Pedro Gordilho

Tomar emprestado o caminho da peregrinação nas rotas autênticas e buscar reviver os momentos culminantes de Vézelay: a fundação monástica, a cidade de acolhimento dos peregrinos, as relíquias de Maria Madalena, a partida em direção de Santiago de Compostela, a chamada às Cruzadas. É um itinerário aberto para todos que colocam luz no coração mas é também um cenário em que a realidade muitas vezes entra no reino da lenda. É indispensável uma grande dose de inspiração, por exemplo, para se crer que num certo ponto terá encalhado a nave de Lazaro e de Maria Madalena, vindos de Bethânia. Os historiadores exigem uso dos sentidos, ver e tocar antes de se pronunciar e de dizer o que é verdadeiro ou não. Mas algumas vezes eles não podem explicar. Aí é necessário que alguma verdade seja dita para que se torne palavra do evangelho da História. É a verdade que vem da suposição, apoiada no curso dos acontecimentos averbados. Mas o sobrenatural existe, aquilo que os historiadores não conseguem explicar decorre do imaginário plausível dos homens, da seqüência das coisas, de tudo aquilo que não está escrito em parte alguma senão num furtivo batimento do coração.
O grande amoroso de Vézelay, Jules Roy, descreveu a cidade mágica: “Ce n’est pas le ciel et ses nuages de beau temps que font luire les toits et les tours de Vézelay: c’est Vézelay que supporte le ciel et les astres”. Lá está também alguém, uma outra amorosa que não tinha nada de comum com Vézelay nem com Maria-Madalena, mas nela viveu a grande paixão. Para que ela esteja lá, jacente, foi preciso que Paul Claudel, o maior poeta da cristandade, a encontrasse, há quase um século, na China. Rosalia, uma jovem sedutora, a bordo do navio, por quem Claudel apaixonou-se perdidamente. Foi esta Rosalia que, com Madalena, transformou o rochedo Vézelay em terra de fogo. Isto é verdadeiro ou falso? Pesquisar como uma alma sublime e louca pode chegar até nós, como o sol, depois de ter incendiado parte do Globo. Claudel tinha trinta e dois anos quando ele a encontrou e porque era um homem de desejo o milagre e o gênio se encontraram e fizeram de Vézelay o palco de sua paixão, com uma única explicação, escrita pelo grande poeta sobre a sepultura do seu grande amor: “Seule la rose est assez fragile pour exprimer l’éternité...”.
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Falamos freqüentemente de Vézelay lembrando o mistério, a lenda. Assim foi com todos aqueles que penetraram na alma daquele lugar, Saint-Exupéry, Romain Rolland, Claudel, Camus, os mais lembrados. Todos se deixaram tocar pelo santuário de nossa civilização que ali está, os que vieram buscar luz, os que vieram inspirar-se, os santos que vieram venerar as relíquias de Maria Madalena antes de partir para Compostela ou para a Cruzada. É a catedral da luz com uma obra prima em escultura do século XII (1120 – 1135) que mostra, no átrio, Cristo em seu trono, estendendo suas mãos – das quais partem raios de luz – em direção aos apóstolos. Todos os seus vitrais produzem o clarão resplandecente que penetra de forma seqüenciada no piso de pedras quase milenárias.
Já tendo percorrido o templo grandioso, preparando o retorno e seguindo o conselho de Jules Roy – que recomenda fazer tudo lentamente, para que você se submeta ao infinito –, quando uma janela aberta, com uma velha dama sentada fazendo tricot, chamou atenção. Ainda com traços de beleza bem guardada, maquillage bem colocada, vestimenta bem adequada para o entardecer, olhar vivo interessado como a mostrar que, mesmo no limiar dos noventa anos, ainda existe interesse e curiosidade para desvelar. Era irrecusável a parada. O dialogo se estabeleceu, a curiosidade pelo Brasil presente e a convergência de interesses sobressaiu. Atrás da velha senhora estava um lindo piano de tempos imemoriais, um legítimo F. Elcke (Paris), Medaille d’or, que havia sido muito usado – sete, oito décadas, um século? – como os dedos alongados da antiga pianista deixavam à mostra, agora, porém, impossibilitados pela artrose avançada. Mas alguns acordes foram apresentados, mostrando o envelhecimento do belo instrumento coberto de rádica, ainda em bom estado de conservação. Fez parte, por certo, das fantasias e dos mistérios da cidade mágica, na volta para Auxerre.
É Auxerre la capitale de la basse Bourgogne e se orgulha de sua catedral e suas casas antigas com fachadas de madeira, tão magnificamente celebradas pela poetisa Marie Nöel, a Cora Coralina de lá. Construída do século XIII ao século XVI, a catedral Saint – Etienne é dedicada ao primeiro mártir do cristianismo. Harmonia, leveza e também uma insuspeitada abundância de luz fazem do belo edifício uma obra prima sutil da arte gótica. Suas dimensões, relativamente modestas diante das grandes catedrais de Amiens, Reims, Nôtre-Dame, talvez ajudem a afirmar-lhe a grande elegância, sendo a quinta igreja edificada no local onde hoje está, dominando do alto o esplendido panorama sobre o rio Yonne.
A cidade de Auxerre é o ponto ideal para pesquisar o vasto mundo que a vignoble da região contempla. O restaurante Barnabet (Guide Rouge, uma merecida estrela) é o rendez – vous dos gourmands e dos gourmets. Elegante sala em tons pastel ou terraço, com uma cozinha sofisticada e uma carta de vinhos valorosa. Sala clássica, estilo alegre com quadros surrealistas colocados sobre paredes com predomínio do amarelo. Cozinha com ambientação tecnológica, mostrando o chef que trabalha aos olhos dos clientes, como se recomenda nos restaurantes reputados que se orgulham da imagem de seus diretores e a oferecem aos clientes. Mantendo a tradição, veio ao salão cumprimenta-los, alguns enochatos, por certo, dando explicações sobre os pratos e mostrando o privilégio em recebe-los para uma mesa irretocável, composta de miroir d’ecrevisses aux amandes et aux cerises, filet de rouget croustillant en couronne d’artichaut / basilic, noix de veau rôti. Vinho: Bourgogne Clos de la Chainette de Auxerre 2002 Domaine de René Bourgeon.
A bela cidade de Chablis fica a apenas 21 Km. de Auxerre e lá está o restaurante Hostellerie Des Clos, de Michel Vignaud, com uma estrela gloriosa no Guide Rouge. Restaurante elegante, com um agradável jardim, contemplando uma carta de vinhos Chablis e Bourgogne definitiva pela variedade de itens da região. É uma etapa de charme no coração da cidade. A decoração tem a marca do tradicional burgundy com barra mostarda, quadros clássicos, gravuras e um piso de pedra vinte por vinte. O vinho certamente foi um Grands Crus 1999 Moutonne Domaine Long – Depequit, arrancando do sommelier, a propósito da escolha: “C’est quelque chose!”. Este monumento veio acompanhando oeufs em meurette à Irancy (um prato típico da região) e poêlée de St. Jacques, crème de chou fleur caramelisée et truffe mélonosporum. Finalização esplendorosa: Marc de Chablis Pic 1er. Domaine Régnard.
É típico em Chablis a andouillette, sendo seu maior charcutier Marc Colin, que trabalha com numerosas especialidades bourguignonnes e chablisiennes, tendo recebido a medalha de ouro de 1993 pelo seu pâté de coelho e a medalha de prata no mesmo ano pelas suas andouillettes.
O circuito continua, sempre dentro de um raio de quarenta quilômetros, numa alternancia fascinante e que alcança as cerejeiras em flor e as vinhas coloridas. É o período em que os pequenos produtores instalam, à margem das estradas distritais, seus estandes de venda de caixas de cerejas. E, ao longo da rota, a escolha mais difícil: os vignerons de St-Bris, Irancy, Chitry ou Coulanges-la-Vineuse? A opção foi começar por St-Bris-le-Vineux. Alí está a Maison du Vignoble Auxerrois, um caveau coletivo que apresenta mais de vinte e cinco vinhos selecionados entre os melhores da região e que não espera senão uma coisa: que o cliente vá até lá e faça a sua degustação, colhendo o prazer que se aguarda. A relação é inesgotável mas a bela vendedora encarregou-se com grande proficiência da escolha, trazendo, em seqüência, o simples Bourgogne Aligoté Felix &amp; Fils. 2003, Domaine Saint Prix Côtes d’Auxerre Bersan et Fils 2003, crescendo em qualidade o Saint-Bris 2004 Mis em bouteille à la proprieté Bailly-Lapierre, o surpreendente Côtes d’Auxerre 2003 Pinot Noir (na Bourgogne só temos uva rouge pinot noir) Domaine Anne Goisot Arnaud, e, por fim, um espetacular Bourgogne Côtes d’Auxerre Cristophe Auguste 2003.
Na continuação, a pequena cidade de Irancy, situada num vale cercado de árvores frutíferas que produz vinho rouge, os mais reputados da região, recentemente graduados com o credenciamento AOC. E aí o que se irá recomendar é o ambiente mais felliniano possível fora da Roma de Fellini, a saber, o Domínio da família Colinod, Jean – Pierre e Anita. De camisa social e gravata Jean – Pierre cuidava da finalização das suas garrafas, já tendo feito a sua própria prolongada degustação diária antes da chegada dos visitantes. Ao tempo em que recebe os clientes, abre um largo sorriso de alegria de viver, coloca rotulo, rolha e o ano da produção. E seus produtos ajudam a engrandecer a qualidade da produção vinícola da região. Ele propicia uma degustação primorosa, sendo mesmo difícil imaginar que alguém tão ocupado em fazer a sua própria degustação, receber as visitas e colocar rótulos e rolha em seus vinhos, possa fazer, ao mesmo tempo, a seqüência que se deve perceber numa cave de degustação. O momento culminante foi o vinho Irancy Les Mazelots 2002, appelation Irancy Controleé Pinot Noir et Cesar, uma associação entre as uvas Pinot Noir e César, a última trazida pelos legionários romanos e ainda persistente na região da Borgonha, com grande sucesso na mélange com a uva típica do terroir. Ao anunciar o retorno a Auxerre para o almoço M. Colinot imediatamente reagiu, sugerindo um restaurante local, Le Soufflot, de Elisabeth e Denis Celis, tendo como chef cuisinier Maxime Martin Orea. Uma surpresa naquele sítio macróbio e, já àquela hora, absolutamente embriagado. Escolhas determinadas pela ambientação, que sugeria pratos simples e consagrados pelas mesas à volta, tudo isto muito bem turbinado por um legitimo Colinot Milésime 2.000 Annick Navarre (uma mulher no ramo, sim, uma experiente viticultrice!).
Depois de evocar a santidade, o percurso sagrado que termina em Compostela, de evocar Joana D’Arc (a França é o único país que tem como padroeira uma mulher, virgem e guerreira), a Santa que passou por Auxerre e rezou na Catedral, as grandes figuras históricas de Saint Germain, fundador do primeiro mosteiro da região e pregador na Bretanha romana (a Inglaterra de hoje), a grande personalidade que consagrou a jovem Geneviéve, São Patrício, apostolo da Irlanda, que foi diplomado em Auxerre por Saint Germain, seguiram-se os belos encontros com os deslumbrantes domínios da vinha, como descrito. “A virtude cardinal na arte de bem beber é a curiosidade”. Este adágio será precioso para ser utilizado no meio das vinhas dessa parte da Borgonha, uma surpresa na seqüência de outra que vem desde a magia do fenômeno religioso até os prazeres da boa mesa.
Em matéria de vinho nenhum preceito é definitivo. É preciso primeiramente desvelar, explorar a vinha, encontrar os produtores e, sobretudo, degusta-los, para encontrar enfim o vinho que tocará concretamente nosso imaginário e nosso palato, longe, bem distante da soberba ditadura da etiqueta. E isso é possível numa região como esta, pela sua simplicidade e pela amabilidade de ses gens sympatiques. É justamente nessas vinhas menos turísticas que se pode exercer cabalmente nossa esperteza, descobrir os magníficos petits vins e a complexibilidade de um grand cru sem seguir os grandes roteiros obrigatórios.
<h1>Referências bibliográficas</h1>
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<li>Le Guide Vert, Les Thématiques, Escapades autour de Paris, Michelin, Editions des Voyages;</li>
<li>Le Guide Vert, Bourgogne Morvan, Avec hôtels &amp; restaurants, Michelin, Éditions des Voyages;</li>
<li>La France à votre table, Routes Gastronomiques des Régions Françaises, 1974, Imprimé em France, Réalisation “Le Carrousel Publicité”;</li>
<li>Auxerre, Guide, Édition 2004-2005;</li>
<li>Guia Visual, Folha de São Paulo, França (Borgonha e Franche-Conté);</li>
<li>Jules Roy, Vézelay Guide sentimental, Nouvelle édition, L’Or des Édoiler, 2004</li>
<li>Marie Nöel, Lês Chansons et les Heures, Le Rosaire des joies, Galimard, 1983.</li>
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A magia da história

Na rota de Bourgogne