Pedro Gordilho

Assim ele foi chamado por muitos: o maior advogado de todos os tempos. Marco Túlio Cícero (3.1.106 A.C. – 7.12.43 A.C.), o homem que tinha a medida das coisas, que acreditava na honra e na decência do ser humano. Um homem que amava a justiça, a compaixão e a bondade. Sobretudo um homem que amava a liberdade.
Tinha, mais do que respeito, verdadeira veneração pela Constituição de Roma e, especialmente, pela sua declaração de direitos, ambas marcadas pela grande atualidade. Para ele, os governos haviam de ser limitados pela lei. O governo limitado pela lei era um governo limitado por um edito de Deus, baseado nas leis naturais, enquanto o governo dos homens, sem a disciplina normativa, era o que mais devia ser temido pelas nações. Viveu bastante, o suficiente para ver isto acontecer na celebrada república romana, tendo como resultado a ditadura.
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Sua atuação pública, unindo a reflexão filosófica à ação política, sobretudo em defesa dos princípios da república, exerceu influência marcante numa fase culminante da história de Roma. Seu poder de persuasão fez dele o maior orador do mundo antigo. Foi Cônsul, eleito em 63 A.C.. O Cônsul era o principal magistrado da república romana, sendo eleitos dois, a cada ano, para assumir o cargo em janeiro do ano seguinte, revezando-se a cada mês na Presidência do Senado (a principal instituição, que nada tem com o legislativo de hoje, mais se aproximando do executivo). Produziu orações magistrais contra Lúcio Sérgio Catilina, todas modernas. São as famosas catilinarias.
Além do político probo, do advogado insubstituível e do orador flamejante, Cícero foi um ser humano. E sofreu muito devido às hesitações, presentes numa personalidade, como a sua, de grande moderação, que considerava que todos os homens deveriam ser razoavelmente civilizados e racionais. Ele era assim. E nunca se recuperou do fato de ser um homem racional num mundo tão irracional – este é também o destino de todos os moderados.
Sua amizade, que vem dos tempos escolares, com Júlio César, revela sua natureza conciliadora, seu humor através do pessimismo e, por vezes, sua irritabilidade diante do temperamento e das ideias do futuro ditador, sedutor, travesso, sutil, jovial e poderoso. Uma amizade com altos e baixos, que perdurou por toda a vida. Embora diferentes eles eram próximos. Ele raramente conseguia iludir Cícero: “Só confio em você em Roma”, disse Júlio César certa vez. Eles se apreciavam e se admiravam a seu modo, ou seja, com cuidado, desconfiança, alegria, raiva e dedicação. É uma amizade que sugere muitos escritos para explicá-la, dada a grande diversidade das personalidades de seus figurantes.
Júlio César foi assassinado pelos liberatoros por volta de março de 44 a.C. Cícero não tinha sido incluído na conspiração mas o assassino, Marco Júnior Bruto, um filho natural de Júlio César não reconhecido, invocou o nome de Cícero e pediu-lhe que restaurasse a República, quando levantou o punhal ensanguentado depois do assassinato.
Marco Antônio tornou-se o líder. Na época que sucedeu a morte do tirano, os dois homens mais importantes de Roma eram Marco Antônio e Cícero. Inconformado com as ações do auto nomeado sucessor de Júlio César, Cícero começou a atacá-lo numa serie de discursos, as chamados Filipicas. Sua presença trazia risco para as ambições de Marco Antônio e Octaviano. Ele deveria ser afastado de Roma. Foi procurado insistentemente e, quando pensava em partir para a Macedônia, foi apanhado no dia 7 de dezembro de 43 A.C. Ao deixar a sua Villa em Fórmias, numa liteira, para seguir em direção a Acosta, onde esperava embarcar a caminho do seu destino, foi alcançado pelos assassinos. Eherenio (um centurião) e Pompilio (um tribuno) ouviram suas últimas palavras, representativas de sua grande bravura: “Não há nada correto no que estais a fazer, soldado, mas tenta matar-me corretamente.” Foi morto, sua cabeça foi decepada. Seguindo ordens de Marco Antônio, as suas mãos, que haviam escrito as Filipicas, também foram cortadas e pregadas, juntamente com a sua cabeça, no Forum Romano. Ele foi a única vítima das proscrições a ter esse tratamento. A História registra que a mulher de Marco Antônio segurou a cabeça de Cícero, arrancou-lhe a língua e trespassou-a com o seu gancho de cabelo, numa vingança final contra o seu poder de discursar e de persuadir.
Essa ausência absoluta de senso comum se repete na França em dezembro de 1792. Luís XVI e Maria Antonieta estão presos. A Assembleia e a Convenção usaram quatro meses para preparar a acusação contra o rei deposto. Os três defensores do rei, Malesherbes, Tronchet e Desèze, tiveram apenas oito dias para contestar a acusação em nome de seu cliente.
O processo criminal foi um simulacro. Tudo era falso, até o raciocínio de Saint Just, ao dizer, num falso dilema: “Se o rei é inocente o povo é culpado.” Os poderes e competências estavam reunidos numa só unidade. O rei, detido no Templo com sua família, não foi informado da decisão da Convenção de se constituir, em seu nome, em júri de instrução, em júri de acusação e em júri de julgamento, confundindo todas as competências dentro do processo penal. Os destemperados queriam negar-lhe até o direito à defesa. Depois da luta entre paixões cegas, autorizou-se a constituição de um defensor. O rei designou dois advogados, Target ou Tronchet, o último se o primeiro não pudesse aceitar. Target acovardou-se, declarando que não estava à altura do encargo. Mentia, porque nem sua saúde nem a idade o impediram de tornar-se, depois do episodio, Presidente do Tribunal, juiz de Cassação, conselheiro de Estado e de viver ainda mais treze anos.
Tronchet aceitou a incumbência e em onze de dezembro de 1792 Malesherbes, tendo então setenta e dois anos, duas vezes Ministro de Luís XVI, dirigiu carta ao Presidente da Assembleia colocando-se à disposição para fazer a defesa. Nenhum dos dois tinha experiência na sustentação oral, notadamente em matéria penal. Procuraram o concurso de um terceiro advogado e a escolha do Rei recaiu em um advogado de Bordeaux, Desèze, nascido em 1748.
O comparecimento do Rei a Assembleia foi marcado para o dia 26 de dezembro de 1792, às 8 horas. O Presidente lhe diz: “Luís, o povo francês vos acusa de ter cometido uma grande quantidade de crimes para estabelecer vossa tirania, destruindo a liberdade”. O Rei responde com precisão a esse interrogatório bizarro. Desèze, após três horas de brilhante sustentação oral, conclui: “Cidadãos, aqui me detenho, diante da História, certo de que ela julgará o vosso julgamento, e que esse julgamento será o julgamento dos séculos”.
Foi afirmativa a resposta da Convenção sobre a culpabilidade de Luís XVI quanto à acusação de conspiração contra o liberdade e de atentado contra a segurança geral do Estado. Luís XVI foi executado, mantendo sua calma e serenidade, em 21 de janeiro de 1793. Maria Antonieta igualmente. Fazendo um paralelo com aquele quadro de horrores, disse Rui Barbosa, um século depois: “Eu poderia dizer desta situação, senhores juízes, o que daquela época dizia Malesherbes, em seu país: ‘Se ao menos isso tivesse senso comum!’ Entre os dois terrores, a dessemelhança está meramente nos meios de aterrar: um era o terror pelo sangue; o outro é o terror pela asfixia. Sangrar, ou sufocar: duas maneiras de extinguir a vida, moral, ou fisicamente”.
Inconformado com o julgamento de Luís XVI, Malesherbes continuou, após a execução, a lutar para que se fizesse justiça. Queria a reabilitação do rei. E, por isso, pagou com a própria vida, depois de ter visto morrer, diante dele, sua filha, seu genro e seus netos. Foi condenado à morte. Eis ai o supremo sacrifício do advogado na defesa dos interesses do seu cliente. Ele lutou com denodo, com bravura, por um julgamento que obedecesse aos procedimentos penais existentes, e não àquele simulacro de julgamento que a História repudiou.
O terceiro maior pilar da advocacia é, bem mais próximo de nós, Rui Barbosa. Ele foi um arauto da cidadania, foi um defensor da liberdade, um paladino da ética, um exemplo de lealdade e uma das nossas referências unânimes em toda a História da advocacia brasileira. A sua luta nunca foi pessoal. Nunca teve ódios nem rancores. Desvelou aos olhos brasileiros a ciência do direito público que a América do Norte criara e que nós pouco conhecíamos.
Dois episódios, num universo de procedimentos e comportamentos ideais praticados pelo notável advogado, irão ilustrar esse registro. Primeiro, o ingresso de Rui no Supremo Tribunal Federal, em 18 de abril de 1892, assinalando o início de sua carreira, com ambientação num país desconfiando de Floriano Peixoto, o qual, atrás da manifestação popular prestada ao Presidente renunciatário Deodoro da Fonseca, entendeu que havia uma sedição organizada por civis e militares. Não vacilou o Marechal: prendeu todos os envolvidos. Rui não se conteve. Seus nervos vibraram de indignação. Ele entendia que o juiz não podia ficar emparedado pela singela objeção do caso político, sofisma sob cuja sombra maligna, no Brasil, abrigaram-se injustiças clamorosas, como vimos durante a ditadura militar de 64.
Era necessário que o Judiciário dispusesse da prerrogativa de conhecer da causa, mesmo que protegida pela couraça da sua natureza política. Defender o princípio equivalia a elevar ainda mais alto a missão do juiz, outorgando-lhe a faculdade, praticamente, de fazer o direito. Rui apresentou sua petição de habeas corpus, marcada pela grande eloquência. Ninguém imaginava que alguém tivesse a ousadia de contrastar o prestigio de Floriano, com um pedido de libertação imediata de tantos e tão importantes presos políticos. E o Supremo? Podia ou não conhecer do pedido? O ato de Floriano poderia ser inutilizado por uma ordem judicial? Um debate sem precedentes, no foro brasileiro. Rui sentiu o amargor da derrota. O resultado final foi contrário ao seu pedido. Só um, dentre os ministros presentes à sessão, foi favorável ao pedido: o ministro Piza e Almeida, cujo voto, com enorme poder de síntese, resumiu os fundamentos principais do pedido do advogado.
Vencido mas não convencido. Rui passou, daí então, e exibir os equívocos do julgamento e, talvez, prevenir Floriano que não pretendia lutar contra ele, mas, como advogado que era, voltar ao mesmo Tribunal para reproduzir todas aquelas noções fundamentais que em parte triunfariam um dia, como, de fato, triunfaram.
Floriano decretou novas prisões e, contra elas, Rui requereu habeas corpus em favor dos presos. O Supremo Tribunal acolheu o pedido por dez votos contra um e mandou libertar imediatamente os presos. Floriano rebate a decisão, provocando sério incidente com o Tribunal. Mas o Supremo Tribunal respondeu-lhe com vigor, lembrando que os poderes são livres e independentes entre si. A vitória de Rui era dupla. Além da libertação imediata dos seus constituintes, assistiu o Marechal levar, pela primeira vez, a pior, naquele incidente institucional.
O brilhante advogado não fez sombra ao pensador político, ao pensador com visão social da história, sempre atual, sempre contemporâneo do futuro. Em 1919, menos de quatro anos de sua morte, ele assim falava, fazendo suas as palavras de Lincoln: “O trabalho (dizia Lincoln) precede ao capital, e deste não depende. O capital não é senão um fruto do trabalho, e não chegaria nunca a existir, se primeiro não existisse o trabalho. O trabalho é, pois, superior ao capital, e merece consideração muito mais elevada”. Depois de declarar que não era um pensador socialista, aditava: “A meu ver, quando trabalha em distribuir com mais equanimidade a riqueza pública, em obstar a que se concentre, nas mãos de poucos, somas tão enormes de capitais, que, praticamente, acabam por ser tornar inutilizáveis, e, inversamente, quando se ocupa em desenvolver o bem estar dos deserdados da fortuna, o socialismo tem razão”.
Na parte social do seu pensamento, Rui igualmente pode nos servir de guia. Até mesmo porque se as sentenças de Rui e Lincoln forem aplicadas em toda sua extensão e verdade, elas haverão de contribuir para mudanças radicais que apelem pelo fim dos regimes que apostam no capitalismo selvagem, sem as transigências, as concessões e as conquistas a que têm direito todos aqueles que devem ser contemplados na partilha da riqueza dos povos.
<h3 align="justify">Referências bibliográficas</h3>
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Cícero, Orações, Trad. Padre Antonio Joaquim, Prof. Altino Arantes, W.N. Jackson Inc. Ed., 1952
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Joao Mangabeira, A presença de Rui nas gerações novas e a função política e social da mocidade no presente, conf. pron. na Fac. Nac. Direito em maio de 1952, publ. Rui Barbosa, Aguilar Ed., 1966
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Robert Harris, Trilogia de Cícero, Ed. Record, 2010
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Ruben Nogueira, O Advogado Rui Barbosa, 2ª Ed., Ed.
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Taylor Caldwell, Um Pilar de Ferro, Ed. Record, 2003.
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JOTA

Histórias de três defensores da liberdade e paladinos da ética

Cícero, Malesherbes e Rui Barbosa: três pilares da advocacia

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