Pedro Gordilho

Paris é o centro de gravidade de sua obra monumental. A Paris de Marcel Proust é essencialmente aquela da margem direita e do oeste. Os belos Quartiers entre Monceau, o Faubourg Saint-Honoré, a Place de La Concorde, Auteuil, seu prolongamento em direção do Bois de Boulogne e a Étoile.
É deste lado do Sena que Proust nasceu, viveu e foi ainda deste mesmo lado, em Passy, que ele morreu. Nesse cenário ele descreve sua crônica mundana, aí situando a maior parte dos personagens de sua obra.
Mas seria só isso? Muito mais porque, ao contrário de um quadro realista, uma Paris proustiana é habitada e é encantada. Não apenas uma cidade propriamente imaginaria mas uma cidade recomposta, modificada, na qual a descrição de um lugar resulta da fusão de vários outros lugares. A geografia urbana, para a inexaurível alegria do leitor, reinventada, pelo poder da literatura.
São descrições minuciosas – às vezes fatigantes – que, muitas vezes, afugentam o leitor. Mas vencido esse mare magnum, a odisséia de Marcel Proust apaixona perdidamente diante de marcas tão peculiares que fazem de Em busca do tempo perdido uma obra prima absoluta. Como assinala Paulo Mendes Campos, em crônica de tempos passados, as constantes principais da obra são essas: o amor só existe na sensibilidade imaginosa do amante; o mundo da alta sociedade é um tecido de mediocridades e ilusões; o tempo destrói a personalidade e faz uma outra; só a memória salva, mas a memória involuntária que refaz toda uma fase perdida e permite o retorno iluminado aos paraísos perdidos. E a lição final: só na síntese da arte existe o absoluto.
Marcel Proust nasceu no dia 10 de julho de 1871 na rua La Fontaine, nº 96, em Auteuil, na época uma vilazinha nos arredores residenciais de Paris. Depois do século XVII e de modo ininterrupto o Auteuil – Passy constitui um Quartier puramente literário. Moliére costumava descansar ali. Presume-se que ele morava no nº 2 da rua de Auteuil. Em 1908 havia uma pequena edificação que trazia a seguinte inscrição: “Aqui foi a casa de Moliére”. Foi também na mesma região que Racine escreveu Les plaideurs. Boileau possuiu uma vasta propriedade comprada em 1685. No nº 45 morava o literato Jean Lorrain, com o qual Proust um dia se bateu em duelo, pois Lorrain tinha desacreditado o primeiro livro de Proust, Os prazeres e os dias, qualificando-o de livro pretensioso.
No século XIX o Quartier é praticamente tomado pelos escritores de expressão: os Goncourt, Daudet, Maupassant, Gautier, Jules de Goncourt morreu ali em 1870, aos 40 anos, e Edmond lhe sobreviverá até 1896. André Gide habitará o dezoito bis, Alea Sycomores e Bérgson na Avenida Tilleuls. A casa do 96 da rua La Fontaine não existe mais. O comprador mandou demoli-la para construir novos imóveis.
Com o nascimento do irmão Robert, em 24 de maio de 1873, a residência ficou pequena para os Proust, razão pela qual mudaram-se para o Boulevard Malesherbes nº 9, primeiro andar, próximo da praça da Madalena, Quartier que Proust dirá curiosamente, em sua obra Swann, que ele é um dos mais feios e disformes de Paris. A família habitará nesse endereço até 1900. Proust viverá lá vinte e oito anos. Logo Proust aprende a escrever na cama. No térreo, diante de uma coluna Morris (que existe ainda hoje, em frente ao nº 8, sobre a calçada oposta), Marcel consegue, cada manhã, ver os espetáculos anunciados. Pode-se ver à distância o Dôme da Igreja Saint-Augustin, Igreja construída a partir de 1860. É um edifício pretensamente barroco que mistura todos os estilos, romano, bizantino, gótico, renascença, e ainda o gosto duvidoso do segundo império que Proust, com a imaginação dando a sua colaboração, procura transfigurar.
O jovem, elegante, Marcel oferece jantares refinados com seus amigos Reynaldo Hahn, Gastón de Caillavet e Anatole France. Convidados, igualmente freqüentes, são Comte Robert de Montes Quiou (aliás, o personagem bem caracterizado na obra de Proust sob o nome de Barão de Charlus), que traz o conde Louis de Turenne, o Marques de Castellane e ainda Georges de Porto-Riche.
Em setembro de 1900, Madame Proust começa a preparar a instalação da família em um novo apartamento na Rue de Courcelles nº 45, fazendo ângulo com a rua de Monceau. É a antiga rua do Hameau-de-Courcelles. Camille Saint-Saëns viveu no 83 B e Colette e seu marido, Gauthier-Villars, no 117 Bis. O novo imóvel é elegante, austero, fica sobre a Praça do Peru, hoje ao lado de uma espécie de pagode ocupada por uma galeria de arte asiática. Dispõe de um balcão de pedra e de uma cour interior.
O Dr. Adrien Proust falece na rue de Courcelles, nasce Suzanne Proust, filha de Roberto. Seu pai falecido e seu irmão casado, Marcel se acha só com sua mãe. Madame Proust morre dois anos depois de seu esposo, em 26 de setembro de 1905. O apartamento da rua de Courcelles é então muito grande para Marcel, que está sozinho.
Em 26 de dezembro de 1906, depois de muita hesitação, o escritor se muda para o Boulevard Haussmann nº 102, um imóvel que pertencia ao seu tio avó Louis Weil. É neste endereço que Proust irá escrever a Recherche.
Em setembro de 1910, procurando reduzir o ruído do Boulevard e atendendo um conselho de Anna de Noailles, mandou forrar as paredes de seu quarto, sobre o Boulevard, de um revestimento de placas espessas de cortiça. Em 1907 ele contratou um empregado, Nicolas Cottin, chegando pouco depois sua mulher, Celine. Eles ficarão a serviço de Proust até a Guerra, sucedida então por Céleste Albaret, que vem morar no Boulevard Haussmann.
Céleste foi a serviçal fiel de 1913 até 1922, ficando a seu serviço, de modo exclusivo, com o seu marido Odilon, um motorista de táxi. Eles se casam em 13 de março de 1913, Odilon tem 32 anos e Céleste 22. Odilon morava perto de um café para o qual Proust podia telefonar a todo momento. Depois da morte do escritor, o casal comprará, em 1924, um pequeno prédio na rua de Canettes. Céleste confiará suas reminiscências a Georges Belmont, que publicará em 1973 o livro Monsieur Proust.
Em 1913, um chofer de táxi, Alfred Agostinelli, que Proust conheceu em Cabourg e com o qual fez diversas excursões na Normandia em 1907 / 1908, pede-lhe para retomar o seu serviço. Mas Proust já dispunha de Odilon para o mesmo atendimento. Ele o recebe então como secretario e o encarrega da datilografia de Jovens em Flor. Sua companheira Anna o encontra no Boulevard Haussmann. Depois Agostinelli retorna para sua família em Mônaco e se inscreve sob o nome de Marcel Swann numa escola de pilotos. E acaba morrendo em 30 de maio de 1914, num vôo sobre o mediterrâneo. Proust estava para lhe comprar um pequeno avião.
Hoje, o banco proprietário do imóvel permite ao público, depois do começo de 1996, visitar o salão de Marcel Proust, o quarto com as paredes de cortiça, restaurado, com grossas cortinas e pendurado na parede o inevitável retrato de Proust, feito por Blanche. Foi lá que ele viveu, como visto, de 1906 até 1922 e onde escreveu a maior parte da sua obra. Mas os moveis da família Proust não se acham mais no endereço: eles estão no museu Carnavalet. Pode ver-se nesse museu a modesta cama, a escrivaninha, uma biblioteca, duas poltronas, um tapete, um par de candelabros, um retrato do Dr. Adrien Proust, um jade oferecido por Anna de Noailles, uma caneta, um tinteiro, uma lâmpada, um espelho.
Não muito longe de lá, na rua de Courcelles nº 69, reside Héléne Brancovan, viúva do Príncipe Alexandre Bibesco e mãe do amigo de Marcel, Antoine Bibesco. Ela é a prima da princesa Rachel de Brancovan, mãe de Anna de Noailles. É uma pianista brilhante que dá concertos num salão que recebe Paderewski, Anatole, Pierre Loti, Maeterlinck, Debussy, Fauré, os pintores Bonnard, Vuillard e Odilon Redon. Ela conheceu Liszt, Wagner, Gounod. As relações com Anatole são constantes e afetuosas desde os primeiros encontros. “Como o Sr. faz, M.France, pergunta Proust, para saber tantas coisas?” Responde France: “– É muito simples, meu caro Marcel: quando eu tinha a sua idade eu não estava alegre como você, eu não me divertia, eu não circulava pelo mundo e eu ficava em minha própria casa lendo, lendo sem descanso, sem relaxar”.
Em 1901 Proust encontra regularmente Léon Daudet (as vezes também Lucien) no café Weber, onde dreyfusards e nacionalistas se acham em pólos opostos da sala. Ele está vestido sempre de capote forrado, seja qual for a estação do ano e pede para os seus amigos o que há de mais caro. O café Weber, na rua Royale nº 21, casa fundada em 1865 e fechada em 1961, era freqüentado pelos Daudet, François Coppée, Claude Debussy. Proust freqüentou também o restaurante Larue, na praça da Madeleine nº 15, que desapareceu em 1955, ocupado hoje pela Maison Cerruti.
O Maxim’s, na rua Royale nº 3, com decoração moderna, era uma das preferências também do escritor. Foi fundado em 1891 no local do palácio do Duc de Richelieu. Finalmente veio a fase do Hotel Ritz, na Place Vendôme nº 15. Compreendia um salão de refeições dos habitués e os jantares de gala. Um personagem desempenha papel essencial, o primeiro maître D’Hôtel, Olivier Dabescat, depositário dos segredos da casa, ao qual Proust dá gorjetas faraônicas para qualquer serviço. Ele, de seu turno, informa Proust sobre as pessoas de passagem e protege a intimidade do escritor, quando ele se afasta para escrever num salão particular.
A partir de 1917 Proust não freqüenta mais nem o Larue nem o café Weber. Mas Céleste vai buscar os pratos da sua preferência no Larue o seu marido, Odilon, é encarregado de buscar cerveja gelada no Ritz. O escritor reprova que se cozinhe no apartamento, pois os odores podem originar crise de asma. Ele freqüenta igualmente, a contar do outono de 1917, o Hotel Crillon, na Praça da Concórdia.
No começo do ano de 1919, Madame Weil, a tia de Proust, vende o imóvel da qual ela é proprietária no nº 102 do Boulevard Haussmann Proust deve desocupá-lo. Em 1º de outubro de 1919 ele se muda para um cinco peças mobiliado no 5º andar, com elevador, na rue Hamelin nº 44, dando para Avenida Kleber, entre Passy e os Champs-Élysées.
Em seguida ao anúncio da vitoria de Proust no prêmio Goncourt, em 10 de dezembro de 1919, pelo seu livro Jovens em Flor, Léon Daudet corre para a rua Hamelin para felicitar o feliz eleito. Esperavam, no salão, Gastón Gallimard e Jacques Riviére, das edições da Nouvelle Revue Française. Silencio glacial: eram homens que se detestavam. Proust sofre uma horrível crise de asma e não pode recebê-los. Depois do prêmio muitos jovens autores vieram visitá-lo, entre eles Emmanuel Berl e André Gide.
A sua saúde se fragilizava. Ele sabia que ia morrer. A doença se agravou sem um diagnostico muito bem definido. Mas ele não facilitava o trabalho do Dr. Bize, recusando terminantemente receber injeções ou soros. E dizia para sua fiel servidora Céleste: “ – É horrível pensar que os médicos podem atormentar um doente ao lhe dar injeções, ou lhe injetando soros... e por que? Para prolongar a vida? Para ganhar dez minutos, a metade de um dia talvez, de vida miserável?”. E pedia a Céleste: “ – Céleste, prometa que jamais permitirá que ninguém me dê uma injeção.”
Céleste não manteve a sua promessa. Segurou a coberta, o médico se abaixou e aplicou a injeção. E ela diz, como muita dor no coração, em seu testemunho: “ – Foi pior do que se ele tivesse me acusado expressamente de ter traído a promessa que eu lhe fizera, de jamais permitir que lhe aplicassem uma injeção, se ele não mais estivesse em condições de se defender, ele mesmo. E eu tenho ainda mais remorso porque, naquele estado, a injeção era inútil, o liquido nem mesmo circulou nas veias.”
Nas horas seguintes Céleste informa que voltou para o quarto e ficou ao lado do irmão do escritor, o professor Robert Proust. Não havia senão os dois. Os olhos do moribundo acompanhavam a cena. Era atroz. Ela descreve: “ – Ficamos assim cerca de cinco minutos. Depois, de repente, o professor se aproximou, inclinou-se levemente sobre o irmão e fechou suas pálpebras, enquanto seus olhos permaneciam virados para nós. Eu disse: Ele morreu? Sim, Céleste, acabou. Eram quatro e meia.
As exéquias tiveram lugar na capela Saint-Pierre-de-Chaillot na Avenida Marceau, não a atual igreja, construída nos anos 30, mas na capela que existia no mesmo local. Ele foi sepultado no cemitério de Pére-Lachaise, no túmulo de seus pais, ornado de um medalhão do Dr. Proust. No dizer de Céleste, Proust tinha feito um enternecedor auto-retrato póstumo: “Uma barba de profeta atravessada por um nariz imenso que se dilata para aspirar os últimos sopros de vida”.
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Referencias bibliográficas 
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<li>Céleste Albaret, Senhor Proust, Ed. Novo Século, SP, 2008</li>
<li>Christian Péchenard, Proust et les autres, La Table Ronde, Paris, 1999</li>
<li>George D. Painter, Marcel Proust 1871-1922, Mercure, 1992</li>
<li>Heloisa Seixas (organização), As obras-primas que poucos leram, artigo de Paulo Mendes Campos, vol. 1, Distr. Record, 2005</li>
<li>Henri Raczmow, Le Paris Retrouvé de Marcel Proust, Ed. Mathilde Kressmann, 2006</li>
<li>Jérôme Picon, Passion Proust L’albun d’une vie, Textuel, Octobre, 1999.</li>
<li>Marcel Proust, Os prazeres e os dias, F-QM Ed. Associados Ltda., Códex, 2003</li>
<li>Marcel Proust, Précaution Inutile, Ed. Présenteé par Frédéric Ferney, Le Castor Astral, 2008.</li>
<li>Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, Trad. Fernando Py, Ediouro, 2001.</li>
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JOTA

O centro de gravidade de sua obra monumental

Com Marcel Proust em Paris

O centro de gravidade de sua obra monumental