao longo da vida uma trajetória muito exitosa aprovando uma série de reformas. Esse é um momento diferente. Como lidar com esse descontrole nas votações da Câmara? 

A alternativa que nós temos enquanto governo é buscar subsidiar melhor possível os deputados para que tenham uma tomada de decisão madura e equilibrada, buscando a melhor alternativa legislativa existente. No caso da maioridade penal, já passamos para o Congresso Nacional tudo aquilo que nos cabia passar e ainda buscaremos passar mais informações. Nós passamos estudos ou informamos a existência de estudos que mostram que os países que tratam os jovens como adultos têm uma criminalidade maior.

A redução da maioridade penal implica a elevação da violência e não a redução. Todos os estudos internacionais mostram isso e não há nenhum estudo que mostra o oposto. Em segundo lugar, fica absolutamente claro ainda que no sistema prisional brasileiro, reduzir a maioridade penal significa fortalecer as organizações criminosas que em larga medida comandam a violência que está fora dos presídios e dentro deles. Estaremos trazendo jovens para sairem membros de crime organizado quando muitas vezes podem entrar tendo praticado um crime isolado ou um delito que pode até ser de potencial não tão ofensivo, em tese.

Finalmente, é aquilo que falava há pouco: o sistema brasileiro não comportará, sem gravíssimas consequências, essa situação. Fora isso, os efeitos-reflexo que temos num plano penal e em outras leis, a serem gerados pela redução da maioridade penal. Então, tudo isso nós temos colocado ao Congresso e esse é o nosso papel. Agora, o Congresso Nacional é soberano para decidir.

Aumentar as penas do ECA é uma solução ou também parte do problema?

Parece que é uma solução. Defendemos a proposta que foi aprovada no Senado, inclusive, na origem de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), que propõe uma elevação do período de aplicação da pena sócio educativa para menores que pratiquem delitos hediondos e se são praticados com violência ou grave ameaça.

Achamos que é correto, mas também achamos que é correto que ao se adotar essa medida, se invista mais nesses estabelecimentos sócio-educativos, para que possamos ter uma maior recuperação desses jovens, ao invés de pura e simplesmente tratar essas unidades prisionais como se fossem pequenos presídios, pequenas reproduções dos presídios existentes. Achamos que esse é um bom caminho, o governo aprovou essa proposta. Inclusive o relatório que foi aprovado foi do senador José Pimentel, líder do governo no Senado.

Mencionamos a Secretaria de Assuntos Legislativos e no final do ano passado, o JOTA publicou um texto em que o presidente Lewandowski propõe uma reforma da Lei Orgânica da Magistratura. Além de mudanças importantíssimas para a atuação dos juízes, o texto introduz uma série de regalias e benefícios para os magistrados. Como senhor vê essa mudança na Loman, é hora de mudá-la? Novas benesses devem ser aprovadas? 

A atual Lei Orgânica da Magistratura já está descompassada com o texto constitucional já há alguns anos. Portanto, acho indispensável que tenhamos uma nova Lei Orgânica da Magistratura. Em relação ao texto, ele ainda não foi encaminhada pelo Supremo Tribunal Federal e e acho que seria, da minha parte, me imiscuir em assuntos internos e atinentes ao campo interna corporis do Judiciário. Vamos aguardar o encaminhamento do projeto de lei ao Congresso Nacional e ai evidentemente o governo estudará e se manifestará a respeito. Até porque, cabe à Presidência da República fazer os vetos e as sanções de uma lei.

Temos lido nos jornais que o senhor está cansado e com vontade de deixar o governo depois de se tornar o ministro que ficou mais tempo no cargo no período democrático. Faz sentido isso?

Digo para você o seguinte: o cargo do Ministério da Justiça é um cargo difícil de ser exercido. Costumo até brincar e dizer o seguinte: mais difícil que o cargo de ministro da Justiça na República, parece que é a presidência da Funai. Como a Funai está no Ministério da Justiça, então tem efeitos colaterais para nós aqui. (risos). É um cargo muito difícil que desgasta naturalmente por todas suas atribuições e é isso que explica historicamente você ter muitas trocas de ministros da Justiça ao longo do tempo.

Estou aqui há quatro anos e seis meses. Bati o recorde no período de democracia. Então, é natural que tenha desgaste no exercício da minha função. Agora, o que digo é que permaneço no governo enquanto, claro, a presidente Dilma quiser que eu permaneça e enquanto eu achar que contribuo  para o projeto que é representado pela presidente Dilma Rousseff, no qual eu acredito. Um dia que uma das duas coisas ocorrer, ou seja, que ela não quiser que eu permaneça ou eu achar que não contribuo mais com o projeto, eu saio e, de onde estiver, como cidadão, estarei defendendo esse governo e este projeto que acredito, foram eleitos pelo povo, justamente porque representam o que há de melhor no que pode ser feito para nosso país.

A crise é passageira, então?

Não há crise que não seja passageira.