Cármen Lúcia deu azar. Nos dois anos em que comandou o Supremo Tribunal Federal (STF), as crises políticas e as tragédias se sucederam em ritmo incomparável. As investigações da Lava Jato atingiram centenas de parlamentares, colocando o Congresso na defensiva. Os escândalos de corrupção combaliram também o já fragilizado e recém-empossado governo Michel Temer (MDB). O STF seria chamado a ser o moderador numa Praça dos Três Poderes desequilibrada.
Mas com todas as idiossincrasias do tribunal, os indícios de contaminação política, suas disputas internas e sua falta de coesão institucional, o Supremo chega ao final desses dois anos fragmentado, com a legitimidade questionada e politicamente exposto. E a ministra Cármen Lúcia, que deveria representar o tribunal, não foi reconhecida pelos pares como uma liderança e não conseguiu, no cargo, evitar que o STF se tornasse, em vez de moderador, fator adicional na crise política. Em alguns episódios, ela própria foi fator de desagregação interna e conturbação externa.
Cármen Lúcia assumiu o STF exatamente 12 dias depois que o Congresso apeou Dilma Rousseff da Presidência da República e na mesma tarde em que a Câmara cassava o mandato do deputado federal Eduardo Cunha (MDB-RJ). Na cerimônia de posse no STF, Michel Temer posava de novo presidente, com a popularidade sempre em baixa e com a legitimidade questionada, e Luiz Inácio Lula da Silva mantinha-se discreto entre os convidados. Do lado direito de Cármen Lúcia, o presidente do Congresso, Renan Calheiros (MDB-AL), recordista em inquéritos na Lava Jato, ignorava seu algoz, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
No mês seguinte, uma sucessão de rebeliões em presídios no Norte e Nordeste, especialmente, deixaram dezenas de mortos e evidenciaram a falta de políticas articuladas para o sistema carcerário. O Judiciário, inclusive, com sua parcela de responsabilidade. Em Manaus, foram 56 mortes. Em Roraima, no maior presídio do estado, 33 presos foram assassinados. Na trágica soma, foram 133 mortes nos presídios do país nos primeiros 15 dias de 2017.
No dia 19 de janeiro de 2017, o ministro Teori Zavascki, relator dos processos da Operação Lava Jato no Supremo, morreu na queda do avião que o transportava para Angra dos Reis. O ministro preparava-se para homologar as dezenas de delações premiadas firmadas por executivos da Odebrecht – até aquele momento, a chamada delação do fim do mundo. Sua morte jogou dúvidas sobre o futuro da Lava Jato no Supremo, expôs o decréscimo de credibilidade da Corte e abriu uma vaga no tribunal para ser preenchida por Temer.
“Não cedo diante de pressões pelo fato de eu ser mulher. A sociedade é preconceituosa. O Judiciário, muito mais”, disse Cármen Lúcia sobre o fato de ser uma mulher no comando do Poder Judiciário
Em maio de 2017, o empresário Joesley Batista firmou um acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR) e, numa ação controlada, gravou o presidente da República, Michel Temer, em conversas comprometedoras. O governo passou a enfrentar sua maior crise, viu sua base de sustentação se fragmentar, amargou o adiamento de reformas constitucionais e teve sua sobrevivência colocada à prova.
Em junho, Temer foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República pelo crime de corrupção, colocando novamente o tema do impeachment na pauta do país. Em agosto, a Câmara negou seguimento ao processo contra Temer, mas em setembro, quando o mandato de Cármen Lúcia chegava à metade, Janot oferecia a segunda denúncia contra Temer – desta vez por obstrução de Justiça e organização criminosa. E, em meio a tudo isso, investigações jogaram dúvidas sobre a lisura do acordo firmado pela PGR com a empresa JBS. Marcelo Miller, da equipe de Janot na PGR, teria atuado como investigador e advogado da JBS ao mesmo tempo. As suspeitas de jogo duplo e de manipulação de informações levaram o Ministério Público a pedir a prisão de Joesley e a revisão dos amplos benefícios concedidos aos donos da empresa.
Esses fatores externos invadiram o tribunal e aprofundaram as fissuras internas. Do lado de fora, mais do que composta por ministros mais “punitivos” e ministros mais “garantistas”, a Corte passou a ser vista como dividida entre os pró e os contra a Lava Jato, entre aqueles que engrossavam o caldo da reação da política contra as investigações e aqueles que enxergavam na operação um caminho para mudar a forma de fazer política no país.
Em julho deste ano, assistiu a distância, falando apenas nos bastidores, à guerrilha judicial que envolveu o prende-solta do ex-presidente Lula. Em meio ao plantão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), o desembargador Rogério Favreto decidiu soltar o ex-presidente Lula. Em resposta, o juiz federal Sérgio Moro afirmou que Favreto era incompetente para a decisão. Em seguida, o relator do processo de Lula no TRF4, desconstituiu a decisão de Favreto. Uma confusão institucional que expôs as fraturas do Judiciário e que desaguou no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), onde o caso ainda espera uma decisão.
“A Justiça é impessoal, sendo garantida a todos os brasileiros a segurança jurídica, direito de todos. O Poder Judiciário tem ritos e recursos próprios, que devem ser respeitados”, disse Cármen Lúcia sobre o prende e solta de Lula.
Esta conjuntura teria sido difícil para qualquer presidente. Mas como atuou Cármen Lúcia neste cenário? Seria apenas uma vítima de todas as circunstâncias externas e internas? Ou teria ela também sua parcela de responsabilidade – e, em caso afirmativo, pelo quê? Como poderia ter agido diferente nessas difíceis circunstâncias?
Por mais que seja factualmente visível que Cármen Lúcia tenha enfrentado momentos de extrema turbulência, a própria ministra deu no seu discurso de posse o tom de como pode hoje ser julgada. “Talvez, estejamos vivendo tempos mais difíceis do que as experiências históricas anteriores. Talvez porque cada geração tem a ilusão e a soberba de achar que o seu é mais difícil porque é o seu”, disse ela em 2016. Para acrescentar: “Os conflitos multiplicam-se e não há soluções fáceis ou conhecidas para serem aproveitadas. Vivemos momentos tormentosos. Há que se fazer a travessia para tempos pacificados. Travessia em águas em revolto e cidadãos em revolta”.
Ela, portanto, foi apresentada (inclusive pela imprensa) como solução, a austera madre superiora (imagem que a ela atribuíram) que combateria privilégios, como pacificadora que saberia negociar com os pares e com os demais Poderes a solução para tempos revoltosos, como a juíza sem vaidades ou pretensões, algo raro num tribunal de individualidades. Mas, no resumo de dois anos, Cármen Lúcia sai com outra imagem, na visão de seus colegas: uma ministra que ficou no discurso e não avançou para a prática, que abusou do marketing pessoal, expôs publicamente colegas para defender seu ponto de vista e, no auge da crise, deixou-se colocar como alternativa política na crise.
Paga o preço por tentar caminhar sobre uma linha que cortejava a opinião pública, sem confrontar o governo e sem combater ativamente a polarização do tribunal.