Boni De Moraes Soares

Fernando Filgueiras de Araujo

Em 2006 a empresa Newfield Brasil Ltda. requereu a instauração de arbitragem por supostos danos sofridos durante a execução de contrato de concessão para a exploração e produção de petróleo e gás natural em campo situado no Brasil, celebrado em 2002. Mesmo diante de evidências concretas da existência de recursos minerais na região, a empresa não pode explorá-la em razão do indeferimento da licença ambiental correspondente. A concessionária entendia então que era obrigação do Estado reparar os lucros não auferidos com a operação.
A arbitragem se baseou em cláusula arbitral presente no contrato de concessão e foi julgada conforme o direito brasileiro. A sentença ficou a cargo de tribunal composto por três árbitros brasileiros, mediante procedimento em português, com sede no Rio de Janeiro e sob a administração da Câmara de Comércio Internacional. Ao fim de 2008, o tribunal julgou improcedente o pedido, por entender que o indeferimento da licença ambiental era uma ocorrência de força maior não imputável a nenhuma das partes.
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Longe dali, em 2012, a empresa Lundin Tunisia B.V. iniciou arbitragem alegando descumprimento de contrato de concessão pública para a pesquisa e exploração de outro campo de petróleo. Não no Brasil; mas na Tunísia. Exercendo direito de encampação previsto no contrato, o governo daquele país havia readquirido o controle de parte da área concedida e transferido os direitos de exploração a uma empresa estatal, a quem incumbia pagar uma indenização justa à concessionária. A estatal, contudo, seguiu inadimplente.
A sentença foi lavrada em dezembro de 2015 por dois árbitros franceses e um marroquino, após procedimento em francês sob a gestão do Centro Internacional de Resolução de Disputas de Investimento (CIRDI ou ICSID, em inglês), situado em Nova Iorque. O tribunal condenou o Estado a ressarcir os danos materiais sofridos pela concessionária.
Como se percebe, os casos apresentam diferenças, mas as semelhanças são evidentes. Ambos representam disputas relativas a investimentos privados e no mesmo setor econômico. Ambos opuseram um ente privado e outro público. Ambos se fundaram em cláusula arbitral estipulada em contrato de concessão pública. Ambos foram decididos por tribunais com três árbitros, sendo dois deles escolhidos separadamente por cada parte e o terceiro de modo imparcial.
Apesar de tanta semelhança, a construção da arbitragem com entes públicos no Brasil tem negligenciado grande parte da experiência internacional com a arbitragem entre investidores e entes públicos, como o caso Lundin. Juristas brasileiros costumam reproduzir o discurso de que o Brasil não adota o mecanismo conhecido como arbitragem investidor-Estado (instrumento também conhecido como investor-State dispute settlement, ou ISDS, em inglês), amplamente utilizado em outros países. “Não nos interessa o que acontece no CIRDI”, é a mensagem que se transmite.
Mas a que se deve essa narrativa? E que prejuízos ela pode trazer para a construção do modelo brasileiro?
Ao nosso ver a razão é sobretudo histórica.
<blockquote class="jota-article__eye">A trajetória internacional da arbitragem investidor-Estado revela três grandes gerações: a das arbitragens contratuais ad hoc, a das arbitragens contratuais institucionais e as arbitragens de tratados.</blockquote>
A primeira geração de arbitragens investidor-Estado consistiu em arbitragens contratuais ad hoc. O início do século XX marcou a forte expansão internacional de empresas anglo-americanas em países em desenvolvimento, no Oriente Médio, Ásia e América Latina, especialmente em concessões públicas de infraestrutura e exploração de petróleo, gás e outros recursos naturais.
A arbitragem contratual surgia como resposta ao temor de interferência estatal em órgãos judiciais locais que viessem a julgar disputas sobre contratos de longo prazo com governos em clara instabilidade política. Daí que a ideia de escolher ao menos um de três juízes e ver o processo fora dos tribunais atraia os olhares de advogados e empresários. São exemplos dessa época o pioneiro caso Lena Goldfields Ltd., de 1930, e os diversos casos decorrentes da nacionalização petrolífera na Líbia, nos anos 1950 e 1960.<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O cenário da arbitragem investidor-Estado, contudo, ainda era exceção. Governos dos países importadores de capital resistiam à adoção do instrumento e a crescente regulação econômica preocupava os interesses privados. Assim é que empresários, banqueiros e escritórios de advocacia formaram uma coalisão para proteger a atuação empresarial da interferência estatal.<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Era preciso uma grande operação internacional para estabelecer as bases institucionais da arbitragem e só um outro tipo de instrumento teria esse poder: os tratados.
O Banco Mundial logo propôs um modelo baseado no consentimento contratual dos Estados. O objetivo era difundir a arbitragem de contratos de investimento, agora não mais de maneira ad hoc, mas sob a gestão de uma grande instituição, situada em local insuspeito: Nova Iorque. Assim é que, em 1965, celebrou-se a aprovação da Convenção de Washington, a chamada Convenção do CIRDI. Nascia a segunda geração do ISDS: a arbitragem contratual institucional.<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Essa seria a realidade do regime desde o caso Holliday Innsv. Marrocos (1972), que inaugurou a atuação do CIRDI, até a chegada dos anos 1990. Todos os casos nesse período tinham como base o consentimento das partes em contrato.<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Os empreendedores globais do investimento privado, contudo, estavam insatisfeitos. Era preciso garantir a adoção da arbitragem em normas gerais e abstratas, longe das circunstâncias que orientam a celebração de cada contrato específico. Embora alguns países já adotassem leis domésticas de proteção do investimento, somente a persuasão diplomática de seus países de origem traria ganhos em larga escala. Assim é que surge o ISDS em tratados bilaterais de investimento (TBI’s ou BIT’s, em inglês), instrumento que já deu origem a mais de 1.000 arbitragens. Eis a terceira geração da arbitragem investidor-Estado.
E no Brasil, como essa história transcorreu?
Depois de não aderir à Convenção do CIRDI e não ratificar nenhum tratado com ISDS até os anos 1990, o Brasil assistiu à adoção gradual de arbitragens investidor-Estado em contratos públicos. Já no fim daquela década o Congresso Nacional aprovou novos marcos legais para a concessão de exploração de serviços de telecomunicação (Lei nº 9.472/97) e exploração de óleo e gás (Lei nº 9.478/97). Nos anos seguintes vieram leis que ampliavam a possibilidade de adoção da arbitragem para contratos de concessão de infraestrutura de transportes terrestre e aquaviário (Lei nº 10.233/2001) e, adiante, parcerias público-privadas (Lei nº 11.079/2004) e concessões de um modo geral (Lei nº 11.196/2005).
Em 2012 o Brasil retomou a negociação de tratados de investimento. 15 tratados já foram celebrados e dois destes já estão em vigor. Em nenhum deles se institui o ISDS. Há, finalmente, instrumentos multilaterais que interessam ao investimento estrangeiro no Brasil, como o Acordo GATS da OMC e a Convenção que Estabelece a Agência Multilateral de Garantia para Investimentos (MIGA), mas eles tampouco permitem ao investidor iniciar arbitragem contra o Brasil ou um de seus entes estatais.
Mas como essa trajetória resulta em arbitragens na prática? Estudos empíricos recentes trazem dados quantitativos. Embora não diferenciem arbitragens de investimento daquelas de cunho meramente comercial (sobre o fornecimento de bens, por exemplo), eles sugerem que todas as arbitragens envolvendo investidores privados e entes estatais brasileiros foram ou estão sendo geridas por instituições arbitrais situadas no Brasil.<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Esse quadro revela, portanto, que o modelo brasileiro tem sido construído a partir de uma trajetória bastante peculiar. E sendo esta ou não a causa, a negligência com a experiência internacional no CIRDI para a construção do modelo brasileiro pode nos causar sérios prejuízos.
O regime de ISDS está em crise. A experiência de décadas de desenvolvimento da arbitragem investidor-Estado trouxe fortes reações contrárias de governos, comunidades locais afetadas pelos investimentos privados, organizações não-governamentais e pesquisadores. Tudo isso culminou com a inauguração de diversas iniciativas de reforma do mecanismo, sendo a mais notável certamente a que tem curso perante a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL, em inglês).<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Entre as causas da crise pode-se apontar preocupações com a forte assimetria do mecanismo (apenas investidores ingressam com arbitragens, não os entes estatais); inconsistência do regime (casos semelhantes são julgados de modos completamente distintos); expansão de terceiros financiadores dos litígios; limites éticos à atuação dos árbitros; e os custos exorbitantes com despesas e indenizações a investidores. Todas elas incidentes tanto na experiência internacional quanto no modelo brasileiro.
O Brasil tem participado do processo negociador no UNCITRAL. Por aqui, contudo, pouco se percebe as relações do momento internacional com a experiência brasileira. Problemas causadores da crise global do mecanismo se reproduzem aqui no Brasil? O que podemos aprender com a experiência internacional para desenvolver nosso regime? Em que medida a possível reforma global do mecanismo pode impactar o peculiar modelo brasileiro?
As peculiaridades do regime brasileiro de arbitragem investidor-Estado têm atuado como uma cortina de fumaça, impedindo a construção de um modelo informado pela experiência internacional. Cabe-nos descortinar essa realidade.
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<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> COSTA, José Augusto F. Direito internacional do investimento estrangeiro. Curitiba: Juruá, 2010, p. 183.
<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> PERRONE, Nicolás M.  Investment Treaties and the Legal Imagination: How Foreign Investors Play By Their Own Rules. Oxford University Press, 2021. Confira-se o recente simpósio da International Law Association (Brasil) sobre o livro. Disponível em: https://ilabrasilblog.wixsite.com/blog/post/book-symposium-a-reaction-from-nicol%C3%A1s-perrone. Acesso em: 28 abr. 2021.
<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Esclareça-se que esse recorte tem fins meramente didáticos; ele não representa uma divisão temporal absoluta. Cite, por exemplo, que ao menos desde 1934, com o caso Radio Corporation of America v. China, a Corte Permanente de arbitragem já administrava casos entre investidores e Estados baseados em contrato. Bem antes, portanto, do surgimento do CIRDI. Disponível em: https://pca-cpa.org/en/cases/16/. Acesso em: abr. 28, 2021.
<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> DOLZER, Rudolf; Schreuer, Christoph. Principles of International Investment Law. Oxford University Press, 2008, pp. 8-9.
<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> CF: SCHMIDT, Gustavo da Rocha. A arbitragem nos conflitos envolvendo a administração pública: uma proposta de regulamentação (Dissertação de Mestrado). Fundação Getúlio Vargas, 2016, p. 28-30; CENTRO de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA). Anuário da arbitragem no Brasil, 2017, p. 9.
<a href="applewebdata://49E4DB0E-9233-4658-AFD4-530D674FB9E4#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> UNCITRAL, Working Group III: Investor-State Dispute Settlement Reform. Disponível em: https://uncitral.un.org/en/working_groups/3/investor-state. Acesso em: 28 abr. 2021.

solução de conflito

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JOTA

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A cortina de fumaça em meio à arbitragem investidor-Estado no Brasil

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