Tonny Teixeira de Lima

Os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, segundo definição do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, são aqueles direitos humanos relacionados ao local de trabalho, à segurança social, à vida familiar, à participação na vida cultural e acesso a moradia, alimentação, água, saúde e educação<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. A sigla Desca decorre do acréscimo dos direitos ambientais ao rol elencado, havendo inclusive uma relatoria especial para este grupo de direitos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Cabe, no entanto, para melhor contextualização do tema, retroceder à Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de 1948<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, que, conquanto tenha enumerado os direitos humanos básicos e seja entendida como norma de jus cogens, não previu meios ou órgãos para tornar justiciáveis esses direitos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
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Constatada, assim, a necessidade de um instrumento internacional apto a tornar vinculantes e exigíveis as obrigações de respeito e implementação dos direitos incluídos na DUDH, foram iniciados debates na então Comissão de Direitos Humanos da ONU. Nesta, surgem correntes a favor e contra a separação entre direitos civis e políticos, de um lado, e direitos econômicos sociais e culturais, de outro. Os primeiros estariam associados a prestações negativas do Estado, relacionadas à liberdade dos indivíduos, enquanto os últimos dependeriam de prestações positivas estatais.
A questionável dicotomia, considerando-se a interdependência entre todos os direitos humanos que, em diferentes graus, requerem prestações positivas e negativas, marcou o contexto de Guerra Fria e acarretou, por aspectos práticos, a elaboração de dois tratados: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Enquanto aos direitos civis e políticos foi conferida imediata justiciabilidade, a ideia de que a implementação dos Desca dependeria do progressivo avanço e da possibilidade material de cada nação refletiu-se no fato de que o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não previa, em princípio, um mecanismo de petições individuais, implementado apenas em 2008 através de seu Protocolo Facultativo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
No âmbito regional, o art. 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) traduz a natureza progressiva dos Desca, ao prever que os Estados se comprometem a adotar providências para alcançar progressivamente a plena efetividade dos Desca na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Apenas em 1988 foi concluído o Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o denominado Protocolo de San Salvador<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, que inovou na ordem interamericana ao possibilitar acesso ao sistema de petições individuais regulado na Convenção Americana (artigo 19.6), nos casos de violação de direitos sindicais (artigo 8.a) e à educação (artigo 13).
A previsão normativa quanto à justiciabilidade dos Desca perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) tem sido, contudo, objeto de intensa interpretação pela Corte Interamericana, podendo-se especular quanto à ocorrência de verdadeira mutação convencional no ponto.
Nesse sentido, tem-se como marco inicial o caso Cinco Pensionistas vs. Peru<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, de 2003, em que as vítimas tiveram seus benefícios previdenciários reduzidos por alteração legislativa. Naquela ocasião, a Corte entendeu que a implementação do direito à previdência deveria ser avaliada em função da progressiva cobertura dos Desca, destacando-se sua dimensão coletiva<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Em 2009, a Corte IDH apreciou o caso Acevedo Buendía e outros vs. Peru<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> e, tratando novamente sobre redução de pensões, afirmou a indivisibilidade e a interdependência entre os direitos civis e políticos e os Desca, destacando a não regressividade destes últimos, além da sujeição do art. 26 aos artigos 1.1 (obrigação de respeitar direitos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da Convenção Americana.
Já o caso Lagos Del Campo vs Peru, de 2017, pontua uma mudança substancial no entendimento da Corte Interamericana. Alfredo Lagos era delegado sindical e denunciou atos de ingerência dos empregadores nas eleições de organizações representativas dos trabalhadores, o que resultou em sua demissão, posteriormente mantida em sede judicial.
Neste julgado, ao interpretar de forma conjunta a CADH, a Carta da OEA e a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, a Corte Interamericana passou a acolher a justiciabilidade direta dos Desca e reconhecer a ofensa autônoma ao artigo 26 da Convenção Americana.
Para tanto, baseou-se em uma interpretação evolutiva do artigo 26 de acordo com o artigo 29 da CADH, segundo o qual “nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de (a) permitir a qualquer Estado Parte (...) suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção (...)”, em respeito ao princípio pro persona. Deve-se registrar que tal julgamento não foi unânime, tendo os Juízes Sierra Porto e Vio Grossi discordado do reconhecimento de ofensa direta ao artigo 26 da Convenção fora das hipóteses previstas no Protocolo de San Salvador<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>.
Em 2018, no caso Poblete Vilches e outros vs. Chile, a Corte reafirmou sua competência para analisar diretamente o artigo 26 da CADH e reconheceu ofensa ao direito à saúde. Merece registro a afirmação da Corte de que do referido dispositivo “se depreendem dois tipos de obrigações (...), a adoção de medidas gerais de maneira progressiva e (...) a adoção de medidas de caráter imediato”, que “consistem em adotar medidas eficazes, a fim de garantir acesso sem discriminação às prestações reconhecidas para cada direito”<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Em voto divergente, o juiz Eduardo Vio Grossi destacou que o Protocolo de San Salvador é uma emenda à Convenção, e que o artigo 26 “não estabelece direito humano algum, nem menos ainda (...), proporciona legitimação ativa perante a Corte por violação de direitos econômicos, sociais e culturais a que alude”<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
Por fim, deve-se registrar o caso Cuscul Pivaral e outros vs Guatemala, sentenciado em 2018. O caso versou sobre omissão estatal no tratamento de pessoas diagnosticadas com o vírus HIV e, pela primeira vez, houve condenação por ofensa ao artigo 26 com base no aspecto progressivo dos Desca. Asseverou a Corte, na oportunidade, que a realização progressiva significa que os Estados têm a obrigação concreta e constante de avançar da forma mais expedita e eficaz possível em direção à plena efetividade do direito à saúde<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>.
Este brevíssimo apanhado de casos objetiva demonstrar a tendência da Corte Interamericana de tornar cada vez mais abrangente a justiciabilidade direta dos Desca perante o SIDH. Este posicionamento jurisprudencial, no entanto, é passível de questionamentos – e, inclusive, tem sido avaliado de forma distinta por juízes da própria Corte –, na medida em que a expansão dos Desca apreciáveis no sistema de petições individuais parece carecer de previsão pela norma internacional.
A propósito, pertinente a análise de Taiz Marrão, no sentido de que “a mutação convencional operada pela Corte Interamericana deve ser avaliada sob olhar crítico, tendo-se em conta as exigências de legitimidade e eficácia, já que houve alteração abrangente do perfil da proteção conferida pelo artigo 26 (mutação convencional) sem correspondente alteração convencional politicamente acordada pelos Estados-partes”<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.ohchr.org/Documents/Issues/ESCR/FAQ%20on%20ESCR-en.pdf">https://www.ohchr.org/Documents/Issues/ESCR/FAQ%20on%20ESCR-en.pdf</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.oas.org/es/CIDH/jsForm/?File=/es/cidh/r/DESCA/default.asp">https://www.oas.org/es/CIDH/jsForm/?File=/es/cidh/r/DESCA/default.asp</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.un.org/en/about-us/universal-declaration-of-human-rights">https://www.un.org/en/about-us/universal-declaration-of-human-rights</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MAZZUOLI, Valério. Curso de Direitos Humanos. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021. p.80.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ibidem, p. 81.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/opcescr.aspx">https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/opcescr.aspx</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> <a href="https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm">https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3321.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3321.htm</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_98_esp.pdf">https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_98_esp.pdf</a>
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> PAIVA, Caio; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3. ed. Belo Horizonte: CEI, 2020. p. 116-117.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_198_esp.pdf">https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_198_esp.pdf</a>
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> PAIVA, Caio; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3. ed. Belo Horizonte: CEI, 2020. p. 318-330.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Caso Poblete Vilches y otros Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 8 de marzo de 2018. Serie C No. 349. Par. 104.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Ibidem. Voto Juiz Eduardo Vio Grossi. Par. 86.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> MAZZUOLI, Valério. Direitos Humanos na Jurisprudência Internacional. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. p. 719-722.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> DA COSTA, Taiz Marrão Batista. Coletânea direito à saúde: Institucionalização / Organizadoras Alethele de Oliveira Santos, Luciana Tolêdo Lopes. Brasília: CONASS, 2018, p. 33.

direitos humanos

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JOTA

Corte Interamericana tende a tornar justiciabilidade direta cada vez mais abrangente, algo passível de questionamentos

Justiciabilidade no sistema interamericano de direitos humanos

Corte Interamericana de Direitos Humanos tende a tornar justiciabilidade direta cada vez mais abrangente, algo passível de questionamentos