Desde 2020, em observância ao Decreto nº 10.139/19[1], o Banco Central do Brasil tem empreendido grandes esforços na revisão e consolidação de seu arcabouço regulatório. No dia 6 de outubro deste ano, foi a vez da norma matriz da disciplina dos arranjos de pagamento[2], da famigerada Circular BCB nº 3.682/13 – regulação que, a partir da última segunda-feira, dia 1º de novembro de 2021, foi devidamente substituída pela Resolução BCB n° 150[3].
Inicialmente, cumpre ressaltar que a publicação da Resolução 150[4] é extremamente oportuna. Afinal, a Circular 3.682 havia sido emanada do Banco Central logo após a edição da Lei dos Meios de Pagamento – Lei nº 12.865/13 – consubstanciando o dever do regulador de, em até 180 dias da publicação da referida lei, definir as condições mínimas para prestação dos serviços decorrentes dos arranjos de pagamento[5]. No entanto, com a evolução desse mercado – seja em razão das novas tecnologias de pagamento, seja em decorrência dos mais diversos desafios enfrentados por agentes entrantes – a Circular 3.682 revelava-se uma verdadeira colcha de retalhos. Na prática, observaram-se incontáveis alterações promovidas pelo Banco Central a fim de adequar a Circular 3.682 às necessidades da indústria que se impuseram ao longo dos últimos oito anos.

São exemplos disso: em 2015, a modificação que instruiu a implementação da liquidação centralizada de transações decorrentes de arranjos de pagamento de cartões (do sistema Siloc, operado pela Câmara Interbancária de Pagamentos)[6]; em 2016, a inclusão que determinou a abertura de arranjos de pagamento instituídos por relevantes bandeiras de cartões (e.g. Elo e Hiper), precisando o prazo para adoção de medidas que efetivassem a ampla participação dos mais diversos emissores e credenciadores do mercado[7]; e em 2018, a alteração que introduziu o canal específico de comunicação entre bandeiras e seus participantes, para que esses pudessem se manifestar em relação a propostas de alterações nos regulamentos dos arranjos que impactassem sua atuação ou modelo de negócio[8].
E é exatamente sobre este canal, enquanto mecanismo efetivo de governança no âmbito dos arranjos de pagamento de cartões, que a análise a seguir se dedica. Isso porque a Resolução 150 denota fortalecer essa relevante ferramenta utilizada pelas principais bandeiras do país em benefício de seus padrões de transparência.[9]
Canal de consulta aos participantes dos arranjos de pagamento
Durante a vigência da Circular 3.682, caso desejassem alterar determinadas disposições constantes dos regulamentos de seus arranjos de pagamento[10] – e a depender da temática –, bandeiras de cartão deveriam ter que (a) submeter a nova redação para aprovação prévia do Banco Central[11]; e, em determinados casos, (b) consultar os participantes de seu arranjo antecipadamente para que pudessem apresentar propostas, sugestões e manifestações em relação às alterações planejadas[12].
Enquanto nova norma matriz responsável por consolidar as regras que instituem regime regulatório aplicável aos arranjos de pagamento, a Resolução 150 inova ao fortificar o referido mecanismo de governança, pois não só (i) amplia o rol de temáticas constantes dos regulamentos que, para serem alteradas, implicam a submissão de pedido de autorização prévia ao Banco Central, mas também (ii) determina que, em todos os casos, tal pedido seja precedido de consulta aos participantes do arranjo[13].
Assim, ao alargar os temas de que trata o regulamento do arranjo que, uma vez objeto de modificações, devem ser submetidas à autorização prévia do Banco Central para devida implementação, a Resolução 150 assegura maior alinhamento entre as previsões do regulamento dos arranjos de pagamento instituídos pelas bandeiras de cartões e a regulação emanada do Banco Central, evitando descompassos entre regras privadas e a regulação vigente – o que poderia, além de conferir insegurança aos participantes do arranjo ou imputá-los custos operacionais desarrazoados, gerar assimetrias relevantes entre eles.
Da mesma forma, a Resolução 150 reforça a segurança jurídica e a transparência na relação entre as bandeiras de cartões e os participantes dos seus arranjos de cartões – e.g. emissores, credenciadores e subcredenciadores –, haja vista que, anteriormente à submissão dos pedidos de alterações dos regulamentos ao Banco Central, as bandeiras devem obrigatoriamente consultar os participantes dos arranjo. Nesses casos, inclusive, as consultas devem ser realizadas com no mínimo 21 dias de antecedência[14], ressalvados as urgências devidamente justificadas pela bandeira aos participantes. Isto é, no momento da submissão de pedido de alteração do regulamento ao Banco Central, este será instruído com[15]:
- a descrição sucinta da proposta de modificação no regulamento, conforme apresentado aos participantes e o resumo consolidado dos impactos relatados por aqueles que se manifestaram (segmentado por modalidade de participação e porte), acompanhado de avaliação da bandeira quanto ao relatado;
- a quantidade de participantes (segmentados por modalidade de participação e porte) que se manifestaram favoráveis, favoráveis com ressalva, contrários e indiferentes a cada proposta, exatamente como declararam os manifestantes; e
- a lista dos participantes que se manifestaram (segmentados por modalidade de participação e porte).
A seguir, analisam-se as temáticas das disposições dos regulamentos das bandeiras que, uma vez alteradas, deveriam ser submetidas à autorização prévia do Banco Central ou comunicadas antecipadamente aos participantes do arranjo para eventuais manifestações, à luz da Circular 3.682 vis-à-vis o que determina a nova Resolução 150.
Temas |
Antiga
Circular BCB nº 3.682/13 |
Nova
Resolução BCB nº 150/21 |
Participação no Arranjo |
condições de participação no arranjo que tenham o potencial de limitar a competição no provimento de serviços de pagamento por diferentes participantes do arranjo
|
condições relacionadas aos requisitos de participação, responsabilidades próprias do participante ou a ele atribuídas em decorrência seu relacionamento com terceiros contratados |
Autorização prévia BCB
Sim[16] |
Consulta aos Participantes
Sim[17] |
critérios de participação |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[18] |
Autorização prévia BCB
Não |
Consulta aos Participantes
Sim[19] |
Processos Decisórios |
governança dos processos decisórios no âmbito do arranjo |
governança dos processos decisórios no âmbito do arranjo, tais como resoluções de disputas, processo de arbitragem, penalidades e critérios de autorização e de rejeição de transações |
Autorização prévia BCB
Sim[20] |
Consulta aos Participantes
Sim[21] |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[22] |
Gestão de Riscos |
mecanismos de gerenciamento de riscos incorridos pelos participantes |
mecanismos de gerenciamento de riscos financeiros e operacionais incorridos pelos participantes |
Autorização prévia BCB
Sim[23] |
Consulta aos Participantes
Sim[24] |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[25] |
Liquidação das Transações |
liquidação das transações e disponibilização de recursos ao recebedor |
prazos de liquidação das transações entre os participantes e de disponibilização de recursos ao recebedor |
Autorização prévia BCB
Sim[26] |
Consulta aos Participantes
Não |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[27] |
Informações Sensíveis |
acesso e mecanismos de tratamento de informações sensíveis, especialmente aquelas relacionadas a aspectos concorrenciais |
fornecimento de informações cadastrais e transacionais de usuários por participante ao instituidor ou a outro participante |
Autorização prévia BCB
Não |
Consulta aos Participantes
Sim[28] |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[29] |
Estrutura de Tarifas e Preços |
estrutura de preços, de tarifas e de outras formas de remuneração definidas no âmbito do arranjo, cobradas pelo instituidor do arranjo de seus participantes ou devidas entre participantes do arranjo
|
alteração na estrutura de preços, de tarifas e de outras formas de remuneração definidas no âmbito do arranjo, cobradas pela bandeira de seus participantes ou devidas entre participantes do arranjo, quando referentes: (a) às transações de pagamento e aos processos relacionados ao seu fluxo; (b) aos instrumentos de pagamento emitidos; (c) ao compartilhamento de infraestrutura tecnológica entre participantes do arranjo; (d) aos processos de homologação e de acesso aos sistemas da bandeira necessários à prestação do serviço de pagamento; (e) ao processo de resolução de disputas entre participantes, incluindo o procedimento de devolução de recursos; (f) ao uso da marca; e (g) ao fornecimento de informações destinadas à apuração das posições dos participantes com vistas à realização da liquidação das transações ou conciliação de dados.
São alcançadas pelas hipóteses acima a criação e a extinção de tarifas, alteração na definição do participante pagador ou do participante recebedor, alteração do fato gerador que dá origem à tarifa ou alteração em processos que impactem diretamente o fluxo do pagamento de tarifas entre participantes |
Autorização prévia BCB
Não |
Consulta aos Participantes
Sim[30] |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[31] |
Interoperabi-lidade entre Arranjos |
critérios de interoperabilidade |
critérios e regras que regem a interoperabilidade entre participantes do arranjo ou entre arranjos de pagamento que afetem participantes
|
Autorização prévia BCB
Não |
Consulta aos Participantes
Sim[32] |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[33] |
Serviços de Terceiros |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Não |
critérios ou condições para a terceirização de atividades que tenham o potencial de limitar a competição no provimento de serviços de pagamento por diferentes participantes
|
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[34] |
Modalidades de Participação |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Não |
previsão de novas modalidades de participação, exclusão de modalidades existentes e alterações nas atribuições e responsabilidades de cada modalidade
|
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[35] |
Critérios de Participação |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Não |
critérios e requisitos de admissão, permanência, suspensão e exclusão de participantes
|
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[36] |
Custos e Riscos |
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Não |
alterações nos direitos/deveres que tenham potencial de elevar custos ou riscos dos participantes ou, ainda, de limitar sua atuação no âmbito do arranjo
|
Autorização prévia BCB +
Consulta aos Participantes
Sim[37] |
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|
|
Ainda, o canal de comunicação entre bandeiras e participantes deve ser consubstanciado por um sistema eletrônico de consulta para envio de manifestações por meio de cadastro e acesso individual, além de garantir que os conteúdos estejam em português com a identificação da localização do tema objeto da consulta no regulamento e o teor de cada alteração[38]. Compete, assim, às bandeiras a resposta tempestiva aos participantes e a manutenção do registro das manifestações e correspondentes respostas pelo período mínimo de um ano[39].
Conclusões
É de suma importância – ao bom funcionamento mercado de cartões brasileiro – o alinhamento retilíneo entre as regras constantes do regulamento dos arranjos de pagamento e a regulação financeira aplicável do Banco Central.
Nesse sentido caminha a Resolução 150. Ao primar pela transparência nas relações jurídicas entre bandeiras de cartões e participantes de seus arranjos, acaba por tonificar um mecanismo de governança que confere previsibilidade e segurança jurídica para as mais diversas modalidades de participantes do arranjo – instituições emissoras, credenciadoras, subcredenciadoras, iniciadoras de transações de pagamento e instituições domicílio. Mecanismo que – ousamos dizer – tem como principais beneficiários os usuários finais da transação, ou seja, consumidores e varejistas. Afinal, o canal nada mais é que um elemento que aproxima as instituições que detêm relação com pagadores e recebedores, cientes de suas necessidades e anseios, com as instituidoras das regras – as bandeiras de cartão.
No entanto, a ampliação de escopo e alcance desse canal pode não ser tão simples, haja vista que eventuais alterações no regulamento demandarão acompanhamento ainda mais próximo pelo Banco Central a fim de que as melhorias almejadas não comprometam a celeridade de atualizações necessárias aos regulamentos.
[1] O Decreto nº 10.139/19 dispõe sobre a revisão e a consolidação dos atos normativos inferiores a decreto editados por órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
[2] Arranjo de pagamento consiste no conjunto de regras e procedimentos que disciplina a prestação de determinado serviço de pagamento ao público (e.g. arranjos de cartões de crédito, débito e pré-pago). As regras de um arranjo são determinadas por seu instituidor (e.g. bandeira de cartão) e consolidadas em um regulamento, nos termos da regulação financeira aplicável.
[3] Considerando que, nos termos do art. 2º, do Decreto nº 10.139/19, atos normativos editados por órgãos colegiados devem ser intitulados resoluções, novas deliberações da Diretoria Colegiada do Banco Central são denominadas Resoluções BCB, substituindo as antigas Circulares BCB, a exemplo da Resolução BCB nº 150/21.
[4] A Resolução BCB nº 150/21 consolida o regime regulatório aplicável aos arranjos de pagamento, contemplando as principais regras que tratam da prestação de serviço de pagamento no âmbito dos arranjos integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), assim como os critérios de acordo com os quais determinados arranjos não integrarão o SPB – e.g. por apresentarem menos risco ao ecossistema.
[5] Vide art. 15, §1º, da Lei nº 12.865/13.
[6] Vide Circular BCB n° 3.765/15.
[7] Vide Circular BCB n° 3.815/16.
[8] Vide Circular BCB nº 3.925/18.
[9] Vide art. 7º, VI, da Lei nº 12.865/13, que estabelece o dever de observância do princípio da transparência pelos arranjos de pagamento.
[10] Regulamento do arranjo de pagamento é o documento publicado por seu instituidor que consolida os deveres, obrigações e direitos dos participantes daquele arranjo. Os regulamentos de arranjos de pagamento instituídos pelas principais bandeiras do País podem ser encontrados na internet.
[11] Vide art. 18, do Anexo I à Circular BCB n°3.682/13.
[12] Vide art. 3º, §2°, do Anexo I à Circular BCB n°3.682/13, e art. 2º, da Carta Circular BCB nº 3.943/19.
[13] Vide art. 20, 27 e 28, do Anexo I à Resolução BCB n° 150/21.
[14] Nos casos em que as alterações no regulamento não dependem de autorização prévia do BCB, a comunicação deve ocorrer com antecedência mínima de 15 dias da entrada em vigor, ressalvados os casos de urgência devidamente justificada pela bandeira aos participantes, conforme disposto no art. 28, §1º do Anexo I à Resolução BCB n° 150/21.
[15] Vide art. 28, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[16] Vide art. 18, III, do Anexo I à Circular BCB n° 3.682/13.
[17] Vide art. 2, III, Carta Circular BCB n° 3.943/19.
[18] Vide art. 20, III do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[19] Vide art. 2, III, Carta Circular BCB n° 3.943/19.
[20] Vide art. 18, IV, do Anexo I à Circular BCB n° 3.682/13.
[21] Vide art. 2, V, Carta Circular BCB n° 3.943/19.
[22] Vide art.20, VI do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[23] Vide art. 18, V do Anexo I à Circular BCB n° 3.682/13.
[24] Vide art. 2, IV, Carta Circular BCB n° 3.943/19.
[25] Vide art. 20, VII e VII, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[26] Vide art. 18, VI, do Anexo I à Circular BCB n° 3.682/13.
[27] Vide art. 20, VIII I, II e III, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[28] Vide art. 2, II, da Carta Circular BCB n° 3.943/19.
[29] Vide art. 20, XI, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[30] Vide art. 2, I, da Carta Circular BCB n° 3.943/19.
[31] Vide art. 20, IX, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[32] Vide art. 2º, III, da Carta Circular n° 3.943/19
[33] Vide art. 20, X, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[34] Vide art. 20, V, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[35] Vide art. 20, I, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[36] Vide art. 20, II, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[37] Vide art. 20, IV, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[38] Vide art. 28, §2°, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.
[39] Vide art. 28, §3°, do Anexo I à Resolução BCB n°150/21.