Luiz Fernando Figueiredo

Tive o prazer de estar envolvido no desenvolvimento e implementação do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) enquanto diretor de política monetária do Banco Central, cargo que ocupei entre 1999 e 2003.
Naquela época, éramos um total de oito diretores sob o comando do economista Armínio Fraga e tínhamos um grande desafio pela frente: impedir que o Brasil voltasse à hiperinflação após o abandono do regime de câmbio fixo e desvalorização do real.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Essa equipe era a grande aposta do Fernando Henrique Cardoso (PSDB) para resolver a questão fiscal e os problemas envolvendo o câmbio e os títulos da dívida pública, então poderia parecer até loucura a proposta de realizar algo tão ousado no sistema de pagamentos nacional, mas fomos em frente.
O nosso foco, claro, não poderia ser outro senão a crise. Me lembro que no primeiro dia que entramos no Banco Central sentamos todos juntos em uma sala com o Armínio Fraga, que pegou um pequeno bloco de notas e, juntos, discutimos 21 medidas necessárias para debelar a crise.
Avaliamos desde os compulsórios até a alta de juros, além de uma série de questões administrativas que nos ajudariam a controlar os mercados e deixá-los dentro da normalidade.
Para tanto, também contamos com a ajuda do Departamento de Operações Bancárias e de Sistema de Pagamentos (Deban) e também do Departamento de Operações do Mercado Aberto (Demab) e do Departamento das Reservas Internacionais (Depin), esses dois últimos sob minha responsabilidade.
Com a situação já mais amena, a crise mais controlada, uns meses depois eu chamei o Luis Gustavo da Matta Machado, que era então chefe do Deban, para conversar após uma de nossas reuniões periódicas. O que me incomodava e queria saber dele é como poderíamos melhorar o sistema de pagamentos vigente, que havia sido feito como uma colcha de retalhos, sem organização e em um contexto difícil da história.
<blockquote class="jota-article__eye">Gosto de brincar que um sistema de pagamentos é como o sistema de luz de uma cidade: exige toda uma infraestrutura robusta e organizada e não pode, de maneira alguma, deixar de funcionar.</blockquote>
Da mesma maneira que a luz passa pelos cabos, os pagamentos feitos no Brasil passam por essa extensa rede nacional. Mas, claro que como qualquer outra coisa no mundo, ele pode ser bem planejado ou não. O nosso não era.
Quando isso acontece, um dos problemas mais sérios que podem ocorrer é a ausência de um sistema adequado de proteção para todo o sistema bancário. Naquela época, caso uma instituição financeira quebrasse e o Banco Central não fizesse nada a respeito, esse banco que faliu deixava de pagar seus compromissos com outros bancos e a chance de o sistema inteiro colapsar era grande.
Então, o Banco Central permitia que os bancos emitissem uma ordem de pagamento superior ao valor existente em suas contas de reservas bancárias junto ao BC, chamado de saque a descoberto. Teoricamente, o banco fazia essa operação e cobria o montante ao final do dia.
Na prática, quando a instituição não conseguia fazer isso, o BC se responsabilizava e ficava com o calote. Lá na ponta, isso vira uma dívida, que é cobrada de todos os cidadãos brasileiros. Pode até parecer algo bom porque impedia que o sistema financeiro quebrasse, mas o risco fiscal disso não justificava tal prática.
Sempre gostei de pensar no sistema financeiro como o corpo humano: o cérebro pode ser nosso órgão mais importante, mas sem o coração, ele não funciona. Ele precisa do sangue que é bombeado para todos os demais órgãos para se manter vivo. No sistema bancário é igual: ele recebe recursos de pessoas e empresas e repassa ao mercado na forma de crédito para outros indivíduos e companhias que precisam deles. Por isso, o chamo de coração do ambiente bancário.
Se pegarmos exemplos de países que deixaram seus sistemas financeiros quebrarem, as histórias são as piores possíveis, com recessões profundas que duraram muitos anos.
Nossa alternativa seria tentar deixar o Banco Central o mais preparado possível para um eventual colapso de alguma instituição financeira, mas sabendo que esse não é o mundo ideal.
Então, quando pensamos no sistema de pagamento, o primeiro passo era pensar em uma solução para acabar com isso, criando um fundo no qual os bancos tivessem uma salvaguarda entre si. Se um banco quebrasse, não dava para aceitar que ele levasse o resto do sistema junto.
O segundo passo foi aprimorar o que chamamos de mensageria entre instituições financeiras, com o objetivo de que elas tivessem uma relação mais integrada e online, considerando o que online significava há 20 anos. Assim, criamos um sistema de comunicação mais sofisticado, que permitia a compensação de créditos e débitos muito rapidamente, algo que teve um efeito positivo grande no país.
Os mais beneficiados foram os pequenos empreendedores ou pessoas sem acesso ao crédito. Antes, se essas pessoas queriam comprar algo, davam um cheque e havia todo um processo até a compensação dele e liberação da mercadoria. Era bastante demorado. A Transferência Eletrônica Disponível (TED) mudou completamente isso.
Outra mudança importante foi para o fechamento de câmbio das pequenas instituições, que anteriormente não tinham acesso ao crédito e, muitas vezes, sequer conseguiam fechar contratos de câmbio, com exportação e importação.
Esses casos dão ideia da revolução que o Sistema de Pagamentos Brasileiro trouxe para a vida de todos nós, com efeitos práticos até os dias de hoje. Foram essas ideias que pavimentaram o caminho da existência do Pix, que hoje permite que qualquer pessoa faça transferências e pagamentos em alguns segundos sem nenhum custo.
Além disso, também criamos um formato de autoproteção para o sistema, o que resultou na proibição dos saques a descoberto da conta reserva bancária das instituições.
Todo esse cenário ajudou a reduzir também o risco fiscal que existia no Brasil naquele momento, um país que já havia gastado muitos recursos com seus bancos, especialmente as instituições públicas. Desde então, nunca mais tivemos um caso de o Banco Central ficar no prejuízo por causa de um banco que faliu. Isso representa um avanço extraordinário para o sistema financeiro.
Foi nesta época também que criamos a Câmara Interbancária de Pagamentos dentro do Sistema de Pagamentos Brasileiro e sob fiscalização do Banco Central, também responsável por evitar que a quebra de uma instituição leve todas as outras para o mesmo caminho, o que também reforça a segurança do sistema.
Mas, claro, nada disso foi fácil ou rápido. Ninguém muda todo um sistema do dia para a noite e sem esbarrar em medos ou dificuldades. Clareza sobre a situação e agilidade para tocar o projeto também foram essenciais para o sucesso.
Em uma outra conversa com o Luis Gustavo da Matta Machado, nos questionamos se era mesmo possível colocar em prática tudo isso. Ele, ao lado de José Antonio Marciano, diretor de operações bancárias e sistema de pagamentos do Banco Central, alinharam toda a equipe deles com a missão de resumir em apenas duas páginas, da maneira mais simples possível, quais as mudanças desejadas e como torná-las realidade para que eu pudesse apresentar à direção.
Uma semana depois o texto foi apresentado, muitíssimo elogiado e ali mesmo já tínhamos noção da importância desse momento. Uma coisa marcante que o Matta Machado me disse, algo engraçado e duro ao mesmo tempo, foi que nenhum diretor do Banco Central ficava no cargo durante muito tempo e nós estávamos com um projeto que exigia pelo menos três ou quatro anos de dedicação. Minha orientação foi a concepção de um plano “à prova de diretor”.
Assim, os dispositivos macroeconômicos que precisavam da autorização da atual diretoria foram encaminhados com prioridade, deixando as instruções técnicas para um segundo momento. Em caso de troca na direção, seria mais difícil desaprovar o que já estava aprovado, diminuindo os riscos de o projeto morrer.
Felizmente, mais ou menos um mês depois, estávamos com tudo aprovado e começamos as apresentações, tanto internas quanto para o mercado, o que achava que não faríamos a tempo. Não por acaso, chegaram a dizer que esse era o projeto mais ambicioso do Armínio Fraga e foi mesmo, o mais ambicioso e de maior alcance.
Ali, não estávamos lançando um produto, era todo uma ideia de mudança profunda de infraestrutura. Em alguns momentos, o mercado achou que não deveria ser feito, quer não era o momento adequado, que o país já era turbulento demais para lidar com isso.
Não dá para agradar todo mundo mesmo. Tanto que tentamos seguir por um caminho e por outro, até notarmos que o mercado não estava respondendo da maneira que precisávamos e tivemos de intervir. Nossa mensagem foi clara: se não nos ajudassem, seguiríamos assim mesmo.
Funcionou, nos ajudaram, até poderíamos ter feito o lançamento em 2001, mas decidimos dar um pouco mais de tempo para o mercado se ajustar à ideia e fazermos todos os testes necessários diversas vezes. Era preciso avaliar não apenas o que estava funcionando, mas também considerar todas as variáveis que poderiam dar errado.
Por fim, lançamos o Sistema de Pagamentos Brasileiro em maio de 2002, já pegando embalo na turbulência das eleições. Olhando hoje, compreendo ainda melhor a grandeza de tudo isso, das centenas de reuniões, palestras, contatos, viagens, estudo, a maratona que foi colocar tudo de pé em tão pouco tempo. Acredito que esse tenha sido o maior projeto feito entre o Banco Central e o mercado, digamos que “a quatro mãos”.
Não é à toa que algumas publicações especializadas chegaram a eleger nosso sistema de pagamento como o melhor do mundo. Isso foi fruto de toda essa jornada, que resultou em uma arquitetura robusta e de extrema confiança, algo que o Brasil deve se orgulhar por ter realizado.
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JOTA

Nosso Sistema de Pagamentos talvez tenha sido o maior projeto feito entre o Banco Central e o mercado

A longa jornada da criação do SPB, que rende frutos até hoje

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