Caio Ferreira Silva

Lucas Marinho

O desenvolvimento do regime regulatório brasileiro aplicável às atividades de depósito centralizado, que compreende a guarda centralizada de ativos financeiros e de valores mobiliários, fungíveis e infungíveis, o controle de sua titularidade efetiva e o tratamento de eventos a eles atinentes, coincide com o aperfeiçoamento e a popularização de estruturas de securitização no Brasil. Esse modelo de regulação tem convergido para a criação de veículos e instrumentos voltados a conferir cada vez mais segurança jurídica a operações estruturadas das mais variadas modalidades, porém que dependem, em grande medida, da propriedade fiduciária de ativos financeiros e de valores mobiliários.
“Securitização” ou “titularização”, em linhas gerais, consiste em uma técnica financeira de se transformar ativos relativamente ilíquidos ou de baixa liquidez (i.e., para os quais geralmente não há mercado real) em títulos e valores mobiliários líquidos ou mais facilmente negociáveis. O processo de securitização tipicamente envolve (i) a transferência de um direito creditório a um veículo de investimento — e.g., um fundo de investimento em direitos creditórios (Fidc), uma sociedade de propósito específico (SPE) ou uma companhia securitizadora, entre outros —, o qual passa a ser o novo titular dos respectivos direitos decorrentes de uma relação creditícia subjacente e previamente constituída; e (ii) a emissão, pelo veículo de investimento em questão, de títulos ou valores mobiliários lastreados nos respectivos direitos creditórios a ele transferidos, os quais são usualmente subscritos ou adquiridos por investidores no mercado de capitais e podem contar com mecanismos de reforço de crédito ou mitigação de riscos, a exemplo de garantias criadas sobre os direitos creditórios via transferência de sua propriedade fiduciária ao veículo de securitização.
Securitizações têm ganhado relevância e atenção do mercado, especialmente a partir do desenvolvimento do ecossistema de fintechs no Brasil e do florescimento da <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tendencias-e-amadurecimento-do-ecossistema-de-pagamentos-na-america-latina-10062022">indústria de meios de pagamento</a>, setores que encontraram na técnica da securitização uma importante forma de captação de recursos junto ao mercado, antecipação de liquidez e viabilização de produtos financeiros diversificados.
A intersecção entre os temas de securitização e depósito centralizado de ativos tem duas principais vertentes. Os depositários centrais tanto realizam a guarda dos valores mobiliários emitidos pelo veículo de securitização quanto permitem o registro dos direitos creditórios que o lastreiam. Com isso, trazem higidez às operações de mercado de capitais e segurança jurídica a estruturas que outrora eram vistas sob a ótica de difícil governança operacional e alto risco, sobretudo no que tange aos desafios para a identificação de lastros e sua infungibilização em cenários de stress.
Nesse cenário, a disciplina introduzida pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12810.htm">Lei 12.810</a>, de 15 de maio de 2013, acerca do exercício da atividade de depósito centralizado e da constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado possibilitou um importante e desejado avanço na forma de identificação, segregação e acompanhamento de ativos financeiros e valores mobiliários que servem de garantia a operações financeiras, de tal forma que todo o respectivo ciclo desses ativos — da sua emissão ao resgate ou liquidação —, pode ser hoje registrado em entidade supervisionada pelo Banco Central e pela Comissão de Valores Mobiliários. Tal realidade alçou os depositários centrais ao papel de verdadeiros gatekeepers do sistema por meio do controle da titularidade efetiva dos ativos e dos eventos a eles relacionados de forma centralizada (e.g., pré-pagamento ou pagamento não programado, amortização extraordinária, etc.).
O regime instituído pela Lei 12.810/2013 privilegia a eficiência e goza de solidez ao estabelecer a necessidade de transferência de ativos financeiros e valores mobiliários ao depositário central no regime de titularidade fiduciária, já que por força de lei esses ativos transferidos fiduciariamente ao depositário central não se comunicam com o patrimônio geral tampouco com outros patrimônios especiais das entidades qualificadas como depositárias centrais, não sendo assim passíveis de constituição de garantia pelas entidades qualificadas como depositários centrais ou de responder por suas respectivas obrigações e passivos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Com o depósito central, portanto, viabiliza-se a infungibilização dos ativos financeiros e valores mobiliários que lastreiam garantias também no plano operacional (além do jurídico), assim combatendo assimetrias informacionais, ineficiências sistêmicas e externalidades relativas à identificação, existência, titularidade e exigibilidade de ativos e valores mobiliários que servem de lastro ou garantia a operações de securitização, elementos esses que em alguns casos constituem fatores de risco relevantes em determinadas transações.
No que tange à prática de operações de securitização cursadas sob a vigência da Lei 12.810/2013, destaca-se como notável inovação a possibilidade — além do depósito centralizado em si —, de constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro. O registro de ônus e gravames decorre da disciplina introduzida pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13476.htm">Lei nº 13.476</a>, de 28 de agosto de 2017, e é realizado exclusivamente nas entidades registradoras ou nos depositários centrais onde os ativos financeiros e valores mobiliários estiverem registrados ou depositados, independentemente da natureza do negócio jurídico a que digam respeito, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros.
Por se tratar o registro em questão de procedimento mais simples e menos custoso se comparado ao depósito centralizado, cria-se principalmente para direitos creditórios pulverizados e de menor valor, por exemplo, a possibilidade de também se valerem do arcabouço legal acima referido, que assegura a escrituração, o armazenamento e a publicidade de informações relativas a esses ativos registrados e respectivas transações a eles relacionadas, independentemente de serem depositados em central depositária ou não.
Essa inovação permitiu a expansão do rol de atividades das entidades registradoras, que deixaram de estar restritas a operações realizadas no âmbito do mercado de capitais ou de pagamentos e passaram a compreender outras transações realizadas entre as instituições financeiras e seus clientes, afigurando-se, em sentido mais amplo, como um mecanismo apto a, de forma centralizada, aperfeiçoar a constituição e o controle de garantias, auxiliar a redução da assimetria informacional na análise de crédito, fomentar a oferta de crédito e a redução do spread bancário ao contribuir para a diminuição dos custos indiretos relacionados à obtenção e à verificação de dados atinentes a ônus e gravames dispersos em cartórios pelo país.
Nesse sentido, a alocação da competência de registro dos Cartórios de Registros de Títulos e Documentos (CRTDs) aos depositários centrais surge como um importante avanço no marco legislativo aplicável à matéria. Como se sabe, o aperfeiçoamento da garantia constituída por meio de direito real (e.g., cessão fiduciária, alienação fiduciária, etc.) depende de tal registro por determinação do artigo 1.361 do Código Civil, o qual passa a ser realizado, para os ativos financeiros e valores mobiliários objeto de depósito central, de forma exclusiva nos depositários centrais, tendo o registro nessas entidades o condão de constituir a garantia e lhe assegurar eficácia perante terceiros.
As estruturas de securitização que se utilizam de garantias reais como técnica de mitigação de risco ou de reforço de crédito se beneficiam desse regime, o qual permite a estruturação de produtos de antecipação de recebíveis inovadores com base em um marco regulatório moderno e alinhado aos princípios do Financial Stability Board (FSB).
Embora notemos esse claro avanço em relação à constituição de garantias, é de se observar que o arcabouço da Lei 12.810/2013 teve um impacto ainda limitado em operações de securitização de forma geral, de maneira que nos parece ainda haver um potencial inexplorado pelo legislador nessa seara. Uma vez que as estruturas de securitização tipicamente englobam a transferência de direitos creditórios entre partes, tal transferência é geralmente caracterizada juridicamente como uma cessão de crédito e regida pelos artigos 286 a 298 do Código Civil, no título que trata da transmissão das obrigações, a saber<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>:
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 60px;">“Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação”.</blockquote>
Trata-se de negócio jurídico bilateral, por meio do qual o credor (cedente) cede o seu direito de crédito em face do devedor ao veículo de securitização (cessionário), o qual passa a ser o titular do crédito e dos respectivos acessórios perante o devedor para todos os fins.
Para que um instrumento de cessão de crédito seja válido entre as respectivas partes (i.e., cedente e cessionário), vale notar que é necessário que se observe os respectivos requisitos de validade do negócio jurídico previstos nos artigos 104 e 107 do Código Civil, quais sejam: (i) agente capaz; (ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e (iii) forma prescrita ou não defesa em lei.
Em relação à forma, a legislação brasileira assegura a liberdade para se contratar uma cessão de crédito. Ou seja, não condiciona a validade da declaração de vontade ao cumprimento de qualquer formalidade específica para tal finalidade. Entretanto, o artigo 288 do Código Civil determina que é ineficaz em relação a terceiros a transmissão de um crédito se não se celebrar mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades de que trata o <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm#art654">parágrafo 1º do artigo 654</a> do Código Civil. Adicionalmente, a Lei de Registros Públicos (Lei 6.105, de 21 de dezembro de 1973) estabelece que a cessão de créditos depende de registro em Registro de Títulos e Documentos para surtir efeito em relação a terceiros.
E é exatamente nesse ponto que se vislumbra um desafio à realização de operações de securitização em ambiente de depósito centralizado. Se, por um lado, a disciplina moderna e inovadora da Lei 12.810/2013 outorga eficácia perante terceiros aos ativos e às garantias inscritos no depósito centralizado, de outro, nota-se que o mesmo regime ainda não se aplica às cessões de crédito, tendo o legislador restringido o escopo de aplicação da norma nesse particular.
O mercado brasileiro testemunhou nos últimos anos o desenvolvimento e a pujança do mercado de antecipação de recebíveis. Apenas em 2020, estima-se que R$ 287 bilhões foram antecipados pelas credenciadoras<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Grande parte dessas antecipações se beneficiou de estruturas de securitização implementadas por meio de Fidcs ou companhias securitizadoras, impulsionadas que foram pela edição da Resolução nº 4.734, de 28 de junho de 2019, pelo Conselho Monetário Nacional, e da Circular nº 3.952, de 27 de junho de 2019, pelo Banco Central. Esses normativos normas exigem o registro das transações de pagamento realizadas no âmbito do Sistema de Pagamentos Brasileiro em entidade registradora.
Embora os veículos estruturados para viabilizar a securitização de recebíveis de cartão de crédito por credenciadoras e subcredenciadoras tenham passado a adquirir direitos creditórios que, por exigência regulatória, devem ser registrados em entidade registradora ao abrigo da Lei 12.810/2013, nota-se que a eficácia dessas cessões perante terceiros continua dependendo do registro do contrato ou instrumento de cessão em CRTD. De outra parte, eventual garantia constituída sobre os mesmos direitos creditórios já se vale da inovação legislativa referente ao registro em depositário central. É dessa assimetria legal e regulatória que se cogita nessas linhas, cujo equacionamento teria o potencial de ampliar o já vasto espectro de benefícios introduzidos pela Lei 12.810/2013 a um mercado estratégico para o desenvolvimento do país.
Com efeito, muitos seriam os ganhos de eficiência, escala e segurança jurídica caso as cessões de crédito gozassem do mesmo regime legal aplicável ao registro de garantias instituído pela Lei 12.810/2013, notadamente porque haveria o controle centralizado da efetiva titularidade (não apenas fiduciária) desses ativos financeiros que lastreiam uma enormidade de operações de securitização, o que também poderia contribuir para democratizar o acesso de pequenas e médias empresas à liquidez imediata de seus recebíveis por intermédio desse mercado.
O registro de cessões em cartórios, além de representar um custo relevante nas estruturas que não necessariamente se traduz em eficiência ou segurança das operações a que se refere, acaba se tornando mais uma burocracia legal do que efetivamente contribuindo para a higidez das operações de cessão e publicidade dos respectivos negócios realizados.
A Lei 12.810/2013 revelou-se um instrumento eficiente para incrementar a segurança jurídica e o controle da titularidade e constituição de garantias no que tange à securitização de recebíveis. Como próximo passo, é desejável para o mercado de securitização e para o país que esse mesmo regime, já testado, maduro e operacional, agora também possa ser escalado para outras áreas, particularmente a de cessão de direitos creditórios, que constituem o principal pilar das operações de securitização de recebíveis no Brasil.
O surgimento de tecnologias inovadoras e disruptivas como a infraestrutura blockchain, contratos inteligentes (smart contracts) e tokenização parecem ir nessa mesma direção e convergem para a diretriz de se buscar conferir cada vez mais confiabilidade e segurança a negócios e transações por meio da redução de ineficiências e de ferramentas que viabilizem a confirmação da existência, exigibilidade e titularidade de ativos e valores mobiliários em escala global. Parece ser essa a melhor vocação dos depositários centrais e registradores, cujas funções jurídica e social podem ter ainda mais protagonismo no mercado de capitais local.
Se o Direito de fato é fruto de uma realidade social e econômica, nos parece auspicioso relembrar nesse contexto a célebre lição de Montesquieu, no sentido de que “leis inúteis enfraquecem as leis necessárias”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Resta-nos torcer para que a Lei 12.810/2013 se torne cada vez mais útil e necessária para o desenvolvimento e a expansão do mercado de securitização brasileiro como um todo e assim materialize também em relação às cessões de direitos creditórios os ganhos de eficiência e segurança que a tornaram referência para o depósito centralizado e registro de títulos e valores mobiliários.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>    A atividade de depósito centralizado de ativos financeiros encontra-se disciplinada pelo Banco Central do Brasil no regulamento anexo à Circular nº 3.743, de 8 de janeiro de 2015.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>    A depender do direito creditório em questão, a transferência também pode ser dar por meio de endosso cambial, nos termos do Código Civil e da Lei Uniforme de Genebra (Decreto nº 57.663, de 24 de janeiro de 1966).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>    <a href="https://institutopropague.org/noticias/antecipacao-de-recebiveis-45-dos-pequenos-negocios-brasileiros-usam-pre-pagamento-de-cartao-aponta-pesquisa">https://institutopropague.org/noticias/antecipacao-de-recebiveis-45-dos-pequenos-negocios-brasileiros-usam-pre-pagamento-de-cartao-aponta-pesquisa</a>, disponível em 10.5.2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>    MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, Do espírito das leis (1748), São Paulo, Martin Claret, 2010, p. 604.

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JOTA

Há potencial inexplorado pelo legislador na área de operações de securitização

Lei 12.810/2013 e securitização de recebíveis: novas fronteiras?

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