Pedro Gordilho

"Henry Miller exige muito de cada leitor. Exige o amor à verdade. Exige um espírito lúcido. Uma clareza de pensamento. Uma firmeza de caráter. Uma ética. Porque ele é, na verdade, reforma literária em grau altíssimo. E representa o que de mais novo pode ter o homem de qualquer tempo: a insubmissão”. Antonio Olinto
A sua obra é uma espécie de purgação, um documento de fundo moral que investiga até onde pode o homem ir em suas opções, em suas atitudes, em sua forma de viver a sua grandiosa aventura humana no planeta Terra. Mas isso visto em seus livros começou bem depois do usual na vida dos escritores.
Vamos fazer uma viagem pelo estreito território que, um dia, juntou um dos mais extraordinários coeficientes intelectuais da história da humanidade – embora os americanos, em seu pragmatismo patológico, pudessem acrescentar: também de tédio. O território é familiar a qualquer um que tenha folheado atentamente um romance da época: Saint-Germain des Près, o Café de Flore, o Boulevard Saint Michel, a Brasserie Lipp, o Café Procope, a rue de l’Ancienne Commédie, Le Vieux Colombier. Cabeças brilhantes, comprimindo-se nos cafés, nos studios, nas livrarias – especialmente na Shakespeare and Co. –, nas ante-salas das editoras avant la lettre, nas vielas escuras da pequena aldeia intelectual – aquilo que Nelson Rodrigues chamaria de província ideológica. Esse foi o mundo em que viveram Hemingway, Fitzgerald, Picasso, e, numa escala ainda mais carente, o nosso Henry Miller.
Em 1913, Henry Miller tem 22 anos. Suportando mal a moral puritana de seu país natal, rebelde em busca de “mais humanas referências” do que aquelas colocadas sobre o reinado do dólar, ele deixa Nova York para ir trabalhar nas fazendas, perto de San Diego, na Califórnia. Uma noite em que ele circula sem qualquer objetivo nas ruas da cidade, vê um affiche anunciando uma conferência sobre Nietzsche e sobre escritores europeus. Ele assiste, entusiasma-se e penetra num território de pensamentos inteiramente novos para ele. Ele é transportado, as citações feitas pelos conferencistas o impressionam, uma nova visão do mundo surge. Ele quer conhecer a Europa.
Em 1923, em Nova York, Miller conhece June num dancing onde a jovem é entraîneuse. Ela será o grande amor de sua vida, uma flor venenosa, fatal, que o subjuga. É claro que sendo a mulher extremamente inteligente e perspicaz, ela vê em Miller o autor que um dia ele se tornará. Em 1928 June recebeu de um admirador os recursos suficientes para viagem, e o casal segue para Paris. Miller conhece pelo coração o mapa da cidade e o nome das ruas.
Lá está o casal rodando num táxi. Diante de seus olhos extasiados desfilam ruas, avenidas, boulevares. Ali está a estátua dourada de Joana D’Arc, os jardins das Tuileries, o Obelisco e a Praça de la Concorde, sua ponte cruzando o Sena – “cada ponte de Paris é um poema (Miller)” – lhes revela a Torre Eiffel, o Trocadéro, o Louvre, Nôtre-Dame. Chega a leve sombra do Boulevard Saint-Germain, o táxi roda sob a abóbada dos plátanos ao longo dos ricos prédios do bairro. No nº 24 da rua de Bonaparte, o Hotel de Paris (hoje inexistente) aluga ao casal um quarto modesto, mas confortável. 
Depois de algum tempo voltam a Nova York e June e Henry casam-se. Ele se dedica a escrever enquanto ela se “arranja” para ganhar dinheiro, utilizando todo o seu poder de sedução. Depois de algum tempo – e obtido algum capital –, Miller volta à França. Sozinho.  Ela deverá encontrá-lo mais tarde. Em Paris, como em Nova York, Miller vive de expedientes e faz a festa para se divertir, viver e esquecer.
Quando ele chega a Paris em 4 de março de 1930 com apenas dez dólares no bolso, a vida cultural e intelectual que a cidade oferecerá nos anos vinte tinha mudado. Muitos dos seus compatriotas já tinham feito suas malas e retornado para suas cidades de origem. Miller sabe que ele deve viver em Paris, ele não veio como turista e não tem mais escolha. Ele diz: “Estou aqui pela segunda vez, estou sem dinheiro, desesperado, vivendo como um clochard nas ruas para que eu comece a ver Paris e a amá-la cada vez mais, descobri-la e ao mesmo tempo desvelar-me.” Ele deixa de utilizar as palavras grandiosas que “fazem” alguns escritores. Ele sempre sonhou escrever, e tenta fazê-lo. June insiste, aponta caminhos, mas é dirigindo-se a Paris que ele escreve seu primeiro livro. Em Paris ele se torna, efetivamente, um escritor.
[formulario_fulllist]
As parisienses o fascinam completamente. Comparando-as com as mulheres americanas, que lhe parecem frequentemente assexuadas, a ponto dele dizer que uma simples francesa magrela tem um átomo de personalidade que permite fazer sozinha o espetáculo.
É um americano sem um tostão, um escritor sem uma obra, que não se inclui nem mesmo no livro de sócios da livraria famosa na época, a Shakespeare and Co., Rue de L’Odéon, quartel general de todos os expatriados de língua inglesa. Ele é autodidata por excelência, dedicado a uma diretriz, obsessivo no seu desejo de se tornar um escritor. Para ele, o escritor significa “ser um santo, um mártir, um deus”.
Miller encontra Anaïs Nin em outubro de 1931 em sua casa de Louveciennes, perto de Paris. Ficarão amigos, vão se tornar amantes e serão cúmplices na literatura, ajudando-se, mutuamente, nos momentos difíceis. Miller é revisor na edição parisiense do Chicago Tribune e divide um apartamento com um amigo em Clichy. Ele escreve finalmente aquilo que ele sempre desejou escrever, a saber, aquilo “que não está nos livros”. O manuscrito se chama Trópico de Câncer.
Estuda francês feericamente para conhecer Breton, Giono, cai de amores por Céline e devora Cendrars. Os amigos mais próximos são os companheiros de boemia, grande parte deles retratados nos seus trópicos “o primeiro de câncer e, depois, de capricórnio”. Frequentemente estrangeiros como ele, mas todos se sentem e se veem parisienses. No Henry Miller protagonista do Trópico de Câncer, o escritor norte americano Norman Mailer vê “uma espécie de Bogart parisiense ou de Belmondo americano.” De certa maneira um “demi-français” (meio francês), mas usando chapéu à maneira mais pura e chique hollywoodiana. 
Sua obra Trópico de Câncer (que é sua obra prima) é editada em 1934. No mesmo dia em que o livro chegou às livrarias, Miller se instala no 18, Villa Seurat. Ele vai morar aí nesse endereço mais de quatro anos, durante os quais ele escreve o seu Trópico de Capricórnio. 
Trópico de Câncer narra a vida de um apátrida jovem e pobre na cidade de Paris cheia de pulsação, de uma vulgaridade flamejante e sem disfarce. Depois de intermináveis caminhadas noturnas nas ruas alegres, o narrador procura enganar sua fome nas fornicações ad nauseam: libertinagem, crueldade, presença no bas-fonds, personagens de toda sorte, absoluto abandono de si próprio. Nem comentários, nem filosofia, nem sombra do julgamento, nem esboço de uma moral. Uma Paris que muitos não conhecem, diz a amante Anaïs Nin, encorajando Henry a escrever o mundo do modo que ele vive e do modo que ele vê. Realismo sem disfarce. Em estado puro.
Um dia, onde sua “consciência de Paris” está particularmente viva, o narrador de Trópico de Câncer expõe em uma ode vibrante o que é a cidade para o artista criador: “Não é um acidente que faz brotar nas pessoas a criatividade. (...) De si mesma, Paris não faz nascer os dramas. Eles começam em outro lugar. Paris não é senão um instrumento obstétrico que arranca o embrião vivo do útero e o coloca na incubadora. (...) O berço recebe seus bebês e eles ocupam o mundo. Pode-se ler aqui sobre os muros onde viveram Zola e Balzac e todos aqueles que nunca foram nada. Todo mundo aqui viveu, num momento ou em outro momento. Ninguém morre aqui (...)”.
Ele retorna aos Estados Unidos mais uma vez, instala-se nos anos 40 em Big Sur, na Califórnia. O narrador de Trópico de Capricórnio reencontra suas imagens de Paris naquelas de Nova York, com o filtro de uma memória de cinema: “Era noite, o céu estava num azul do oriente, azul como o ouro do plafond da Pagode, Rue da Babylone”. Mas janeiro de 1953 é o tempo de renovação. Ele revê os lugares caros às suas reminiscências: a Praça Contrescarpe e a Mouffe, a Villa Seurat, Clichy, todas praças marcantes no conjunto de reminiscências mitológicas. Ele revê aquela “matéria humana diferente” que ele conhecia, jovem americano que buscará no passado as relações mais calorosas, mais vivas, aquele espírito que ele não encontra senão em Paris. “São os parisienses que o interessam (escreveu um amigo), os amigos que ele encontrou, os transeuntes que ele cruza nas ruas, os motoristas de táxis com os quais ele mantém uma conversação calorosa, até mesmo os empregados coladores de affiches”. 
Quando ele volta à França em 1967 para presidir o júri do festival de Cannes, ele faz a festa da imprensa, dos jornais. É o escritor já consagrado, o homem carismático, aquela personalidade irradiante e glamourosa que se torna um velho sábio, um bouddha de sorriso irônico. Criticado, admirado, ele não deixa ninguém indiferente, continua adorado pelas mulheres e cortejado pela imprensa que ele surpreende de bom grado.
Para Henry Miller, Paris é sempre seu pays e torna-se a via láctea do clochard celeste que ele se tornou. Mas é em Pacific Palisades que ele morre, em junho de 1980. Com a idade de 89 anos foi, como Picasso, um macróbio. Nas primeiras páginas de sua obra maior, Trópico de Câncer, no outono de seu segundo ano em Paris, o narrador Henry Miller diz: “Eu não tenho dinheiro, eu não tenho recursos, não tenho esperanças. Eu sou o mais feliz dos homens do mundo”.
&nbsp;
“De si mesma, Paris não faz nascer os dramas. Eles começam em outro lugar. Paris não é senão um instrumento obstétrico que arranca o embrião vivo do útero e o coloca na incubadora". Henry Miller

paris-2340852_1280

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Henry Miller exige muito de cada leitor. Exige o amor à verdade

Com Henry Miller em Paris

Henry Miller exige muito de cada leitor. Exige o amor à verdade