Boni De Moraes Soares

Fernando Filgueiras de Araujo

No último dia 30 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS), através do seu diretor-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, emitiu declaração conjunta com 25 Chefes de Estado e o Presidente do Conselho Europeu da União Europeia sobre a urgência em se iniciar a negociação de um tratado global sobre pandemias<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, sob os auspícios da OMS.
Poucas horas depois da referida declaração, o Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, emitiu nota pautando cinco objetivos para a negociação do documento: i) detecção rápida e prevenção de pandemias; ii) resiliência a futuras pandemias; iii) resposta às futuras pandemias, especialmente por meio do acesso universal e equitativo a soluções médicas, como vacinas, medicamentos e diagnósticos; iv) fortalecimento da regulação sanitária internacional, a ser coordenada pela OMS; e v) o “One Health approach”, abordagem voltada para conectar a saúde dos seres humanos, animais e do planeta.
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Especificamente, o documento da UE traz como principais propostas: 1) reforçar a capacidade de monitoramento da proliferação de novas doenças; 2) ampliar os níveis de alerta das ameaças sanitárias; 3) ampliar as capacidades de pesquisa e inovação para o desenvolvimento de soluções médicas e de compartilhamento amostras biológicas e dados genômicos; 4) garantir acesso ininterrupto a produtos sanitários essenciais ao combate às pandemias; 5) atender às necessidades globais de produtos e serviços sanitários de modo mais equitativo, considerando as experiências com a COVAX e a ACT-A; e 6) combater a falta de transparência e informações falsas em âmbito global.<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
A análise dos temas colocados à mesa no debate internacional antecipa uma negociação que será na mesma medida difícil e instigante, já que caberá à comunidade internacional encontrar respostas rápidas para complexos problemas jurídicos. O objetivo deste artigo é contribuir com uma análise da iniciativa da OMS e dos Chefes de Estado e, particularmente, da proposta da União Europeia, considerando-se uma futura negociação internacional sobre a matéria.
De fato, é elogiável a disposição de se debruçar sobre a criação de um tratado sobre pandemias, considerando-se o aparente consenso entre especialistas quanto à timidez e, porque não dizer, à negligência da regulação jurídica internacional quanto ao tema. Como bem alertou o membro da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas Shinya Murase em webinário recente, é no mínimo paradoxal que a comunidade internacional não tenha um arcabouço normativo sobre pandemias, considerando que epidemias e guerras já levaram a dezenas de milhões de mortes na história, mas apenas as segundas foram alçadas ao centro do Direito Internacional<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Atualmente, o único tratado relacionado a pandemias é o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), que, embora vigente em mais de 196 países (inclusive no Brasil), possui apenas disposições sobre a obrigação de notificação dos Estados de potenciais doenças que possam afetar a comunidade internacional.</blockquote>
Por esta razão, a iniciativa da OMS e a proposta da UE acertam ao propor a criação de um regime jurídico internacional robusto para enfrentamento das pandemias, que abrange desde a fase de detecção e prevenção, passando por um sistema de alertas, até chegar à fase de resposta a um evento adverso desta natureza em escala internacional.
Outro ponto de acerto reside em apostar na harmonização do enfrentamento da pandemia em nível nacional e internacional. Na prática, a OMS e a UE pontuam que o combate à pandemia se faz tanto através de sistemas públicos de saúde resilientes, quanto por meio de coordenação entre os países para assegurar que os sistemas públicos não entrem em colapso. O mérito é demonstrar que não há dicotomia entre os níveis de atuação; antes, complementação. Por isso, correta a mensagem dos proponentes de que “ninguém está seguro até que todos estejam seguros”.
A despeito desses acertos entendemos que há pontos não abordados nos posicionamentos da OMS e da UE que a comunidade internacional precisa considerar no momento de futura negociação do tratado.
Primeiramente, a proposta da UE não menciona como serão angariados e distribuídos recursos aos Estados para que possam desenvolver capacidades de prevenção e resposta a futuras pandemias. A importância de soluções de financiamento sustentáveis foi citada expressamente pelo Diretor-Geral da OMS no discurso de anúncio da iniciativa<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, mas na proposta da UE consta apenas quando se defende melhores capacidades de monitoramento de riscos.
Na prática, a ausência de mecanismos de financiamento internacional a custo baixo impacta diretamente na capacidade de países menos desenvolvidos e em desenvolvimento para enfrentar pandemias; considerando-se a facilidade de mobilidade existente no mundo de hoje, uma falha jurídica deste porte pode resultar em prejuízos de escala global.
Em segundo lugar, a proposta não aborda alguns desafios internacionais não “puramente” sanitários, mas que se relacionam umbilicalmente às pandemias.
Servem de exemplo as medidas de restrição à circulação internacional de pessoas, inclusive para requerentes de asilo ou refúgio; as desigualdades contratuais impostas por certas empresas farmacêuticas, que de um lado impõem cláusulas abusivas a países compradores e de outro concedem compra preferencial a produtores de vacina; as medidas de restrição às exportações de produtos médicos, além dos impactos de medidas locais de controle da pandemia em contratos internacionais e tratados de investimento.
Neste sentido, embora a proposta procure enfrentar o problema do acesso equitativo a vacinas e medicamentos, considerando as iniciativas da COVAX e ACT-A, ela deixa de abordar a discussão sobre propriedade intelectual sobre produtos médicos durante pandemias.
Este debate vêm ocorrendo no Conselho do TRIPs (acrônimo em inglês para o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) da Organização Mundial do Comércio (OMC), com o pedido formulado por alguns países em desenvolvimento, liderados por África do Sul e Índia, para a quebra temporária de patentes (“waiver”) e outros direitos de propriedade intelectual de farmacêuticas produtoras de vacinas para a COVID-19.<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Enquanto os proponentes entendem que a não suspensão das patentes das vacinas neste momento evidencia deficiências graves no regime de propriedade industrial no mundo, que acaba limitando a promoção da saúde em momentos como o presente, outros países entendem que a proteção das patentes é necessária para incentivar a inovação e a pesquisa em novas vacinas e que a saída seria estruturar um consórcio global para aquisição e distribuição de vacinas, como a iniciativa COVAX. Até o momento, não houve um consenso ou decisão sobre a matéria na OMC.
Se optar por não regular estes campos, a comunidade internacional perde uma grande oportunidade de entregar um documento que enfrente a pandemia de modo sistêmico e eficaz. O que está em jogo é a efetividade de um futuro regime jurídico internacional que tem como finalidade maior a preservação da vida humana e a não regulação desses temas implicaria uma grave falha jurídica a nível internacional.
Finalmente, entendemos acertada a eleição da OMS para funcionar como o foro de negociação e celebração do futuro tratado. A rigor, a escolha parece natural na medida em que este é o foro internacional existente para lidar com aspectos sanitários em escala global, o qual conta com a adesão de quase todos os países do mundo e poderes para celebração e negociação de tratados na área sanitária.
Em que pese isso, é preciso estar atento ao problema de como esta agência especializada lidará com a regulação de assuntos não-sanitários indiretamente relacionados às pandemias. O risco seria transferir completamente a negociação e regulação desses temas para organizações e agência internacionais setoriais, considerando que delegações junto à OMS costumam não possuir expertise necessária para negociar nestas áreas.
No entanto, a adoção deste caminho causa preocupação tendo em vista o potencial de favorecer uma espécie de “captura regulatória”, situação em que a pandemia se adequaria aos interesses de um determinado setor ou grupo de países. O resultado pode ser preterir o principal valor em jogo nas pandemias, que é salvar vidas, em favor de outros valores defendidos pela comunidade internacional, causando desarmonia e desequilíbrio regulatório em escala global.
A saída talvez seja a elaboração de um tratado estrutural na OMS contendo os principais pontos de um enfrentamento sistêmico do problema, seguido de protocolos para temas específicos. A adoção desta solução pode se valer da exitosa experiência da negociação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (acrônimo em inglês, FCTC), celebrada no âmbito da mesma OMS, da qual se seguiu o Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco.
Como resultado, tratado e protocolos poderiam compor um pacote regulatório único (“single undertaking”), de modo que todos os aspectos seriam igualmente negociados antes de sua aprovação final. A se optar por esse caminho, entretanto, parece-nos que a chave para uma regulação satisfatória é a eficiência e rapidez na busca do consenso sobre os pontos estruturantes, para que se possa avançar na negociação dos protocolos, que poderão ter, na prática, importância similar (senão superior) ao tratado “guarda-chuva”.
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O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute a crise militar e seu impacto no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/WAU2xWiR5DQ
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<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> World Health Organization. COVID-19 shows why united action is needed for more robust international health architecture. Disponível em: https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/op-ed---covid-19-shows-why-united-action-is-needed-for-more-robust-international-health-architecture. Acesso em: 30 de março de 2021.
<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> European Council. An international treaty on pandemic prevention and preparedness. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/en/policies/coronavirus/pandemic-treaty/. Acesso em: 30 de março de 2021.
<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> MURASE, Shinya. Epidemics and International Law (Webinar). International Law Association (British Branch) Lecture Series. Transmitido em: https://www.ucl.ac.uk/laws/events/2021/mar/online-epidemics-and-international-law. Acesso em: 17 de março de 2021.
<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> World Health Organization.  WHO Director-General's remarks at the press conference with President of the European Council to discuss the proposal for an international pandemic treaty. Disponível em: https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-remarks-at-the-press-conference-with-president-of-the-european-council-to-discuss-the-proposal-for-an-international-pandemic-treaty. Acesso em: 30 de março de 2021.
<a href="applewebdata://5BBACBF6-88DD-4592-91A1-F59C46219EE5#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> World Trade Organization. Council for Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights. Comunicação de Índia e África do Sul: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/IP/C/W669.pdf&amp;Open=True. Resposta formal do Reino Unido: https://www.gov.uk/government/news/uk-statement-to-the-trips-council-item-15. Acesso em 30 de março de 2021.

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JOTA

A possível negociação de um acordo sobre o tema suscita importantes questões para regulação pelo Direito Internacional

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A possível negociação de um acordo sobre o tema suscita importantes questões para regulação pelo Direito Internacional