Pedro Gordilho

Ao longo da visita de Ruth Reichl à Provença, durante um mês de agosto, ela garante ter investigado, avaliado, resumido e descartado toda uma região da França. Seu depoimento foi publicado pelo New York Times no dia 22 de abril de 1998. Ela declara que viveu um inferno gastronômico. Os alimentos eram sem graça. A carne e os legumes eram um desastre. Os queijos eram industrializados. O pão vinha embrulhado em plástico. E, horror dos horrores, a oferta de vinhos rosé, sozinha, ocupava mais espaço do que todos os cereais, biscoitos e bolachas no seu mercado D’Agostino, nos Estados Unidos. Imagine-se: mais vinho rosé do que biscoitos!
Será que o artigo publicado num periódico tão respeitado pode ser levado a sério? Sua autora não é um turista comum. Dedicou sua vida profissional à descoberta da boa culinária. Ela é uma pessoa relacionada nos círculos gastronômicos e jornalísticos. Certamente tem amigos ou colegas de profissão, na França, que lhe poderiam ter esclarecido que na Provença, como em qualquer outro lugar do mundo, é preciso saber onde ir, onde estão os endereços. E mais: não chegaram às mãos dessa destruidora de sonhos os livros de Patrícia Wells, sua colega de profissão, uma escritora de culinária que tem um conhecimento intimo e bem informado da Provença? O Guia Michelin? O Guia Vert? O Rouge?
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Tamanha desinformação atinge sua culminância com a revelação mais extraordinária entre todas que se contêm no artigo. Diz ela, com todas as letras: “Eu estava sonhando com uma Provença que nunca existiu.” A conclusão fulminante atingiu a todos que se deixaram tocar pela beleza vinda dos valores ali cultivados, pela gente especial que habita aquela região com tanta marca de especialidade. E mereceu um contencioso veemente do cronista oficial da região, o britânico Peter Mayle. Ele indaga: onde é que eu tinha passado todos aqueles anos? E o que dizer daqueles outros escritores completamente “equivocados”, que fizeram da Provença o centro de gravidade de seus sonhos? A Provença que Daudet, Giono, Ford Madox Ford, Lawrence Durrel e M.F.K. Fisher conheceram – e sobre a qual escreveram – não existiria? Nunca teria existido? Não passaria de um ensolarado produto da nossa imaginação, um delírio?
Infelizmente a colunista do conceituado periódico novaiorquino se deixara dominar pelo ressentimento por alguma razão que não identifica.
Afinal, tudo que se avista e que se experimenta em toda aquela região do sudeste francês permanece gravado no universo das boas lembranças. Ela estava errada. Mentia.
Tome-se, da costa, Juan-Les-Pins. Seu nome é indissociável do Jazz. Do ponto, onde tem lugar o festival, não se exige mais do que um passo para encontrar a praia de areia fina, paradisíaca. Nesse ambiente febril, os anglo-saxônicos constituem sempre a maior parte: o filho da Rainha Vitória, americanos, ricos brancos ou negros músicos, fizeram o renome desta elegante estação balneária, entre o golfo Juan e o cabo D’Antibes.
O furor vem de longe. Um magnata, Frank Jay Goult, funda o primeiro cassino de verão e a juventude dourada passa as noites a dançar ao som de Cole Porter, em companhia de Douglas Fairbanks, Mary Pickford e Mistinguett. Sydney Bechet escolheu o local para celebrar seu casamento, em 1951. A partir de 1959 os grandes nomes do Jazz fazem aí seu ponto de irradiação. A vinda de Armstrong, Count Basie, Duke Ellington, Dizzy Gillespie e Miles Davis asseguram a consagração. Daí em diante o Jazz e Juan fundiram-se numa única instituição.
A breve permanência que o inexaurível Hemingway fez na região deixa marcas profundas em sua memória. É uma experiência que o abastece quarenta anos mais tarde, não somente com o fim de fazer evoluir os personagens do romance póstumo, O Jardim do Éden, entre Cannes e La Napoule, mas para se colocar uma vez mais diante das obsessões e das nostalgias que sugerem o episodio no qual ele se inspira, a saber, seu rompimento com sua primeira mulher, Hadley. É um tempo de grande exaltação hedonista e uma fonte permanente de culpabilidade.
Com Scott Fitzgerald a relação, ao mesmo tempo contraditória e ambígua, à face da grande disparidade entre as duas personalidades, resistirá ao afastamento. Mas Hemingway não terá nenhuma tolerância – aliás, com acerto – por Suave é a Noite e ainda menos pelo livro La Fêlure. O quadro que ele apresenta de Fitzgerald em Paris é uma Festa será cruel e sem indulgência.
Trinta quilômetros a noroeste conduzem a uma das regiões mais ricas, com seus cenários impecáveis, muita luz, boas mesas, e a produção rica de toda a região. Entre elas, além de Juan-Les-Pins e da capital do perfume, Grasse, também St.-Paul-De-Vence, Cagnes-Sur-Mer, Biot, Valbonne, Sophia Antipolis, Mougins, Gourdon. A maioria dessas cidades é como Cabris, uma cidade perché (no poleiro), no alto da montanha. A única cidade de desenho romano é Valbonne, vizinha de Sophie-Antipolis. Valbonne é um imenso vale verde. Monges fundaram uma abadia que, com o passar dos séculos, veio a transformar-se na bela cidadezinha. Dentro da comuna está a cidade de Sophia-Antipolis, chamada “A Florença do século XXI”. O nome da cidade vem de Sophia, a sabedoria, em grego, e Antipolis, de anticidade, em latim, por ser uma região imprópria para a construção de uma cidade. Antipolis é o antigo nome de Antibes. O espírito do Quartier Latin impera. Encontros, discussões, trocas de idéias, um ambiente multidisciplinar, juntando o saber e o saber fazer. Tem, hoje, mil e duzentas empresas instaladas com vinte e três mil trabalhadores, na área de alta tecnologia, de sessenta e uma nacionalidades diversas.
Mougins. A cidade é notada à distância. Num local extraordinário com predominância do verde, apresenta-se um cenário provençal e medieval que não mudou no curso do tempo, onde a pequena cidade era mais importante do que Cannes. Suas ruas estreitas com casas muito bem restauradas, abrigando inúmeras galerias de arte e ateliers, deixam marcas. O nome vem do preceltico mug, que significa pedra, “colina de pedras”. A cidade foi descoberta em 1935 por Pablo Picasso, outro inexaurível, que permaneceu lá com Dora Marr e Man Ray. Depois disso, as estrelas continuaram a se refugiar em Mougins, longe do stress de Cannes. A cidade é em espiral e uma das mais belas de toda a Provença. Lá está o fantástico Moulin de Mougins, restaurante do Vergé.
Biot (muita gente pronuncia Biô – logo confundido com indesejáveis parisienses –, mas a pronuncia correta é Bióte) é a cidade dos vidros e dos cristais. E é também a cidade do grande Fernand Léger (1881-1955). A velha cidade de Biot está no coração de um magnífico bouquê de flores: rosas, mimosas e anêmonas cultivadas para serem despachadas em arranjos florais. Depois da antiguidade, seus artesãos produzem as mais belas cerâmicas da França e, mais recentemente, o famoso vidro soprado. O museu Fernand Léger faz da minúscula cidade um centro de arte bastante reputado.
Número considerável de quadros permite acompanhar a evolução da pintura de Léger de 1905 até a sua morte. Por volta de 1942 o artista libera a cor e depois de 1945 as obras exprimem, em sua composição, a formação do arquiteto e, pelos assuntos dominantes, suas preocupações sociais. Sua obra mais significativa no estilo é Os Construtores, de 1950.
Cagnes-Sur-Mer foi construída numa paisagem de colinas, que cobrem oliveiras, ciprestes e culturas florais (rosas, mimosas). A cidade alta é a terra de eleição dos pintores, motivados pelo charme do local e a luminosidade da atmosfera. Em Haut-De-Cagnes está o Museu Renoir. Les Collettes, a casa onde o pintor e sua família moraram, foi transformada em museu. Móveis originais, objetos da família, o ateliê, pinturas e esculturas. A lembrança da casa e do jardim não deixa de vir ao coração sempre que o nome do grande mestre do impressionismo é pronunciado. Nascido em Limoges, em 1841, Pedro Augusto Renoir descobre, a partir 1882, através de informações de Cézanne, a luz da Provença e as paisagens mediterrâneas. Para tentar se livrar de reumatismos articulares ele compra Les Collettes, seduzido pela vista sobre o mar e sobre a pequena cidade. Ele continua pintando até sua morte, em 1919, depois de adquirir, na região, uma nova motivação para viver.
Vence. Seria o nome de Provence? Ou da divindade local romana Vintius? Ou de Vin-T, que indica uma altura em pré-céltico? Parece ser esta a mais plausível. É carregada de caracteres provençais, cercada de barrancos.
A Catedral (não podia faltar uma Catedral), construída no mesmo local onde antes existiram um templo consagrado a Marte, depois uma igreja Merovingea, surpreende pelas suas marcas heteróclitas: românica, gótica e barroca. O interior é composto de cinco naves e no batistério há um belo mosaico de Chagall, que representa Moisés.
Levados a um patamar máximo de paroxismo e de espanto, os habitantes de Gourdon olham a rainha Vitória descer de sua carruagem para admirar o panorama que se descortina atrás do abside de sua igreja: estamos em dezessete de abril de 1891. Hoje, essa praça foi batizada com o nome da soberana inglesa e inumeráveis visitantes repetem o que ela fez. É um local espetacular. Depois da estrada que liga Grasse a Gourdon, a cidadezinha, encostada na borda de uma vertiginosa falésia, vê-se recortada sob o céu azul. O castelo foi construído sobre o envasamento de uma impressionante fortaleza sarracena. Restaurado no século XVII, o prédio apresenta elementos de arquitetura sarracena, do século XIV toscano e, finalmente, da Renascença.
Em vinte e dois de dezembro de 1951 uma multidão alegre de curiosos e de fotógrafos se coloca diante de um casal famoso: Yves Montand e Simone Signoret, que acabavam de se casar na prefeitura de Saint-Paul (a Village onde eles se conheceram, em 1949) e se dirigem ao celebre auberge La Colombe d’Or para seu jantar de núpcias.
Ainda hoje personalidades do mundo do cinema, da literatura e da política passam temporadas regularmente no La Colombe d’Or. Desde dos anos vinte artistas como Renoir, Modigliani e Bonnard adoram vir a Saint-Paul-de-Vence. Com um pouco de imaginação é possível cruzar, em suas ruas, com Charlie Chaplin, Marlene Dietrich, Jean Cocteau, Jacques Prévert. Mais tarde, as deusas Elizabeth Taylor e Sophia Loren. E sempre pintores, como Matisse, sem esquecer Marc Chagall, que morreu em Saint-Paul em 1985 e descansa no cemitério do pé da muralha meridional. Que outra cidade pode se vangloriar de exercer um tal magnetismo?
É verdade que sua beleza, sua situação e seu clima ameno fizeram da cidade um símbolo da doçura de viver. É esta, aliás, a impressão que ela dá. Chegando-se pela estrada se avista a cidade serenamente instalada sobre uma paisagem de verdura, oferecendo ao sol brilhante suas belas proporções. De suas fortificações não se tem nada de belicoso, como se sua construção respondesse, antes de tudo, a belos critérios estéticos, jamais bélicos.
Na Rua Grande, que atravessa a cidade, as portas das casas do século XVI e XVII exibem brasões. De uma ponta a outra, em subida, com suas arcadas e loggias do passado, testemunhos da prosperidade dessa antiga cidade real. Hoje existem muitas galerias de arte e lojas de gosto refinado. A celebre fonte em forma de urna, emblema da cidade, oferece graça a uma minúscula pracinha.
Um pouco da Provença, um pouco da Côte d’Azur. Uma imagem banhada de sol, quebrada raramente quando o vento mistral castiga a região. O vento cortante forjou um povo tão forte e sonhador quanto as oliveiras milenares, mas pronto – com o testemunho dos muitos que para lá se dirigiram, estabelecendo na região o centro de seus interesses, de seus sonhos – para aproveitar o máximo da vida tão logo o sol volte a brilhar.
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<h3 class="western">Restaurantes que se recomendam</h3>
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<li>Juan-les-Pins. Juana, la Pinède, av. G.Gallice. Tel 0493 610 870 (<a href="mailto:info@hotel-juana.com">info@hotel-juana.com</a>). Cannelloni de supions et palourdes à l’encre de seiche. Mille feuille de fraises des bois à la créme. Vinhos: Bellet, Côtes de Provence.</li>
<li>Mougins. Moulin de Mougins (Vergé). (<a href="mailto:moulins@relaischateaux.fr">moulins@relaischateaux.fr</a>). Tel. 0493 757 824. O restaurante está situado em meio a um jardim decorado com esculturas de artistas célebres. Poêleé de homard breton, crevettes et langoustines. Vinhos Côtes de Provence.</li>
</ul>
<ul>
<li>Vence. Jacques Maximin. 689 chemin de la Gaude por 1 e estrada Cagnes: 3 Km. Tel. 0493 589 075 (<a href="mailto:restaurant.maximin@vence-prestige.com">restaurant.maximin@vence-prestige.com</a>). Cozinha espetacular. Canard du Lauragais rôti à l’ail doux. Sablé “biancospino” aux framboises de Vence. Vinhos Bellet, Côtes de Provence.</li>
</ul>
<ul>
<li>St. Paul. Saint-Paul. 86 r Grande, au village. No village “empoleirado”, afrescos, fonte e móveis coloridos compõem o décor refinado do endereço provençal de século XVI, com uma cozinha bem cuidada. Asperges sauvages aux morilles et persil. Cannelloni de homard au poivron rouge. Vinhos Bellet, Côtes de Provence.</li>
</ul>
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<h3 class="western">Referências bibliográficas</h3>
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<li>
Amaury Temporal, Bom Tempo na França, 2003.
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<li>
Christian Arthaud e Eric L. Paul, La Côte d’Azur des Ecrivains, Édisud, Aix-en-Prevence, 1999.
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<li>
Folha de São Paulo, França, Provença e Côte d’Azur, p. 489 e segs.
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<li>
Michelin, Editions des Voyages, Le Guide Vert, Côte d’Azur, Avec hotels &amp; restaurants.
</li>
<li>
Le Guide Rouge, Ed. 2007, Restaurants.
</li>
<li>
Cagnes-sur-mer, Musée Renoir, <a class="western" href="http://www.cagnes-tourisme.com/">www.cagnes-tourisme.com</a>.
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</ul>

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JOTA

Tudo que se experimenta em toda essa região do sudeste francês permanece gravado no universo das boas lembranças

Sob o sol da Provença

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