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Cade investiga cartéis ainda desconhecidos na Lava Jato

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Capítulo 1

Balanço e desafios da SG

Passados três anos da operação que revelou as mais complexas e amplas condutas anticompetitivas da história, investigadores ainda apuram como operaram carteis ainda desconhecidos do público. A duas semanas do fim de seu mandato na Superintendência-Geral, Eduardo Frade afirmou em entrevista ao JOTA que o grande conluio entre empreiteiras alvo da Lava Jato começou a ser elucidado apenas recentemente porque o Brasil demorou a se convencer da importância de acordos de colaboração com investigados – notadamente a delação premiada e leniência.

Como resultado, equipes técnicas do Conselho Administrativo de Defesa Econômica investigam diferentes configurações de um cartel que prejudicou obras tão distintas quanto a urbanização de favelas no Rio de Janeiro, a montagem da usina nuclear de Angra 3 e empreendimentos relacionados à Copa do Mundo e Olimpíadas.

A operação e modus operandi de alguns deles serão conhecidos nos próximos meses à medida que amadurecem as investigações. Integrante da Força Tarefa montada pelo Ministério Público Federal, o superintendente-geral ressalta como desafio a maior colaboração de órgãos da administração pública para que se obtenham punições efetivas aos envolvidos.

A assinatura de acordos com investigados possibilita a obtenção de provas mais robustas e aumenta o enforcement da legislação antitruste, resultados acumulados após uma longa curva de aprendizado do Cade com seu programa de leniência iniciado no ano 2000, na avaliação do advogado. No cargo, Eduardo Frade assinou até esta quinta-feira (29/6) oito acordos deste tipo com empreiteiras investigadas pela Lava Jato – cada um deles voltado para a operação de cartéis em diferentes licitações. Entre os prejudicados com sobrepreço aplicado pelas empreiteiras figuram estatais como a Petrobras, Eletrobras e Valec.

Além de demorar para se dar conta do potencial com que acordos podem contribuir para redução da impunidade, o Brasil debate atualmente o trade off para a sociedade da composição com suspeitos. O assunto dominou a pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) no fim do primeiro semestre, depois que a Procuradoria Geral da República firmou acordo com Joesley Batista, da JBS, no qual ele aponta indícios de crimes do presidente Michel Temer. Em troca de contribuir em ações controladas de investigação, gravando diálogos com o peemedebista, o empresário obteve imunidade penal e não será processado. O Judiciário tenta equilibrar prós e contras: vale mais descobrir ilícitos envolvendo o mais alto cargo da República ou punir o empresário, que busca corromper autoridades, como conselheiros do Cade e integrantes da Superintendência Geral?

Responsável pela análise de grandes fusões e aquisições, abertura de processos administrativos e consolidação dos programas de leniência e de Termos de Compromisso de Cessação (TCC), Eduardo Frade acredita que ainda é cedo para verificar se a atuação mais incisiva da autoridade antitruste resultou em um ambiente mais competitivo no Brasil – país de economia tradicionalmente fechada à competição estrangeira e refluxos protecionistas.

Ao mesmo tempo, porém, aponta que a alta concentração de mercado em alguns setores causa preocupação aos técnicos da SG, traduzida em avaliações duras e recomendação de veto a negócios bilionários. Como o que ocorreu nesta semana, quando os conselheiros do tribunal administrativo impediram que os dois maiores grupos de ensino privado do país – Kroton e Estácio – unissem suas operações, com base na recomendação da superintendência, entre outros motivos.

No caminho à frente, Eduardo Frade vê o desafio de ampliar o uso de estudos econômicos e instrumentos de tecnologia para ampliar a capacidade do Estado de detectar combinações de preços, notadamente em licitações públicas.

O superintendente deixa claro que ocorrem ilegalidades longe do radar público, conduzidas tanto por carteis quanto por empresas que se fundem sem notificar o poder público. Ele participou de sua última sessão de julgamento do tribunal administrativo na quarta-feira, quando apresentou um balanço de sua gestão. Na véspera, conversou com o JOTA.

Capítulo 2

SG acelerou análise de atos de concentração

Concorrência no mercado

Comecemos por um balanço de sua gestão. Quais as principais conquistas e problemas que enfrentou?

Em atos de concentração tivemos o desafio da manutenção do trabalho instituído logo no início da vigência da nova lei [Lei 12.529/2011], de fazer os ACs andarem bem, andarem rápido. É um desafio diário, a gente conseguiu manter isso e melhorar. Neste ano, você vai ver que nossa média de prazo de analise de atos sumários está abaixo de 15 dias. Algumas coisas a gente conseguiu melhorar um pouco, acho que essa talvez tenha sido a principal entrega do novo Cade. Manter isso é e foi muito importante.

O que tentei fazer na gestão em relação a isso foi: a gente sentiu necessidade de maior clareza em relação a determinadas regras e isso teve como consequência a edição de normas para deixar mais clara a notificação de AC. Isso envolve desde alterações na Resolução 2, até a resolução de contratos associativos, por exemplo. A gente deve soltar antes do fim do mandato um manual interno de análise de atos de concentração ordinários da Superintendência Geral. Isso é basicamente colocar um guia interno para nossos servidores com melhores práticas. A intenção é tentar manualizar e manter de forma perene essa tecnologia que a gente obteve nos últimos anos de como analisar um ato de concentração de forma célere e eficaz, manter isso na instituição.

Um foco maior, que é um desafio e tem que continuar, é focar na qualidade dos pareceres e das análises. A gente investiu nisso. Uma coisa importante que talvez tenha se acirrado muito na minha gestão é o uso do Departamento de Estudos Econômicos na análise de ACs, mas acho que é algo que no futuro é um desafio para o próximo superintendente: melhorar a qualidade da análise dos atos de concentração. Isso tem a ver com treinamento constante da equipe, capacitação, sempre antenado nas coisas novas que estão surgindo.

Uma das principais inovações da nova Lei do Cade foi a análise prévia de atos de concentração, que antes eram consumados e posteriormente notificados à autarquia. Não vemos, no entanto, uma explosão de casos de gun jumping – foram menos de uma dúzia nos cinco anos –, como era de se esperar, levando em conta o grande número de multas por intempestividade que o Cade aplicava antes. Em apenas em um caso foi aplicada a nulidade dos atos, prevista na lei. Por que a SG não recomenda a anulação de contratos quando descobre que a empresa consumou uma operação sem notificar a autoridade? 

Vou tratar de dois assuntos. Um antes da nulidade, que acho importante, porque é uma questão que a gente comumente recebe. Será que vocês não estão sendo pouco proativos em identificar? Não há atos de concentração que não estão sendo notificados? Primeiro comentário a esse respeito: acho que seria ótimo a gente conseguir ser mais, procurar mais atos que não estejam sendo notificados. Mas isso está diretamente relacionado ao nosso crescimento, ou não, do ponto de vista de receber servidores. A gente precisa de mais gente…

Com equipe maior e mais orçamento o Cade conseguiria identificar mais operações não notificadas? 

Não sei se faria, mas conseguiríamos sem dúvida fiscalizar mais. Dito isso, é um número pouco divulgado as nossas APACs, nossos procedimentos de apuração de atos de concentração. Porque elas correm de forma confidencial, então pegamos os números de forma agregada. Você vai ver que o número de denúncias e APACs analisadas pela SG nos últimos anos, ou seja verificando ato de concentração potencialmente notificável é muito grande. A gente não esteve parado neste tempo. De fato recebe várias denúncias e abre várias APACs para averiguar isso. Um ponto interessante: mesmo depois de analisar essas várias APACs, o percentual de AC que de fato são de notificação obrigatória e deveriam ser notificados é muito pequeno. Isso também dá um indicativo, com boa base estatística, de que as empresas parece que estão obedecendo a regra de notificação.

Grandes empresas, afetadas pelos limites da lei em termos de faturamento…

A gente não está vendo um indício grande de que as empresas não estão notificando seus atos de concentração. Acho isso uma sinalização importante. Nos que a gente verifica que houve o gun jumping aí tem a discussão de qual é a punição que deve ser aplicada e uma delas é a nulidade ou não dos atos. A gente na verdade sempre relegou mais ao tribunal a decisão sobre a sanção a ser aplicada. A meu ver, a discussão sobre a nulidade é uma coisa que nem sempre vai ser imposta porque depende muito da gravidade, do problema que aconteceu naquele ato de concentração. É uma coisa a ser ponderada sempre pelo conselho, porque anular atos passados muitas vezes implica consequências para uma série de terceiros. Então gera consequências muito grandes, em casos que você verifica que nem sempre teve problema concorrencial. É uma análise de custo benefício, de que muitas vezes não vale a pena.

Nos últimos dois anos, algumas notas técnicas da SG têm sido extremamente duras, com recomendação de impugnação de operações pela concentração alta existente no mercado. Vimos isso no caso Ipiranga-Alesat, Kroton-Estácio. Mas não temos um número grande de reprovações,  na prática. Qual é a mensagem da SG com essas notas duras? Há mercados que bateram no teto e não comportam mais consolidação no Brasil?

Primeiro, acho importante desmistificar algumas coisas. É claro que essas notas duras são nos casos grandes que chamam muito a atenção. Mas vamos ver isso em perspectiva. O número de atos de concentração que tem recomendação de restrição do Cade é muitíssimo pequeno, nos últimos anos é entre 3% e 5%. Isso está dentro da média mundial. Vai casar muito nos casos em que há sugestão de impugnação. Não lembro de algum caso que tenha sido impugnado pela SG que tenha tido alguma restrição do tribunal. A grande maioria via acordo, mas são raros os casos que a SG impugna e que não tem nada no tribunal. Se você pegar o universo de 100 atos de concentração, tem três impugnações da SG. É um mito que a SG é dura. A SG determina, recomenda impugnação nos casos que precisam disso.

Vamos pegar agora os casos que são impugnados. Vários desse já saem com recomendação de ACC da própria SG, cerca de 25% já saem com recomendação de ACC [Acordo em Controle de Concentrações] ou negociado na própria SG. Em outros, a gente recomenda impugnação, mas não recomenda reprovação e nada assim. Os casos em que a gente parece ser muito duro é um número muito pequeno, então não diria que a SG é dura. Ela faz a análise técnica que precisa ser feita, algumas vezes essa análise técnica leva a concluir que há um problema muito grande no mercado.

Em que casos acontece isso? Quando existe um problema concorrencial muito grave. Não raro, isso acontece em mercados que você já viu concentração grande no passado e uma das questões mais difíceis que tem é decidir quando chega o momento em que isso deve parar.

 

A SG e o tribunal têm vocações distintas. Institucionalmente, acho que é uma coisa que faz sentido que a SG tenda a ser um pouco mais dura em suas análises que o colegiado. Nós somos um misto de promotor com juiz, mas faz sentido que a gente faça análise pro tribunal com mais questionamentos. Não acho que sejamos mais duros que o normal, isso é em alguns casos e são casos em que tecnicamente, a nosso ver, existe essa necessidade.

Vocês recebem 100 processos recomendam impugnação/restrição em 3%, 5% deles. São duros quando o mercado em si exige isso. O que podemos entender é que a SG fala todo dia “aprova” e pouquíssimas vezes conclui que o caso não pode ser aprovado de forma nenhuma. Isso tem que pesar na avaliação tribunal? Ou seja, a SG não deve ser vista como intervencionista ou contra grandes empresas, mas que naquele caso a barra precisa subir… Qual a mensagem que você quer passar pro tribunal?

É exatamente essa. Isso aqui [um determinado caso] a nosso ver é preocupante. E acho que neste sentido nossa relação com o tribunal é excelente. O tribunal entende isso também. O que vai ter em seguida é uma discussão sobre o que que precisa ser feito para remediar. E é uma discussão antitruste não só no Brasil, mas no mundo todo, particularmente é difícil. Você vai ter entendimentos diversos. Alguns acreditam que é necessária a reprovação. Outros,  que uma restrição estrutural é suficiente. Outros, que restrições comportamentais naquele caso são suficientes. As discussões do Cade a este respeito têm sido feitas de forma transparente. Mas acho que você fez uma boa leitura, é isso aí.

Capítulo 3

Investigações ex-officio, leniência, TCC e algoritmos

Condutas anticompetitivas

Como foi a atuação da SG em condutas anticompetitivas?

Acho que é bem evidente que a gestão focou muito, se fosse elencar uma área de principal atuação, no combate a cartéis em licitações. A gente vê isso em diferentes frentes. Um investimento muito grande na detecção proativa de carteis, na criação de uma unidade de análise de informações – o nosso LAB – , com treinamento, softwares de investigação, montagem de um aparato voltado para isso, no desenvolvimento do projeto Cérebro, no tratamento de análise de dados de licitações com foco na detecção proativa de carteis, no esforço grande de mais cooperação com autoridades investigativas no brasil afora. Foi um eixo de investimento muito grande nosso, com bons resultados.

Ao mesmo tempo, isso não significou menor atenção ao nosso programa de leniência, pelo contrário. Uma das principais entregas dessa gestão foi a consolidação e o crescimento absolutamente sem precedentes do nosso programa de leniência. É impressionante o que nosso programa de leniência atingiu nestes últimos três anos do ponto de vista de recordes consecutivos do numero de assinaturas. Até junho a gente já bateu, ja igualou o número de todo o ano passado inteiro – que foi um recorde histórico do Cade.

Por quê o programa vem crescendo?

Diria que a gente finalmente conseguiu, por meio de experiência em casos reiterados e esforço muito grande de segurança jurídica, transparência – uma coisa que fizemos foi a edição do Guia de Leniência – tornar o programa de leniência do Cade nacional e mundialmente confiável. Um programa que hoje é tomado como um programa em que as empresas se sentem seguras para assinar um acordo. A procura pelo programa cresceu muito. Nos últimos dois anos o número de pedidos de marker [interesse de assinar acordo] cresceu 500%. Quando assumi a SG, a nossa unidade de leniência tinha três pessoas, hoje tem 11. Uma das principais entregas foi o fortalecimento e a consolidação do nosso programa de leniência. Um dado interesante é ver a passagem de ter um número muito grande de leniências internacionais para um percentual muito maior de leniências nacionais, que significa consolidação do programa  aqui dentro, com as empresas brasileiras utilizando isso.

E o programa de Termos de Compromisso de Cessação?

O programa surgiu de uma norma de política de negociação de TCC, que é da época do [Carlos] Ragazzo [antecessor de Frade na SG], mas que teve a execução da sua política grandemente durante meu mandato. Vejo isso no crescimento intenso do número de TCCs. Antes, você tinha cinco TCCs por ano e agora, 60 TCCs por ano. Então alguma coisa aconteceu aqui dentro. Acho que isso mudou totalmente a feição do Cade na análise de condutas anticompetitivas com uma série de fatores relacionados. O foco em soluções acordadas, que tem vantagem de redução de custo administrativo, maior celeridade, redução de questionamentos no Judiciário e assim por diante, mas que veio acompanhada, em razão das obrigações dos TCCs, de benefícios impressionantes na qualidade dos casos.

Nos casos de cartéis, ter a necessidade de reconhecimento de participação nas condutas e a necessidade de colaboração com as investigações melhorou substancialmente os casos. A gente teve o benefício que advém de um acordo com melhoria das investigações, detecções de novos casos e daí em diante.

Surge uma pergunta: ao ter política de acordos o Cade não está enfraquecendo o seu enforcement, em vez de estar multando? Você vê que até nisso a política de TCC teve efeito contrário a esse. A gente antes tinha uma política em que o Cade aplicava um certo conjunto de multas e contribuições pecuniárias por ano, da ordem de R$ 100 milhões, para no ano passado ter chegado a R$ 800 mihões. A política de acordos, então, não se traduziu em menos enforcement, mas em mais enforcement. As empresas hoje pagam mais e são mais punidas do que eram antes da política de acordos. Isso é mais enforcement.

Por que admitir participação aumentou o número de acordos?

Olha como as regras de TCC são duras: tem que reconhecer participação na conduta, tem que colaborar trazendo provas etc e tem que pagar e muito. Por que as empresas vêm? Na minha opinião, por uma mistura de transparência de regras – antes não havia regras e a empresa não sabia o que esperar, hoje ela sabe e isso é essencial, sabe que vai ter que pagar muito e sabe que é duro, mas ele sabe o que esperar. A introdução da politica de acordo veio acompanhada do endurecimento do Cade, no sentido de detectar mais casos e ter punição severa. Então o cara acaba fazendo um acordo porque sabe que se tem um caso contra ele no Cade a chance de ao final ser severamente punido é alta.

Mesmo sem a participação do Ministério Público? 

Isso é uma coisa que a gente teve que trabalhar. Como o TCC, ao contrário da leniência, não gera imunidade penal, quando o cara admite participação no ilícito aqui isso pode acabar gerando um problema penal para ele, se não tiver garantia semelhante do MP. Isso fez por exemplo nascer o Memorando de Entendimento com o MPF-SP para que um indivíduo que faça o TCC aqui também possa buscar o MP para tentar obter algum tipo de benesse penal lá. Até nisso, isso seria uma dificuldade do TCC mas que não foi suficiente para inibir pessoas e empresas a buscar os TCCs.

A arrecadação do Cade fechou em quase R$ 800 milhões no ano passado. Bate R$ 1 bilhão neste ano?

É possível, estamos chegando na metade do ano com o mesmo resultado do meio do ano passado. Mas o segundo semestre sempre tende a ter mais coisas. É possível, mas é dificil prever nesse momento.

No início do século, o Cade não aplicava multas maiores que 1% do faturamento. Hoje, há uma queixa dos advogados de que a SG e o tribunal aplicam multas muito altas, está elevando a barra e aplicando valores maiores. Você concorda com essa avaliação? Por que seguir este caminho?

Concordo que sem dúvida há uma percepção de que as multas do Cade e a punição do Cade é alta. Esse foi um movimento importante para fortalecimento do combate a condutas anticompetitivas. Se a gente permanecesse num patamar que havia num passado, a meu ver já distante, a gente não conseguiria ter se afirmado como autoridade de defesa da concorrência e não conseguiria fazer com que as empresas começassem a agir de forma mais competitiva. Está em linha com grandes autoridades do mundo, que de fato que colocam punições pesadas. Mas você vê que essa é uma discussão em franco debate, porque tem de um lado no empresariado uma percepção de que as multas são bastante altas. Do outro lado você vê, aqui dentro, no debate de vantagem auferida, membros do conselho que acham que não. Acham que é pouco. Tem mensagens do Congresso Nacional, de vários parlamentares achando que é pouco. Não é um debate brasileiro, é um debate mundial se as multas estão adequadas, altas ou baixas. Tem opiniões para todos os lados, estamos num momento em que a autoridade vai ter que estudar isso para ver a adequabilidade e proporcionalidade de suas multas, esse debate já está acontecendo.

É um caminho natural aumentar o valor das punições para criar incentivo negativo cada vez maior às condutas…

Se você ver histórico de autoridades consolidadas, esse foi o caminho natural de todas elas. Acho que o Brasil já atingiu esse ponto.

Você se arrisca a dizer que com essa evolução grande parte dos mercados relevantes estão mais competitivos e há mais concorrência que há dois, três anos?

Acho difícil dizer. É meio difícil medir isso no curto prazo. Acho que seria um estudo interessante para daqui a alguns anos ver os potenciais efeitos que isso teve. Mas acho tranquilo dizer que sem dúvida uma atuação mais incisiva do órgão de concorrência contribui para isso. Um outro fator que tem a ver com isso e foi impulsionador importante do programa de leniência tem a ver com o fato de que o empresariado brasileiro e internacional passou a ver no Cade,  de fato, um fator de risco, no sentido de ver a atuação do órgão aumentando. O Cade começou a ficar mais conhecido e os agentes começaram a pensar em ter um pouco mais de cuidado, porque tem um órgão que está trabalhando. E uma segunda mensagem: um órgão que, se eu for pego, me dá punições severas. Não tenho a menor dúvida de que uma das razões para o crescimento do programa de leniência tem a ver com isso, a percepção de um maior risco de detecção e de uma punição severa pela autoridade antitruste. Isso tem efeitos muito maiores do que os da leniência, quero crer.

Os programas de leniência e TCC cresceram, mas o Cade ainda possui um volume alto de investigações próprias. Por quê? 

Um dos focos da nossa gestão foi aumentar a capacidade de detecção ex-officio de carteis. A gente não foi por um caminho de relegar nosso enforcement apenas ao programa de leniência. É o caminho que algumas autoridades fazem, não é diferente do caminho europeu e americano. Decidimos não seguir esse caminho aqui – embora continue extremamente relevante nosso programa de leniência. Por que é assim? Hoje, mais ou menos 50% dos nossos casos de detecção não vêm de leniência. Esse número decresceu. Até recentemente, mais ou menos dois terços do nossos casos vinham de casos que não eram de leniência. Seria equivocado dizer que nossa detecção ex-officio cresceu em relação a leniência, na verdade foi o contrário, nosso programa de leniência cresceu, o que é um caminho natural de autoridades mais maduras – nos EUA e Europa é 90% – e nossos melhores casos vêm de leniência. Então leniência é e continuará sendo importante – provavelmente vai crescer a sua relevância dentro dos nossos casos. Mas é um entendimento nosso que não pode deixar de investir em detecção ex-officio. Isso é importante para o próprio programa de leniência.

Isso é especialmente relevante num país como o Brasil em que a gente ainda depende muito de detecção ex-officio para encontrar carteis. Historicamente a gente se desenvolveu como autoridade investigando antes de ter um programa de leniência maduro, então vem do passado. Mas também é uma decisão proativa que tomamos de investir nisso. A leniência é muito importante mas a gente vê muito que os casos que vêm do programa muitas vezes pegam carteis já no declínio. O cara está vindo para a leniência depois que o cartel atingiu seu auge. Tem uma série de fatores para a gente investir em investigação ex-officio. Desde a gente pegar casos que não seriam pegos pelo programa de leniência, até pegar casos enquanto ainda estão no seu auge, antes de atingirem pico e incentivo ao próprio programa de leniência. O cara tem menos chance de vir para a leniência se ele sente que não vai ser pego de outra forma.

Algumas autoridades vêm usando algoritmos para identificar combinações de preços em licitações e no mercado. Como está isso aqui no Brasil?

A nossa iniciativa relativa a isso é o projeto Cérebro. É focado em cartéis em licitação porque é especialmente pernicioso e é mais fácil utilizar esse tipo de mecanismo para detecção. Em comparação, isso não é caminho de várias autoridades. Os Estados Unidos, por exemplo, não acredita muito em filtro, não trabalha muito com isso. Outras autoridades tiveram sucesso nisso e estão fazendo.

O Cérebro já identificou carteis que demandariam mais investigação?

O Cérebro ainda está em desenvolvimento e sempre estará em desenvolvimento. Requer atualizações e aprimoramentos constantes, mas já está operacional em relação ao começo da gestão. Já tem o uso dele para algumas utilidades, como aprofundar investigações etc. Diria que o primeiro uso público, com resultado concreto disso, são os dois Processos Administrativos que acabamos de abrir no cartel de órteses e próteses. A gente fez a operação Mercador de Veneza e um dos fatores que a gente usou para pedir busca e apreensão e filtrar o caso e ver, detectar onde estava havendo suspeitas de conluio e etc, foi o Cérebro. Temos outros casos mapeados que provavelmente vão gerar processos no futuro também.

Alguns defendem a regulamentação da figura do whistleblower. Alguém que não participa da conduta, mas tem conhecimento e procura a autoridade mediante recompensa. Qual sua avaliação?

Acho positivo. É uma experiência que algumas autoridades lá fora já começaram a utilizar e acho que nessa questão de detecção de ilícitos a gente tem que se valer de todos os instrumentos que estão à disposição. Lógico que com cuidado, dentro da lei. Pode ser, num futuro próximo, mais um instrumento que pode ser utilizado na detecção de carteis e outros ilícitos.

A Corte Europeia de Justiça manteve o uso de informações da Receita Federal em análises da autoridade de concorrência. Aqui, a Receita e o Banco Central fazem investigação próprias e temos a impressão de que o diálogo com o Cade poderia ser melhor. Como isso se deu durante seu mandato? 

O Cade sempre teve uma mistura de sorte e competência para ter relações excelentes com diferentes órgãos do governo federal, estadual, municipal. A gente sempre soube que todos esses órgãos são extremamente necessários para nosso trabalho. Falo com sinceridade, que não tem nenhum órgão com o qual a gente não tenha nenhuma relação quando precisamos ter casos juntos.

O que acho é que a legislação brasileira e a regulamentação interna de várias instituições ainda têm muito a avançar quando falamos de investigação de ilícitos e a integração de diferentes órgãos. Diria até que, como legado da Lava Jato, talvez a principal dificuldade identificada, não só dentro do Cade, mas no contexto geral, ainda é como fazer com que todos os órgãos que são responsáveis pela investigação e punição de um ilícito se coordenem para que a investigação seja o mais efetiva possível, para que depois se consiga fazer troca de informações, de provas etc. Para que depois se coordene para haver punição proporcional, tanto para cima quanto para baixo.

E, mais um fator, para que se coordenem quando estamos falando de instrumentos de leniência também. É o perigo do que chamo da canibalização dos órgãos e dos instrumentos de leniência. Para que os instrumentos se somem e não se canibalizem, isso ainda é uma dificuldade no Brasil e é talvez a principal barreira a ser vencida num futuro próximo, se a gente quer continuar tendo um Estado que vai detectar ilícitos múltiplos, que envolvem várias esferas, que são os grandes ilícitos.

Vemos essa dificuldade de coordenação na Lei Anticorrupção…

Hoje, uma empresa que está envolvida em algum ilícito que envolve múltiplos crimes, como corrupção, cartel, lavagem, fraude e etc. tem que passar por inúmeros balcões, caso ele queira cooperar e fazer uma leniência, um acordo, ou não. É isso, a interação entre esses múltiplos órgãos pode ser altamente positiva e catapultar as investigações ou, se não for bem feita, pode minar as investigações. É papel nosso fazer com que seja o primeiro caminho e não o segundo caminho.

Capítulo 4

Carteis sob investigação e colaboração com o Ministério Público

A operação Lava Jato

Quem ouve seu relato pensa que o Cade tem grande excelência no combate a condutas anticompetitivas. Mas por que a autarquia não detectou o maior cartel de empreiteiras do país, que está sendo investigado na Lava Jato?

A gente pode perguntar isso para varios outros casos. Nunca tivemos ilusão, muito pelo contrário. Para cada cartel que a gente pega, tem vários que a gente não está pegando. É por isso que precisamos crescer como autoridade, por isso que precisa ter mais leniência e ferramentas proativas para detectar carteis porque não tenho a menor dúvida que enquanto estamos falando aqui tem dezenas de carteis nesse país que a gente não está pegando e vários deles não vamos pegar.

A Lava Jato é uma situação curiosa porque, na verdade, nós pegamos. A grande questão é quando nós pegamos os casos. Seria ótimo se as autoridades investigativas pudessem fazer isso antes, daí nosso foco tão grande em detecção proativa de carteis. Quando falo de leniência e necessidade de aumento de cooperação é porque nosso aparato de detecção de um cartel [como Estado] é muito maior que o Cade. Daí porque estamos alcançando ministérios públicos por todo o Brasil, controladorias, tribunais de contas etc. A gente sabe muito bem que o Cade não vai detectar sozinho todos os carteis.

No caso da Lava Jato foi a Polícia Federal e o Ministério Público, parceiros de longa data nossos. Detectaram isso muito por investigações mas também por um uso muito grande de uma espécie de leniência – com a delação. Os instrumentos que o Estado criou para conseguir detectar esse tipo de ilícito funcionaram. A Lava Jato é uma prova viva do que a gente vem falando há vários anos, leniência é importante. Só em 2013 saiu a Lei de Delação. O Cade tem programa de leniência desde 2000. Uma das razões é por que o Estado demorou tanto para pegar isso? Pois o Estado demorou muito para se convencer que leniência é uma coisa importante. Se você perguntasse, várias autoridades públicas de investigação eram contra, historicamente foram contra, parlamentares foram contra. Demorou para o Brasil começar a se convencer do quão útil é o instrumento de leniência. Em 2013 saiu a Lei da Delação e a Lava Jato foi detectada em 2014.

Talvez seja um pouco injusta a crítica de que o Estado não pegou o cartel das empreiteiras, o Estado pegou assim que teve à sua disposição um instrumento para fazer isso e depois transformou isso numa coisa gigantesca. Não vejo a Lava Jato como história de fracasso, vejo a Lava Jato como história de sucesso. Agora, sem dúvida isso mostra que a gente precisa ter mais instrumentos de investigação e precisa crescer.

A gente conhece até agora 7 acordos de Leniência em processos da Lava-Jato [dois dias depois da entrevista, a SG divulgou o oitavo acordo]. O que pode dizer sobre o que mais vem por aí relacionado com a operação?

Já disse publicamente no passado e não tenho problema em repetir que a gente tem várias investigações envolvendo desdobramentos da Lava-Jato que ainda não foram publicizadas aqui no Cade. A tendência é que várias delas resultem em novos casos. Pode ser que nem todas o façam, mas a tendência é que várias delas façam. A meu ver vem mais coisa por aí. Claro que não posso entrar em detalhes do que vem e do que não vem. Acho que é natural se imaginar, e isso faz sentido, que coisas que o Ministério Público está investigando também sejam investigadas aqui no Cade. Então tem muita coisa que já saiu e o próprio ministério público já falou e a gente está antenado nisso e investigando as mesmas coisas. Então é isso, acho que tem coisa, não posso entrar em detalhe, mas acho que tem coisa por vir. Ainda não acabou.

Nesse crescimento de 500% no número de markers para fazer acordo de leniência, o quanto é a influência da Lava Jato?

Uma parte razoável. Seria injusto dizer que todo esse crescimento é devido à Lava Jato. Não é. Tem várias leniências saindo que não tem nada a ver com a Lava Jato. Mas nesse número tão expressivo assim, a gente tem de reconhecer que nesses últimos anos uma parte razoável é devida à Lava Jato.

Como é a relação da SG com a Força Tarefa? 

Excelente, não poderia ser  melhor e ela foi crescendo ao longo do tempo. A gente começou com a Força Tarefa em Curitiba. Tivemos vários casos com ela e continuamos com essa interação. Foi muito positivo a gente ver que na medida em que a Lava-Jato foi se espalhando pro Rio de Janeiro, para outros Estados a gente foi também fazendo contato com essas outras Forças Tarefas. Em nenhum lugar encontramos algum foco de resistência ou problema. A gente estabeleceu relações excelentes com todos eles. Hoje, os dois principais seriam Curitiba e Rio de Janeiro, mas há outros também. Com todos a gente tem mantido relações excelentes. Conseguimos estabelecer uma relação de confiança muito rápido. A meu ver a gente tem ajudado eles, especialmente na parte de carteis que é nossa expertise. Alimentando as forças tarefa da Lava-Jato com subsídios e informações importantes a esse respeito, e o contrário também. A gente tem de reconhecer que o nascimento da Lava Jato e seu desenvolvimento, no que concerne ao Cade foi iniciada por ações da polícia e do Ministério Público e continua sendo alimentada por isso.

Essa boa relação ocorre inclusive com compartilhamento de provas?

Inclusive no compartilhamento de provas. No que diz respeito ao compartilhamento de provas, em todos os locais que há ações do Ministerio Público, o próprio MP pediu o compartilhamento de provas ao juízo e isso foi deferido. É essencial para as investigações. De fato, foi um legado que acho que vai ficar para o futuro, muito positivo da Lava Jato: essa extensão das relações entre o Cade com os Ministérios Públicos espalhados pelo Brasil.

No caso da Lava Jato vocês têm tanto investigações ex-officio que nasceram desse intercâmbio, quanto pedidos de leniência de empresas que viram que a operação poderia chegar a elas e procuraram o Cade. 

Exatamente. você vê que talvez a feição mais óbvia disso seja o fato dessas Forças Tarefa assinando nossos acordos de leniência junto da gente, sem maiores dificuldades. Poderia ser uma relação altamente conflituosa, mas não é. Isso quando a gente tem um caso a gente manda para eles, manda o histórico da conduta, eles veem e acham ótimo, assinam junto e usam isso no caso deles.

Como que fica a questão de sigilo/publicidade dos acordos? É uma prática defendida publicamente tanto pela Força Tarefa, quando pela PF, quanto pelo juiz de primeira instancia da Lava Jato, a divulgação da investigação, de busca e apreensão, entrevista coletiva, divulgação da integra de depoimentos, relatórios… Isso faz parte do combate à corrupção. No Cade, salvo engano, a gente não conseguiu ver na imprensa nenhum dos acordos de leniência antes de sua homologação pelo plenário em sessão pública de julgamento. Como é equilibrar essa coisa que pro antitruste precisa constar alguns dados um pouco mais refinados para investigar cartel do que pra investigar corrupção?

Não só nos casos da Lava Jato, mas em qualquer caso você tem de se adaptar as necessidades concretas daquele caso. Sem dúvida vários casos da Lava Jato tiveram um requisito de publicização maior que outros casos, muito em razão da atuação do Ministério Público, porque a gente está interagindo com uma esfera criminal de que aquilo precisa ser publicamente juntado aos autos criminais em algum momento, e etc. Então, você vê por exemplo que tiveram vários casos da Lava Jato que, ao contrário do que a gente costuma fazer aqui no Cade, a gente divulgou o acordo de leniência logo em seguida. Por que a gente faz isso? Já sabendo que o MPF precisaria publicizar aquilo na ação penal em breve. Então a gente se adaptou à necessidade daquele caso. Qual a importância disso? A partir do momento que você tem uma parte colaborando com você, ela também participa daquela decisão. Então a gente faz isso com a parte, a parte assina o acordo de leniência sabendo que aquilo pode ser publicizado naquele momento. Isso acontece com o aval da empresa. Então é importante dizer que a publicização que ocorre não é uma bola nas costas da empresa, isso é feito com a anuência e com a empresa sabendo.

Faz parte da negociação do acordo o momento de divulgar…

Exatamente. Isso é a parte que a imprensa vê, mas tem a parte contrária que a imprensa não vê. Casos que a gente tem e não são divulgados.

Inclusive da Lava Jato? 

Inclusive da Lava Jato. Porque, por exemplo, ainda vão ser necessárias diligências do Ministério Público etc e tal, e o Cade já está sabendo. A gente mantém aquilo em sigilo. Da nossa parte, já poderíamos estar publicando e não fazemos isso pensando que o MP quer fazer uma diligência. Então,  resumindo, depende do caso, é necessário ter uma interação com os órgãos de investigação para ver as necessidades de investigação do caso concreto e ter esse respeito mútuo para ver para onde vai esse caso de investigação.

Ou seja, só para pontuar isso, tem casos que o MPF já fez busca e apreensão, a gente vê no noticiário, estão investigando um cartel, então é razoável que o Cade também esteja….

A gente assina leniência e não faz sentido manter sigilo, muito pelo contrário. O Ministério Público precisa que seja público porque vai pegar o histórico da conduta e juntar na ação penal…

Mas também existem cartéis da Lava Jato que ainda não vieram a público e que vocês estão investigando…

Exato.

 

Vocês já fizeram e sofreram busca e apreensão de documentos na Lava Jato, depois do acordo de delação de Joesley Batista. Como foi isso? 

Recebemos com espírito de total colaboração.. “me diz o que vocês precisam que nós queremos colaborar”. É o espírito que continua, que continuaremos colaborando. Um espírito de nós sermos os principais interessados de que isso seja dirimido o quanto antes. A gente que conhece o caso aqui desde o início, sabe muito bem que não houve nenhum tipo de malfeito aqui no Cade. A gente acha que é uma questão de tempo até as autoridades estarem convencidas do mesmo. A gente entende a necessidade de isso ser investigado até o fim e a gente vai colaborar para que se chegue a essa conclusão o quanto antes.

O que fará Eduardo Frade depois do dia 16 de julho?

Durante a provável quarentena devo me dedicar a atividades academicas, estudar um pouco, parar, refletir sobre algumas coisas e depois não sei ainda. Quis ter o cuidado de não ter nada concreto durante o curso do meu mandato, não ter conversas com agentes privados a este respeito. Mas realmente não sei, não está nem definido se vai ser serviço público ou setor privado.

Sairá do antitruste?

Espero que não. Claro que já fiz outras coisas no passado, não teria problema em fazer. Mas gosto muito da área, me especializei.

O que deixa de conselho para seu sucessor?

É impressionante ver que o conselho é semelhante ao de todo mundo que passa aqui. No final sinto que o principal de todas as tarefas de um superintendente é dar condições para as pessoas trabalhar. Reconhecer que tem uma equipe altamente capaz, de pessoas que ao fim de seu mandato continuarão aqui, e a principal coisa que se pode fazer é dar condições para elas trabalharem. O Cade são essas pessoas. O superintendente está aqui para lidera-las, para incentivar, pensar em novas políticas etc, mas a principal coisa que se pode fazer é isso. Deixar as pessoas terem condições de trabalhar.