Vinte e seis anos após a entrada em vigor da Lei de Improbidade Administrativa, a Comissão de Direito Administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil – Conselho Federal avaliou a jurisprudência que se formou ao longo desse tempo e formulou proposta de alteração do texto.
O grupo de trabalho foi coordenado pelo Professor Márcio Cammarosano, com a colaboração dos professores Flávio Henrique Unes Pereira, Flavio Jaime de Moraes, Mariana Borges Frizzera Paiva Lyrio, Juscimar Pinto Ribeiro e Paulo Nicholas de Freitas Nunes.
Este ensaio visa compartilhar os principais pontos da proposta apresentada pela Comissão de modo a contribuir para o debate em torno do tema. Os artigos referidos são todos do texto vigente da Lei n. 8.429/92.
DA CARACTERIZAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA
Quando da promulgação da Lei 8.429/92, a tipificação de modalidades culposas não foi objeto de maiores questionamentos. Entretanto, hoje se percebe o caráter desastroso — jurídica e economicamente falando — de se punir agentes públicos com a alcunha de “ímprobos” por condutas meramente culposas, ainda mais em virtude da interpretação completamente elástica dada pela jurisprudência ao conceito de “culpa” (lato sensu), algo que pode ser equiparado a um “crime de exegese”, o qual, consoante as palavras do Ministro Luiz Fux, não é punível no direito brasileiro (STF, Inq. 2.482, Tribunal Pleno, Dje 17.2.2012).
Com efeito, se a finalidade do mandamento constitucional é de punir atos ímprobos com severas sanções, não faz sentido tipificar dessa maneira condutas meramente culposas. Obviamente, um agir negligente, imprudente ou de imperícia pode causar danos materiais ao Estado, mas tal situação deve ser resolvida no plano civil do ressarcimento — ou, mediante atuação dos Tribunais de Contas, no Controle Externo da atividade estatal, ou, ainda, na esfera administrativa/disciplinar — mas não no âmbito de ação judicial que pode acarretar até mesmo a perda da função pública e a suspensão do status civitatis. Por conta disso, necessária é a inserção de dispositivos a fim de esclarecer que constituem atos de improbidade as condutas dolosas que violem os bens jurídicos protegidos pela norma.
Nesse cenário, necessário ainda definir o conteúdo do elemento subjetivo “dolo”, a fim de excluir a absurda interpretação que o equipara à mera voluntariedade do agente. Afinal, “não é da voluntariedade de todo e qualquer comportamento ofensivo ao direito que se pode inferir, ipso facto, que a violação ao direito foi intencional, dolosa. Pode haver sido por erro e, portanto, culposa apenas”[1].
A referência feita pela Jurisprudência, por sua vez, ao “dolo genérico”, não pode servir para mitigar o dever de motivação da decisão judicial quanto a existência do dolo, propriamente dito. Em outras palavras, a “adoção da teoria de que para configuração de improbidade administrativa bastaria o dolo genérico, isto é, a prescindibilidade de um fim especificamente objetivado com a violação intencional da norma jurídica, não autoriza considerar que basta então a voluntariedade do comportamento para que se configure ofensa dolosa da ordem jurídica. Tem-se aí aplicação errônea do conceito de dolo genérico, quando não erro de conceituação mesmo de dolo genérico”[2].
A título ilustrativo, merece registro entendimento firmado no AgRg no AREsp nº 739.68/SP (Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 29.10.2012) que manteve condenação por ato de improbidade de uma médica que emitiu atestado em seu próprio favor. O laudo médico atestou que a servidora está apta a tomar posse em cargo público, o que foi confirmado por outro laudo de outro médico. O STJ entendeu que restou caracterizado o ato de improbidade, embora o Ministro Napoleão Nunes Maia tenha alertado (e ficou vencido) que “a conduta da servidora não tem a relevância infracional que se lhe atribuiu, porquanto, em primeiro lugar, esse laudo médico não está imputado de falsidade, até porque (a) não serviu para a finalidade pretendida e (b) foi lastreado em laudo de outro médico, este sim, o prestante para a posse da recorrente no cargo”. Esse caso, revela, a nosso ver, típico julgamento que desprestigia o contexto e a conduta do agente em favor de exame focado apenas no resultado (ato ilícito).
Daí a importância de se introduzir artigo de forma a constar a possibilidade de ação de improbidade apenas para os atos ímprobos dolosos, diferenciando-se a prática dolosa da mera voluntariedade. Igualmente relevante a inserção de dispositivo para eximir de punição a conduta do agente que atua com base em interpretação razoável do marco legal em vigor. Nesse sentido, prevê-se que se o agente atuar com base em interpretação razoável da lei — ainda que posteriormente não venha a ser considerada a melhor — não poderá ser tachado com a pecha de ímprobo.
O tema sobre o elemento subjetivo na ação de improbidade foi, inclusive, objeto de discussão na 28ª Reunião Ordinária da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da 3ª Sessão Legislativa Ordinária da 55ª Legislatura. Conforme destacado pela I. Procuradora Geral Dra. Raquel Dodge, a Lei 8.429/92 possui exatamente um caráter inibitório imposta aos gestores “que, por temer tanto a incidência dessa lei, acaba não exercendo bem a sua função de gestor, de tanta prevenção que se impõe”. Destaca, ainda, que a norma debatida é “justamente um ponto que é necessário aprimorar. (…) a expectativa de aplicação desse artigo era de que nessa imputação houvesse apropriação do conceito de culpa que empregamos no Direito Penal, mas o que mais tem sido aplicada é a culpa civil, que pune a imperícia. Nessa perspectiva, parece-me que pode vir em socorro de maior clareza”.
DA CORREÇÃO DE ELEMENTOS DAS DEFINIÇÕES TÍPICAS
Já em relação aos dispositivos legais que visam tipificar as condutas a serem penalizadas, necessária é a correção de alguns elementos. No art. 10 da referida norma, deve-se buscar definição mais precisa e, portanto, mais segura dos tipos que tratam do prejuízo ao erário em procedimentos licitatórios ou de conservação do patrimônio público. Explicita-se, assim, o elemento normativo do tipo (“indevidamente”), na busca de por fim a grave celeuma hermenêutica acerca do assunto.
Demais disso, ainda para evitar abusos interpretativos, o rol do art. 11 (violação a princípios administrativos) deve ser taxativo. Isso porque é inegável que a cláusula de abertura tem levado à instauração de processos arbitrários, já que qualquer pretensa violação a princípios pode, em tese, ser enquadrada como ato de improbidade do art. 11.
A propósito do princípio da moralidade, por exemplo, o ex-Ministro Eros Grau, no julgamento da ADPF nº 144[3], afirmou que o fato de o texto da Constituição ter consagrado o princípio da moralidade não implica que tenha conferido uma abertura para a introdução, no sistema jurídico, de preceitos morais. O ex-Ministro basicamente defendeu que os casos nos quais o princípio da moralidade deveria ser utilizado como razão de decidir deveriam ser limitados aos que discutem a ocorrência de desvio de poder ou de finalidade.
Para Flavio Jardim e Flávio Unes, “diante da nebulosidade e da falta de critérios racionais da jurisprudência pós-Constituição Federal/1988 quanto ao real significado do princípio da moralidade administrativa, o efeito de dissuasão pode se ampliar para inibir os servidores públicos, diante de uma dúvida razoável e do temor de punição, de praticarem atos que poderiam promover ganhos sociais, por receio de violar o princípio da moralidade administrativa. Tal falta de ação acaba por gerar prejuízos a toda a coletividade, incrementando, especialmente, a burocracia estatal” (Flavio Jaime de Moraes Jardim & Flávio Henrique Unes Pereira, Direito claramente determinado: a necessária evolução da aplicação do princípio da moralidade nos processos sancionadores).
Exatamente por isso, a ideia ora apresentada busca por termo a interpretações equivocadas de modo a estancar o desestímulo ao gestor que pretende, com criatividade e altivez, enfrentar os sérios desafios da Administração Pública no seu dia a dia, sem que haja qualquer desvio de finalidade ou má-fé em suas decisões.
Quanto à aplicação das sanções, deve-se ter a correção do absurdo e da desproporção constante do inciso III do art. 12, que permite a aplicação de multa de até cem vezes a remuneração do agente. Importante, inclusive, adequar a legislação ao entendimento jurisprudencial dominante, da qual é ilustrativo o julgado proferido pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.376.481/RN (Relator Ministro Mauro Campbell Marques).
DA ADEQUAÇÃO DA MEDIDA CAUTELAR DE INDISPONIBILIDADE DE BENS E SUPRESSÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE: TRANSMISSÃO DA MULTA A SUCESSORES
Em relação à medida cautelar de indisponibilidade de bens (art. 7º da Lei 8.429/92), também é necessário dar tratamento jurídico mais consentâneo com os direitos fundamentais, ainda de forma a coibir abusos verificados em diversas ações. Dessa maneira, deve-se estabelecer ordem de preferência dos bens para fins de decretação de indisponibilidade, positivando aqui a sábia jurisprudência de vários Tribunais Regionais Federais e concretizando o princípio constitucional da proporcionalidade, em sua vertente de proibição do excesso.
Imprescindível, ainda, vedar a decretação indiscriminada de indisponibilidade de bens de forma solidária. Assim, quando houver mais de um acusado por atos de improbidade, a cautelar deverá atingir cada um deles na medida de suas possíveis participações, respeitadas as limitações inerentes a juízo de cognição sumária, evitando-se o bloqueio de bens em valor muito maior do que aquele que deveria ser devidamente acautelado.
No art. 8º da Lei 8.429/92, por sua vez, deve-se corrigir a flagrante inconstitucionalidade da redação atual da Lei de Improbidade, que, em afronta clara ao inciso XLV do art. 5º da Constituição Federal (CF), permite que uma pena — multa civil, por exemplo — passe da pessoa do condenado, para atingir os herdeiros e sucessores. Apenas a obrigação de reparar o dano poderia ser transmitida, em respeito ao citado dispositivo do art. 5º da CF — no limite do valor do patrimônio transferido. Nesse sentido, aliás, posiciona-se a doutrina específica (Daniel Amorim Assumpção Neves et al, Manual de Improbidade Administrativa. São Paulo: Método, 2017, p. 236; e Marino Pazzaglini Filho, Lei de Improbidade Administrativa Comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 146).
DAS ADEQUAÇÕES PROCESSUAIS E EQUALIZAÇÃO DAS REGRAS DE PRESCRIÇÃO
Do ponto de vista processual, algumas das novidades dizem respeito à aproximação do sistema de cautelares com o do processo penal (como na aplicação das regras do Código de Processo Penal ao sequestro) e à adaptação das regras de procedimento ao novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015), inclusive quando à intensificação e densificação do dever constitucional de motivação das decisões, sob pena de nulidade.
No § 3º do art. 17, apenas se explicita regra em vigor, mas que remetia à Lei de Ação Popular. Deve-se exigir, ainda, que a inicial da ação de improbidade já contenha as provas ou indícios da prática do ato ímprobo, inclusive sob pena de litigância de má-fé, nos termos dos art. 79 a 81 do Código de Processo Civil, com a necessidade também de que a petição já traga a exposição do ato de improbidade com todas as suas circunstâncias, a descrição da conduta imputada ao agente e a específica pretensão sancionatória, observado sempre o princípio da proporcionalidade. Na esteira do que se faz em relação à indisponibilidade dos bens, fundamental a fundamentação concreta e suficiente da decisão judicial que determinar o início do processo, inclusive com a positivação de causas de absolvição sumária, quando o juiz perceber inequivocamente a inexistência de justa causa para o prosseguimento da ação, por exemplo.
Crucial, também, ampliar-se a legitimidade ativa para ajuizamento da ação, incluindo-se as entidades da Administração Indireta e os Conselhos Federal e Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil. Atualmente a lei faz referência apenas à “pessoa jurídica interessada”, o que gera dúvidas quanto à legitimidade das entidades da Administração Indireta, por essa razão, o texto proposto corrige isso. A advocacia é função essencial à Justiça e possui legitimidade para a proteção do interesse público por meio de ações constitucionais, ação civil pública e demais ações coletivas. Nada mais justo do que prever que a Instituição, por meio de seus órgãos de cúpula, possa também atuar na proteção em face de atos ímprobos.
Deve-se extirpar, ainda, a aplicação de institutos do direito processual civil incompatíveis com o direito sancionador tais como o julgamento antecipado da lide — prática que já era fortemente criticada pela doutrina especializada (cf. Henrique Savonitti Miranda, Improbidade Administrativa. Brasília: Alumnus, 2012, p. 115), inclusive por violar o princípio da presunção de inocência, que tem inegável incidência também nas ações de improbidade, dada a sua natureza de, nas palavras do Ministro Mauro Campbell, norma punitiva, de conotações penais (Conforme voto-vista proferido no julgamento do REsp 951.389/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/06/2010, DJe 04/05/2011).
Demais disso, imprescindível que, no caso de concurso de agentes, todos os responsáveis integrem o polo passivo da ação, evitando-se a hoje infelizmente comum utilização do rito de improbidade como forma de “seleção” de alguns agentes para que respondam por determinados fatos, em detrimento de outros corresponsáveis, assim como vigora o saudável princípio da indivisibilidade da ação penal pública, na linha de precedentes do STJ (cf. REsp 513.576/MG, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ 6.3.2006).
Finalmente, deve-se adequar a regra de prescrição para unificar o prazo em cinco anos, quando não se tratar de agente titular de mandato eletivo, e para evitar o maldoso uso de ações de protesto civil como forma de impedir a prescrição (cf. André Jackson de Holanda Júnior e Ronny Charles L de Torres, Obra citada, p. 713). Da mesma forma, assentar-se que a ação de restituição, que é imprescritível, deverá estar lastreada em título condenatório oriundo de órgão de controle ou judicial, formado a partir de processo instaurado dentro do prazo prescricional.
Por fim, positivar-se a regra segundo a qual, em caso de concurso de agentes, a prescrição deve correr isoladamente para cada um dos réus, resolvendo problemas de ordem legislativa já apontados pela melhor doutrina (cf. José dos Santos Carvalho Filho, Improbidade Administrativa: prescrição e outros prazos extintivos. São Paulo: Atlas, 2016, pp. 95 e seguintes).
Diante de tais considerações, segue proposta de Projeto de Lei, objetivando, exatamente, a alteração e atualização do texto legal da Lei de Improbidade Administrativa para ser debatida pela Academia, Congresso Nacional, Ministério Público, Judiciário, bem como os representantes da Sociedade Civil.
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[1] Flávio Henrique Unes Pereira e Márcio Cammarosano, Obra citada. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo: ReDAC, v. 2, n. 5, p. 137-149, fev. 2014
[2] Id. Ibid
[3] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=608506 (pag. 228)
- E certo, como anotei em outra oportunidade, que a Constituição do Brasil define a moralidade como um dos princípios da Administração. Não a podemos, contudo, tomar de modo a colocar em risco a substância do sistema de Direito. O fato de o princípio da moralidade ter sido consagrado no art. 37 da Constituição não significa abertura do sistema jurídico para introdução, nele, de preceitos morais.
- Daí que o conteúdo desse princípio há de ser encontrado no interior do próprio Direito. A sua contemplação não pode conduzir à substituição da ética da legalidade por qualquer outra. O exercício da judicatura está fundado no direito positivo, a eticidade de Hegel. Cada litígio há de ser solucionado de acordo com os critérios do direito positivo, que não substituir quaisquer outros. A solução de cada problema judicial estará necessariamente fundada na encidade (- ética da legalidade), mas não na moralidade. (…)