Pedro Gordilho

A pintura de René Magritte é incongruente mas agrada, chama a atenção, desperta comentários, críticas e elogios. Foi um trabalho todo ele fechado em si mesmo, singular, sem suscitar nem paralelismos nem filiações. Assim foi a pintura desse grande agente transformador belga. São imagens imprevisíveis fixadas sobre tela, sonhos, delírios, tornando muitas vezes possível deslumbrar a noite da consciência.
Cada coisa do mundo torna-se objeto de uma dúvida fundamental, o dia pode coexistir com a noite, um rochedo escapar do princípio da gravidade e se elevar pelos ares, um rosto pode ser oco e ocultar um abismo. Ele próprio mencionou essa realidade irreal indicando, como título de um dos seus quadros, o nome de O Universo Desmascarado.
No período Pós-Guerra, quando a generalização da abstração entre os vanguardistas parecia condenar ao passadismo toda figuração, o olhar frio trazido por Magritte sobre a realidade e seus elementos mais banais, tais como o pão, a maçã, a rosa, o guarda-chuva, o cachimbo, o chapéu coco, sublinhou o desejo do pintor de abstrair-se da representação, de fazer da representação uma mera constatação do caráter insólito de cada objeto do real.
As suas obras atingiram um público surpreendente, influenciando marcadamente a pop art. As três notas de cem dólares escrupulosamente reproduzidas em La Fissure (1949) não podem deixar de evocar, pela sua ausência de valor narrativo, o uso de notas semelhantes nas pinturas de Warhol de 1962, o mesmo com repetições ligeiramente modificadas feitas pelo artista pop norte americano da atriz Elizabeth Taylor, anunciando a multiplicação sistemática de motivos merecidamente escolhidos.
As mudanças de escala, sistema frequentemente utilizado por Magritte para privar os objetos representados de seu valor utilitário ou permitir um novo olhar sobre elementos frequentemente ampliados, ressaltam o poder do sobredimensionamento que se vem a observar em muitos dos seus contemporâneos que seguiram os seus passos. O cachimbo, na pintura de Magritte, não é nem a reprodução de um modelo físico nem um cachimbo ideal, modelo platônico do objeto cachimbo. O cachimbo de Magritte, é antes de tudo, pintura e, neste sentido, como ele diz, “isto não é um cachimbo.” Mas a imagem suscita a idéia genérica do objeto, o que poderia parecer paradoxo surrealista – a imagem de um cachimbo nascida pela sua legenda, à la façon de um paradoxo. Magritte nos impõe a presença do objeto cachimbo de uma maneira propriamente alucinante. Ele traz a palavra e a imagem como um denominador comum. E este denominador comum não é a tela ou o quadro, mas a realidade mesma, alguma coisa que se situa aquém ou além da obra.
Não é preciso muito esforço para se admirar essa obra insólita e, para muitos, não compreendida. Para Magritte cuida-se, antes de tudo, de escapar, fugir da idéia fixa. Se a pintura fixa as coisas em imagens, o que ele deseja primeiramente assinalar é o movimento permanente do espírito para o qual nada deve ficar imóvel, nenhuma definição deve ser satisfatória.
Ele integrou um grupo liderado pelo escritor André Breton, em Paris. Breton, sempre à procura de excitação intelectual, lera Freud, ao trabalhar num asilo para doentes mentais. Lançara o “movimento surrealista”, em 1924, com a proposta de reanimar as energias então dissipadas pelo movimento dadaísta. Ele buscava uma vanguarda que levasse a causa da revolução a um nível mais profundo, liberando as energias mentais subconscientes descritas pelo médico vienense. “Puro automatismo psíquico”, era seu bordão para designar todo e qualquer método de explorá-las.
Como a pintura de Magritte, o surrealismo de Breton era uma proposta intelectual mas sem rosto. Ela se lançou em oposição à arte pura, como era conhecida. Max Ernst, por exemplo, descobriu imagens – surpresa, fazendo colagens de xilogravuras recicladas do século XIX e esfregando papel sobre madeira e pano de saco, numa técnica chamada de frottage. Joan Miró, também ele integrante do movimento dadá, começou a expor em 1925. Tinha um pé em Paris e outro na Catalunha, era nativo de Barcelona, cidade da arquitetura art nouveau de Gaudí, com seus padrões joviais. Miró lançou-se à criação do que estava por trás da criação: O Nascimento do Mundo, diz o título. Ele também deixou marcas indeléveis na história da arte. Breton o considerava “o mais surrealista de todos nós”, tão intrépida a sua busca dos alicerces metafísicos, aquilo que vai além do concreto, do visível, do tangível.
Eles chegaram e modificaram o cenário. A pintura passou a ser um exercício de sugestão daquilo que falta à realidade para que ela, contraditoriamente, se torne ela mesma. Uma obra tira sua força de ser daquilo de que se ressente o real, daquilo que ela assinala a inexistência do que é. Eles propuseram que a atividade artística buscasse tornar visível no mundo aquilo que o mundo aspira ser. Como disse Magritte, o espectador não é chamado para se deleitar daquilo que ele vê, mas daquilo que lhe escapa. É isso que fica.
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Referências bibliográficas
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<li style="font-weight: 400;">Daniel Abadie, La peinture innommable de René Magritte, in Magritte, sous la direction de Daniel Abadie, Galerie Nationale du Jeu de Paume, 2008</li>
<li style="font-weight: 400;">Jean Roudaut, Une grande illusion, in Magritte, sous la direction de Daniel Abadie, Galerie Nationale du Jeu de Paume, 2008</li>
<li style="font-weight: 400;">Julien Bell, Uma nova História da Arte, Wmf / martinsfontes, trad. Roger Maioli, rev. Silvana Vieira, SP, 2008.</li>
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(MAGRITTE)

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JOTA

“Je ne suis pas un artiste, je suis un homme qui pense”

Magritte (1898 – 1967): Ilusionista da realidade

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