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Cármen Lúcia: as turbulências e um ensaio de gestão

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Solução?

As circunstâncias

Presidente caminhou sobre linha que cortejava a opinião pública sem combater polarização da Corte

Cármen Lúcia deu azar. Nos dois anos em que comandou o Supremo Tribunal Federal (STF), as crises políticas e as tragédias se sucederam em ritmo incomparável. As investigações da Lava Jato atingiram centenas de parlamentares, colocando o Congresso na defensiva. Os escândalos de corrupção combaliram também o já fragilizado e recém-empossado governo Michel Temer (MDB). O STF seria chamado a ser o moderador numa Praça dos Três Poderes desequilibrada.

Mas com todas as idiossincrasias do tribunal, os indícios de contaminação política, suas disputas internas e sua falta de coesão institucional, o Supremo chega ao final desses dois anos fragmentado, com a legitimidade questionada e politicamente exposto. E a ministra Cármen Lúcia, que deveria representar o tribunal, não foi reconhecida pelos pares como uma liderança e não conseguiu, no cargo, evitar que o STF se tornasse, em vez de moderador, fator adicional na crise política. Em alguns episódios, ela própria foi fator de desagregação interna e conturbação externa.

Cármen Lúcia assumiu o STF exatamente 12 dias depois que o Congresso apeou Dilma Rousseff da Presidência da República e na mesma tarde em que a Câmara cassava o mandato do deputado federal Eduardo Cunha (MDB-RJ). Na cerimônia de posse no STF, Michel Temer posava de novo presidente, com a popularidade sempre em baixa e com a legitimidade questionada, e Luiz Inácio Lula da Silva mantinha-se discreto entre os convidados. Do lado direito de Cármen Lúcia, o presidente do Congresso, Renan Calheiros (MDB-AL), recordista em inquéritos na Lava Jato, ignorava seu algoz, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot.

No mês seguinte, uma sucessão de rebeliões em presídios no Norte e Nordeste, especialmente, deixaram dezenas de mortos e evidenciaram a falta de políticas articuladas para o sistema carcerário. O Judiciário, inclusive, com sua parcela de responsabilidade. Em Manaus, foram 56 mortes. Em Roraima, no maior presídio do estado, 33 presos foram assassinados. Na trágica soma, foram 133 mortes nos presídios do país nos primeiros 15 dias de 2017.

No dia 19 de janeiro de 2017, o ministro Teori Zavascki, relator dos processos da Operação Lava Jato no Supremo, morreu na queda do avião que o transportava para Angra dos Reis. O ministro preparava-se para homologar as dezenas de delações premiadas firmadas por executivos da Odebrecht – até aquele momento, a chamada delação do fim do mundo. Sua morte jogou dúvidas sobre o futuro da Lava Jato no Supremo, expôs o decréscimo de credibilidade da Corte e abriu uma vaga no tribunal para ser preenchida por Temer.

“Não cedo diante de pressões pelo fato de eu ser mulher. A sociedade é preconceituosa. O Judiciário, muito mais”, disse Cármen Lúcia sobre o fato de ser uma mulher no comando do Poder Judiciário

Em maio de 2017, o empresário Joesley Batista firmou um acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR) e, numa ação controlada, gravou o presidente da República, Michel Temer, em conversas comprometedoras. O governo passou a enfrentar sua maior crise, viu sua base de sustentação se fragmentar, amargou o adiamento de reformas constitucionais e teve sua sobrevivência colocada à prova.

Em junho, Temer foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República pelo crime de corrupção, colocando novamente o tema do impeachment na pauta do país. Em agosto, a Câmara negou seguimento ao processo contra Temer, mas em setembro, quando o mandato de Cármen Lúcia chegava à metade, Janot oferecia a segunda denúncia contra Temer – desta vez por obstrução de Justiça e organização criminosa. E, em meio a tudo isso, investigações jogaram dúvidas sobre a lisura do acordo firmado pela PGR com a empresa JBS. Marcelo Miller, da equipe de Janot na PGR, teria atuado como investigador e advogado da JBS ao mesmo tempo. As suspeitas de jogo duplo e de manipulação de informações levaram o Ministério Público a pedir a prisão de Joesley e a revisão dos amplos benefícios concedidos aos donos da empresa.

Esses fatores externos invadiram o tribunal e aprofundaram as fissuras internas. Do lado de fora, mais do que composta por ministros mais “punitivos” e ministros mais “garantistas”, a Corte passou a ser vista como dividida entre os pró e os contra a Lava Jato, entre aqueles que engrossavam o caldo da reação da política contra as investigações e aqueles que enxergavam na operação um caminho para mudar a forma de fazer política no país.

Em julho deste ano, assistiu a distância, falando apenas nos bastidores, à guerrilha judicial que envolveu o prende-solta do ex-presidente Lula. Em meio ao plantão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), o desembargador Rogério Favreto decidiu soltar o ex-presidente Lula. Em resposta, o juiz federal Sérgio Moro afirmou que Favreto era incompetente para a decisão. Em seguida, o relator do processo de Lula no TRF4, desconstituiu a decisão de Favreto. Uma confusão institucional que expôs as fraturas do Judiciário e que desaguou no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), onde o caso ainda espera uma decisão.

“A Justiça é impessoal, sendo garantida a todos os brasileiros a segurança jurídica, direito de todos. O Poder Judiciário tem ritos e recursos próprios, que devem ser respeitados”, disse Cármen Lúcia sobre o prende e solta de Lula.

Esta conjuntura teria sido difícil para qualquer presidente. Mas como atuou Cármen Lúcia neste cenário? Seria apenas uma vítima de todas as circunstâncias externas e internas? Ou teria ela também sua parcela de responsabilidade – e, em caso afirmativo, pelo quê? Como poderia ter agido diferente nessas difíceis circunstâncias?

Por mais que seja factualmente visível que Cármen Lúcia tenha enfrentado momentos de extrema turbulência, a própria ministra deu no seu discurso de posse o tom de como pode hoje ser julgada. “Talvez, estejamos vivendo tempos mais difíceis do que as experiências históricas anteriores. Talvez porque cada geração tem a ilusão e a soberba de achar que o seu é mais difícil porque é o seu”, disse ela em 2016. Para acrescentar: “Os conflitos multiplicam-se e não há soluções fáceis ou conhecidas para serem aproveitadas. Vivemos momentos tormentosos. Há que se fazer a travessia para tempos pacificados. Travessia em águas em revolto e cidadãos em revolta”.

Ela, portanto, foi apresentada (inclusive pela imprensa) como solução, a austera madre superiora (imagem que a ela atribuíram) que combateria privilégios, como pacificadora que saberia negociar com os pares e com os demais Poderes a solução para tempos revoltosos, como a juíza sem vaidades ou pretensões, algo raro num tribunal de individualidades.  Mas, no resumo de dois anos, Cármen Lúcia sai com outra imagem, na visão de seus colegas: uma ministra que ficou no discurso e não avançou para a prática, que abusou do marketing pessoal, expôs publicamente colegas para defender seu ponto de vista e, no auge da crise, deixou-se colocar como alternativa política na crise.

Paga o preço por tentar caminhar sobre uma linha que cortejava a opinião pública, sem confrontar o governo e sem combater ativamente a polarização do tribunal.

Expectativas

Sofrer o cargo

Por diferentes razões, expectativas quanto à gestão de Cármen Lúcia não passaram de expectativas

Foi o político José Aparecido, comumente citado por Cármen Lúcia, quem lhe disse que, no Supremo, ela sofreria o cargo, não exerceria a função. Sua gestão no STF e no CNJ foi cercada de expectativas: combateria os privilégios da magistratura, pacificaria o tribunal com seu jeito mineiro e saberia articular soluções para os entraves na Corte, não transigiria com a política em detrimento do Direito, não compactuaria com o adiamento indefinido de soluções para processos tormentosos em tramitação no STF, racionalizaria o CNJ.

Outras expectativas foram levantadas pela própria ministra, como o compromisso de terminar sua gestão sem crianças dentro dos presídios (“Se não tiver nenhuma lei, vamos aplicar a Lei do Ventre Livre, mas um brasileirinho não vai nascer e viver numa prisão. Ele não deve nada”, dizia a ministra). Ou sua liderança no enfrentamento da crise no sistema carcerário, com visitas surpresa a presídios pelo país e reuniões com governadores, presidentes de tribunais e, por fim, com o próprio presidente da República.

Por diferentes razões, em todos esses fronts de reformas prometidas, as expectativas não passaram de expectativas.

Por dois anos, Cármen Lúcia fez o discurso da austeridade. Questionou as associações de juízes sobre o recebimento de salários acima do teto (“O teto está na Constituição, basta cumprir. No Supremo, ninguém ganha acima do teto. Se há distorções no Judiciário, temos que corrigi-las. É a lei”) e protestou contra o pagamento do auxílio-moradia, dizendo ser incompatível com a Constituição.

Mas o discurso não produziu efeitos. Os juízes continuam a receber auxílio-moradia, as ações judiciais que tratam deste tema não foram julgadas nesses dois anos e outra ação que poderia colocar fim a outros tantos penduricalhos pagos aos magistrados está liberada para julgamento desde o ano passado, mas não entrou na agenda de Cármen Lúcia. No mais, no CNJ, a ministra reciclou uma resolução que obrigava os tribunais a publicarem os rendimentos dos magistrados (o que já era feito desde 2012). E, ao final da gestão, ficou confortavelmente vencida ao deixar para os colegas o ônus de enviar ao Congresso uma proposta de aumento de vencimentos para a magistratura.

“Se não tiver nenhuma lei, vamos aplicar a Lei do Ventre Livre, mas um brasileirinho não vai nascer e viver numa prisão. Ele não deve nada”, disse Cármen Lúcia sobre a manutenção de filhos presos junto às mães

Os resultados da gestão de Cármen Lúcia também foram dúbios no enfrentamento das calamidades do sistema carcerário. No dia imediato da primeira da série de rebeliões que marcaram o final de 2016 e início de 2017, a ministra silenciou. Depois, saiu a campo: fez visitas surpresa a presídio, reuniu-se em casa com o presidente da República, convocou presidentes dos tribunais de justiça e conversou com governadores e secretários de segurança.

Sua equipe sugeriu diversas medidas para minorar o problema: acompanhamento permanente e investigação das mortes em presídios, fiscalização pelos tribunais dos gastos orçamentários nos cadeias do país, acompanhamento do uso de recursos do Fundo Penitenciário, um censo da população carcerária, promover inspeções regulares para apurar o cumprimento da Lei de Execuções Penais e o julgamento pelo STF de uma ação – pronta para plenário – que poderia obrigar os governos estaduais a apresentarem propostas de melhorias no sistema ao CNJ.

De todas as sugestões, o censo foi o único a sair do papel. Os mutirões carcerários, que completariam dez anos em 2018, foram abandonados. As inspeções feitas por Cármen Lúcia não geraram alteração no quadro nem se tornaram prática corriqueira. As verbas do Funpen, descontingenciadas por determinação do STF, foram aplicadas, mas desvirtuando a finalidade original exigida pelo tribunal – sendo utilizadas, inclusive, para a compra de armas. E a presidente não levou a julgamento a ADPF 347, que obrigaria os governos estaduais a planejarem ações para melhoria do sistema. Se não fosse solução, ao menos seria uma política permanente – e não uma medida reativa quando detonada a próxima rebelião.

Nem mesmo a “lei do ventre livre”, mencionada por Cármen Lúcia foi aplicada por ela. Dizia a ministra a colegas que, quando terminasse sua gestão, não haveria nos presídios nenhuma criança encarcerada junto à mãe. Uma proposta inexequível, conforme seus próprios apoiadores (o Judiciário não teria competência para indultar mulheres com filhos nesta situação e seria impensável tirar os filhos de dentro dos presídios, rompendo o vínculo afetivo com a mãe).

A ministra chega ao final do mandato com 438 mulheres grávidas ou com seus “brasileirinhos” junto a elas na cadeia. E assistiu seu antecessor, o ministro Ricardo Lewandowski, proferir uma decisão que, esta sim, buscava solucionar o problema.  O ministro concedeu habeas corpus coletivo, determinando a substituição da prisão preventiva por domiciliar de mulheres presas, em todo o território nacional, que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência.

Cármen Lúcia ficou entre assumir parte da responsabilidade pela busca de soluções para o problema ou deixar para o Executivo o problema e os custos políticos. Na sua equipe, prevaleceu o cálculo pragmático.

No CNJ, a ministra assumiu com pelo menos uma promessa clara: sanear as 250 resoluções aprovadas pelo órgão desde sua criação. Estabeleceu prazo para isso e criou um grupo de trabalho para isso, prometendo uma resposta já em 2016. O trabalho foi entregue pelos assessores, mas nada foi aprovado. O estudo e a proposta de otimização das resoluções foram, no final das contas, descartados.

Além de não sanear as resoluções, Cármen Lúcia aprovou apenas cinco novas propostas – e todas apenas na última sessão de seu mandato de dois anos, a toque de caixa, como criticaram conselheiros. A primeira delas trata do Cadastro Nacional de Presos. A segunda estabeleceu uma política de acolhimento a vítimas de crimes. E as outras três diziam respeito ao enfrentamento à violência contra a mulher, à participação das mulheres nas instituições do Poder Judiciário e a procedimentos de atenção às mulheres gestantes e lactantes presas.

Antes de Cármen Lúcia, o CNJ enfrentou críticas pela gestão corporativista do ministro Ricardo Lewandowski. O contraponto que seria feito pela ministra não se efetivou. Administrativamente, criticam os conselheiros, o CNJ ficou travado. E o plenário ficou conflagrado, também de acordo com os integrantes do conselho, pela falta de articulação e propensão ao diálogo da presidente. A expectativa agora é de que o ministro Dias Toffoli estabeleça um norte para o órgão.

STF conflagrado

Fragmentação

Dentro do tribunal a ministra pouco contribuiu para a pacificação

A autoridade do presidente do STF não está no cargo que ocupa. Mas na liderança que exerce e na percepção dos colegas sobre suas posições. Numa Corte de iguais, o ministro que comanda a casa tem poderes reduzidos. O mais notório é a definição da pauta e a coordenação das sessões.

Da mesma maneira, a legitimidade do STF não é automaticamente criada pela previsão formal, na Constituição e na legislação, de suas amplas atribuições – de Corte recursal, criminal e  constitucional. A capacidade de ser, de fato, a última instância para as disputas políticas e sociais é construída na prática, e os textos legais e suas interpretações são insuficientes para isso. Como costumava dizer o ministro Ilmar Galvão quando julgava um processo, tão importante quanto o Direito era saber se aquela decisão seria cumprida. Se não fosse, talvez fosse melhor não proferi-la.

No passado – distante ou recente –, os exemplos de presidentes com reduzida capacidade de liderança no colegiado se acumulam. Com o STF conflagrado, fragmentado e marcado pela atuação individual dos ministros, esta tarefa é ainda mais inglória. E Cármen Lúcia sofreu novamente o cargo.

Alguns exemplos são sintomáticos, mas é preciso analisá-los dentro de categorias distintas, dependendo de como a ministra se colocou (ou foi colocada) diante dos fatos em cada cenário.

Alguns cenários fugiam totalmente ao controle da presidente, como a morte do ministro Teori Zavascki e a exposição das digitais político-ideológicas da Corte. O acidente aéreo que vitimou o ministro reverberou a crise pela qual passava e passa o STF, dividido política e ideologicamente, especialmente quando o assunto é o combate à criminalidade política. O processo de substituição de Zavascki na relatoria da Operação Lava Jato, com toda uma articulação interna para evitar que as ações caíssem neste ou naquele gabinete, gerou incertezas políticas e expuseram sobremaneira a Corte e seus ministros. Cármen Lúcia, neste cenário, fez o que pôde: organizou regimentalmente o processo de sorteio do novo relator e, neste meio tempo, assumiu a responsabilidade de homologar a toque de caixa as dezenas de acordos de delação de executivos da empreiteira Odebrecht.

“Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro”, disse Cármen Lúcia em decisão que derrubou resolução da Agência Nacional de Saúde Suplementar

Em outros casos, a presidente foi chamada a arbitrar crises decorrentes de decisões controversas dos colegas, como ocorreu nos episódios Renan Calheiros e Aécio Neves. Nestes, a atuação da maioria do Supremo – com o voto decisivo de Cármen Lúcia – colocou o tribunal abaixo do Congresso – não necessariamente pelo que decidiu, mas pela forma como recuou.

Renan Calheiros

Em dezembro de 2016, o ministro Marco Aurélio Mello concedeu uma liminar para afastar o então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), do cargo. O Supremo havia recebido denúncia contra o senador, e Marco Aurélio entendeu que, por ser réu, Calheiros não poderia estar na linha sucessória da Presidência da República.

O ministro se baseou em posição que acreditava ser majoritária do plenário – em julgamento não concluído até hoje – sobre a possibilidade de réus ocuparem cargos na linha sucessória, uma ação movida pela Rede Sustentabilidade.

A reação do Senado colocou em xeque a autoridade da decisão de um ministro do Supremo – e repercutiu na instituição como um todo. Renan Calheiros afirmou que não cumpriria a decisão liminar, mas aguardava uma decisão colegiada do STF para então submeter-se à ordem judicial. Nem na ditadura, uma decisão do tribunal – mesmo que de um de seus ministros – foi descumprida.

A presidente do Supremo viu-se numa encruzilhada. Por um lado, o Senado a pressionava, colocando o já debilitado equilíbrio entre os Poderes sob ameaça. Por outro, era a decisão de um ministro do Supremo – ainda que precária e baseada em julgamento inconcluso – que estava em jogo.

Não havia solução fácil. E Cármen Lúcia articulou a reversão da decisão – e contou com o apoio decisivo do ministro Celso de Mello. Por seis votos a três, Calheiros foi mantido no cargo, mas o STF decidiu que o senador, por ser réu, não poderia assumir a Presidência da República em caso de ausência de Michel Temer.

No ano seguinte, em outro julgamento polêmico, Cármen Lúcia disse que seria inimaginável que uma decisão do STF não fosse cumprida: “Não seria admissível que uma decisão do STF ou de qualquer órgão do Poder Judiciário não fosse cumprida. Não teríamos Poder Judiciário e não teríamos, na verdade, democracia”.

Aécio Neves

O caso do senador mineiro já expunha a reação mais contundente da política ao STF. Investigado pela Procuradoria-Geral da República e flagrado negociando o recebimento de recursos com integrantes da JBS, Aécio foi afastado do exercício do mandato parlamentar – depois de idas e vindas – pela 1ª Turma. No colegiado, prevaleceu o entendimento de que, para proteger as investigações, o senador tucano deveria ser afastado de suas funções.

Senadores reagiram, pressionando o presidente da Casa, Eunício Oliveira (MDB-CE), a submeter a decisão do STF ao plenário. Diante do cenário que se desenhava, Cármen Lúcia atravessou a Praça dos Três Poderes para negociar uma saída com o Legislativo. E acertou com Eunício Oliveira que a questão seria resolvida pelo plenário do STF na semana seguinte.

Estava pauta para julgamento uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5526) em que os partidos – PP, PSC e Solidariedade – defendiam que medidas cautelares impostas a deputados e senadores e deveriam ser submetidas ao crivo da respectiva casa legislativa em 24 horas.

A discussão no STF foi dividida – 5 votos num sentido e 5 votos noutro. E coube à ministra Cármen Lúcia, que havia costurado o acordo político com o Senado, desempatar o julgamento. A ministra tentou se equilibrar, inutilmente, na corda, fazendo parecer que concordava com os dois lados. Mas sua dubiedade foi flagrada e revelada por todos os colegas durante o julgamento. A ministra pagou um preço alto por comandar o recuo da Corte.

Cármen Lúcia: Nós vamos ter que chegar a um voto médio.

Edson Fachin: Mas não há voto médio aqui, presidente. Nós temos uma divergência essencial: submeter ou não à Casa Legislativa. Meu voto foi pela não submissão, o do ministro Alexandre, acompanhado por mais cinco ministros. Inclusive, Vossa Excelência, foi pela submissão.

Cármen Lúcia: Não, é apenas um dado. Não é quanto a ser voto vencido ou vencedor.

Foram 45 minutos de discussão até que a presidente deixasse claro que votava pela possibilidade de o Congresso reverter as decisões do Supremo e que se proclamasse o resultado. “Os autos da prisão em flagrante delito por crime inafiançável ou a decisão judicial de imposição de medidas cautelares que impossibilitem, direta ou indiretamente, o pleno e regular exercício do mandato parlamentar e de suas funções legislativas, serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, nos termos do §2º do artigo 53 da Constituição Federal, para que, pelo voto nominal e aberto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão ou a medida cautelar”, decidiu o STF, com o voto de desempate de Cármen Lúcia.

Noutro caso, que envolveu a execução provisória da pena e a manutenção da prisão do ex-presidente Lula, foi a ministra quem direcionou o tribunal, assumindo total responsabilidade pelos ônus e bônus do desfecho. Atuou solitariamente, resistindo a pressões internas – inclusive de ministros com os quais a ministra mantém as mais próximas relações -, controlando com mão de ferro a pauta e expondo colegas à opinião pública.

Nas oscilações da jurisprudência sobre a execução provisória da pena, o STF decidiu em 2016 que era regra a prisão após a condenação em segunda instância, mas indicou nova mudança – a partir da guinada de opinião do ministro Gilmar Mendes. A alteração de jurisprudência, com potencial dano à Lava Jato, poderia ser feita no julgamento de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) relatada pelo ministro Marco Aurélio e que já estava pronta para ser decidida.

Mas Cármen Lúcia fez conta de chegada – de olho no decisivo voto da ministra Rosa Weber. Em vez de levar a ADC a plenário, preferiu dar nome e sobrenome ao julgamento. Por quê? Se levasse a julgamento a ADC, o STF poderia reverter sua interpretação da Constituição e, por consequência, garantiria a liberdade a Lula.  Mas, ao pautar o habeas corpus impetrado por Lula contra sua prisão, Cármen Lúcia praticamente definiu o destino do petista, mudou o quadro eleitoral e adiou para 2019 qualquer tentativa de reversão da jurisprudência.

“Eu não lido [com pressão]. Eu simplesmente não me submeto a pressão”, disse Cármen Lúcia sobre o movimento de ministros para julgamento das ADCs que contestam prisão em segunda instância.

Outro caso, protagonizado por outros colegas, levanta dúvidas sobre a responsabilidade da ministra na liderança da Corte. Como insiste o ministro Marco Aurélio, o presidente do STF deve atuar como algodão entre cristais. Sob esse critério, a atuação de Cármen Lúcia foi insuficiente. Não questionou ministros que exorbitavam nas críticas em plenário ou fora dele. Não liderou o tribunal, falou pela instituição e por seus colegas em momentos críticos. Os ministros, neste quadro de vácuo, transbordaram, disputaram o debate público e acirraram os ânimos.

A Lava Jato foi ingrediente central destas pelejas, partindo a Corte entre aqueles que enxergavam na operação um detergente para a política e aqueles que viam na atuação da Procuradoria um desbordo para o messianismo.

Este foi o cenário que emoldurou a grave discussão entre Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. Mendes é crítico contumaz de posicionamentos de Barroso, e nunca se viu constrangido ou contido por um colega a diminuir o tom em prol da institucionalidade, muito menos por Cármen Lúcia.

No dia 21 de março deste ano, Barroso reagiu e  proferiu a frase que já entrou para o imaginário popular: “Me deixa de fora desse seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível, mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado aqui”.

Em meio à tensão, Cármen Lúcia chamou um intervalo com o intuito de acalmar os ânimos, mas Gilmar Mendes não aceitou a ordem da presidente e rebateu: “o senhor deveria fechar seu escritório de advocacia”.

Depois, em evento na Feira da Língua Portuguesa, em Paraty, Barroso explicou sua reação: “Imagina você ir todo dia trabalhar com um colega grosseiro, que planta notas falsas contra você nos jornais! Fiquei chateado porque a impressão que ficou é a de um episódio de dois brigões, mas, na verdade, a nossa divergência é sobre projetos de país.”

Cármen Lúcia, como presidente, numa auto-crítica afirmou que não conseguiu ”a pacificação social”. Difícil saber como a ministra pensava que, da sua cadeira, poderia pacificar a sociedade. Mas, independentemente disso, pode-se dizer com segurança que dentro do tribunal a ministra pouco contribuiu para a pacificação.

Choque entre Poderes

Julgamentos

Três decisões da ministra Cármen Lúcia a colocaram em contraposição ao Palácio do Planalto

Três decisões da ministra Cármen Lúcia a colocaram em contraposição ao Palácio do Planalto e fomentaram mais turbulência no cenário já conflagrado.

Na primeira, ela suspendeu os efeitos do decreto de indulto natalino assinado pelo presidente Michel Temer.  A ministra julgou inconstitucionais vários pontos do decreto e disse que indulto não pode ser “instrumento de impunidade”. “Indulto não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime. Nem pode ser ato de benemerência ou complacência com o delito.”

Noutra decisão, suspendeu a posse da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) no Ministério do Trabalho. Condenada pela Justiça Trabalhista a pagar indenização a um ex-motorista, a deputada foi nomeada para o cargo por Temer. Mas Cármen Lúcia suspendeu a nomeação “com base no poder geral de cautela e nos princípios constitucionais da segurança jurídica e da efetividade da jurisdição, que seriam comprometidos com o ato de posse”.

“Há que se respeitar opiniões diferentes. O sentimento de brasilidade deve sobrepor-se a ressentimentos ou interesses que não sejam aqueles do bem comum a todos os brasileiros”, disse Cármen Lúcia às vésperas do julgamento do HC de Lula

Na terceira, impediu que o governo federal bloqueasse repasses de recursos ao Rio de Janeiro porque o estado não estava pagando suas dívidas. A medida estava prevista no plano de recuperação fiscal firmado pela União com o governo Luiz Fernando Pezão (MDB-RJ) para tirar o Rio de Janeiro da grave crise financeira em que ainda se encontra. A ministra alegou que a retenção dos recursos para o estado poderia impedir a continuidade de serviços básicos. A decisão, contudo, gerou insegurança e diminuiu a força do Ministério da Fazenda de impor medidas de austeridade ao Rio de Janeiro e aos demais estados também em dificuldades.

Por outro lado, Cármen Lúcia deixou de pautar temas que estavam sob sua relatoria, como a autorização para o aborto em caso de contaminação por zika vírus, ação que chegou ao STF em 2016, chegou a ser pauta para julgamento no mesmo ano, mas não voltou ao plenário desde então.

E, durante os dois anos de gestão Cármen Lúcia, o Supremo julgou casos importantes, como:

–       redução do escopo do foro privilegiado;

–       constitucionalidade da terceirização de atividades-fim por empresas;

–       o direito de transgêneros alterarem seu registro civil sem a necessidade de mudança de sexo;

–       reconhecimento da imprescritibilidade de ação de ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade;

–       impossibilidade de condução coercitiva de pessoas investigadas,

–       poder da polícia de firmar acordos de delação premiada;

–       inconstitucionalidade de norma federal que permitia a industrialização e comercialização do amianto crisotila;

–       possibilidade de desconto no salário do servidor em greve (mesmo que a greve não seja ilegal);

–       desnecessidade da autorização prévia de Assembleia Legislativa para que o governo do respectivo estado seja processado criminalmente;

–       possibilidade de ensino religioso confessional nas escolas públicas;

–       constitucionalidade do fim da contribuição sindical obrigatória;

–       constitucionalidade do Código Florestal;

–       regularidade dos acordos de delação homologados por ministro do Supremo, com aplicação dos respectivos benefícios aos investigados.

O futuro

E agora?

Na 2ª Turma, Cármen Lúcia fará diferença no seguimento das investigações de combate à corrupção

Cármen Lúcia deixa a Presidência e volta a ocupar uma cadeira na 2ª Turma do STF. Sua presença mudará o equilíbrio de forças no colegiado que julga as ações da Lava Jato.

Junto a Fachin e Celso de Mello, Cármen Lúcia voltará garantir maioria para um grupo de ministros que é mais deferente às investigações e posicionamentos do Ministério Público.

Antes, com Dias Toffoli na 2ª Turma, a tríade composta por ele, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski impôs restrições relevantes às apurações, como a decisão que libertou o ex-ministro José Dirceu da prisão.

Nesta posição, longe das pressões da Presidência, Cármen Lúcia fará diferença no futuro da Corte e no seguimento das investigações de combate à corrupção política, o que nem sempre pôde fazer quando estava na Presidência do tribunal.

Cármen Lúcia deixa a presidência com os ministros e conselheiros do CNJ, quase abertamente, dizendo-se aliviados com a mudança no comando da Corte. Esperam que agora a travessia para tempos pacificados ou menos revoltosos possa, enfim, ser feita.