Rogério Studart

Dentre os relatórios das instituições internacionais, o do Fundo Monetário Internacional sobre a situação da economia global costuma espelhar a visão predominante entre a maioria dos economistas. O <a href="https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2022/07/26/world-economic-outlook-update-july-2022">relatório deste mês de julho</a> apresenta um diagnóstico sobre os problemas atuais da crise permeado de incertezas e encruzilhadas, e recomendações de políticas macroeconômicas que vão em direções das mais variadas.
O problema não é o FMI parecer estar confuso: ao que tudo indica estamos passando por mudanças demasiadamente aceleradas, e os instrumentos de análise econômica não são suficientes para minimamente nos guiar para além da tempestade. Enquanto isso, continuamos utilizando remédios ineficazes, que, em última instância, podem agravar a enfermidade econômica.
Segundo o relatório, a economia global não está bem. E os riscos de piora são altos, devido a pelo menos três vetores de problemas. Em primeiro lugar, as cadeias de produção já há algum tempo vem sofrendo com a crescente <a href="https://blogs.imf.org/2022/05/22/why-we-must-resist-geoeconomic-fragmentation-and-how/?utm_medium=email&amp;utm_source=govdelivery">“fragmentação geoeconômica”</a> – código para a guerra comercial envolvendo especialmente os Estados Unidos e a China. Já bastante fragmentadas ao longo destes anos, elas podem emperrar ainda mais com o aumento dos lockdowns e como consequência de uma possível ampliação da crise imobiliária na China.
Por outro lado, se até o momento a guerra na Ucrânia encareceu e complicou as importações europeias de gás, o risco agora é uma parada repentina das exportações russas para a União Europeia. Esta medida de retaliação geraria um enorme estrago para grande parte da indústria europeia (especialmente a <a href="https://www.bbc.com/news/business-62318376">Alemanha</a>). Teria também consequências sociais enormes, sobretudo com a proximidade do inverno europeu e a dependência do gás para o aquecimento de casas e edifícios.
O relatório também alerta para o risco do aperto das condições financeiras globais em gerar uma crise dos mercados de dívida em países emergentes e economias em desenvolvimento. De fato, <a href="https://www.reuters.com/business/global-debt-is-fast-approaching-record-300-trillion-iif-2021-09-14/">os níveis de dívida</a> pública e privada passaram dos 200% do PIB em 1999 para 350% hoje, com um aumento particularmente acentuado desde o início da pandemia. E como denotou Nouriel Roubini, em <a href="https://www.project-syndicate.org/commentary/stagflationary-debt-crisis-by-nouriel-roubini-2022-06">um recente artigo</a>, nessas condições, a rápida normalização da política monetária e o aumento das taxas de juros “levarão famílias zumbis altamente alavancadas, empresas, instituições financeiras e governos à falência e à inadimplência”. Ou seja, um aperto monetário neste momento pode levar a uma retração da produção, contribuindo na margem para a ampliação do hiato entre oferta e demanda globais.
Apesar da complexidade da situação, o FMI indica que “domar a inflação deve ser a primeira prioridade para os formuladores de políticas”. E como quem só tem martelo, acha que todo problema é prego, prescreve uma conhecida “bala de prata”:  uma política monetária mais restritiva. A partir daí o relatório lembra muito os anúncios de fármacos em televisão: após confiantemente apresentar as possibilidades de cura com um amargo remédio, escutamos uma voz descrevendo, de forma aceleradíssima, seus efeitos colaterais terríveis. Lemos, por exemplo, que o aumento dos juros aumentará o custo da dívida, complicando ainda mais um quadro fiscal frágil. E para manter a saúde fiscal, “o apoio fiscal direcionado pode ajudar a amortecer o impacto sobre os mais vulneráveis” e “tais políticas precisarão ser compensadas pelo aumento dos impostos ou pela redução dos gastos do governo”. Em seguida, o relatório lembra que “condições monetárias mais rígidas também afetarão a estabilidade financeira, exigindo o uso criterioso de ferramentas macroprudenciais e tornando as reformas nos quadros de resolução de dívidas ainda mais necessárias”.
Em vista de todos estes avisos legais (disclaimers, em inglês), não chega a ser surpreendente a cautela de algumas autoridades monetárias. Por exemplo, a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, se comprometeu a manter uma política monetária rigorosa até que a inflação na Europa caia para 2% (dos atuais 8,6%). Porém o aumento de 50 pontos percentuais na última reunião, o primeiro em 11 anos, somente elevou para a taxa de desconto a zero. Mesmo nos Estados Unidos, onde há uma taxa de desemprego de 3,6%, <a href="https://www.youtube.com/watch?v=yAOEdbY_5Zs">Jerome Powell</a>, presidente do Fed, demonstrou cautela ao dizer que “não acho que precisamos de uma recessão para controlar a inflação”. De fato, apesar de uma <a href="https://www.weforum.org/agenda/2022/07/interest-rate-hikes-inflation-rate-economy/">grande quantidade de países</a> estarem aumentando os juros, a maioria dos macroeconomistas de plantão parece saber que o problema inflacionário <a href="https://www.bnnbloomberg.ca/supply-crunch-inflation-gives-central-banks-an-unfixable-problem-1.1668189">está fora da alçada dos bancos centrais</a>. São problemas que requerem transformação produtiva e, muito possível, cooperação entre países para corrigir problemas nas cadeias de produção global.
<h3>E o Brasil com isto?</h3>
Primeiramente, do ponto de vista da conjuntura, a forma cautelosa dos bancos centrais no mundo é uma <a href="https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/">boa notícia</a> para nós – por pelo menos duas razões. Primeiro, ela permite uma certa estabilidade no diferencial entre a Selic e os juros atualmente praticados em outras grandes economias. Isso diminui a pressão por desvalorização do dólar, e suaviza os seus possíveis impactos inflacionários.
Em segundo lugar, uma recessão global pode impactar negativamente um dos poucos fatores de dinamismo na fragilizada economia brasileira: a demanda por commodities, especialmente as agrícolas.
Mas há um aspecto mais filosófico, relacionado ao longo prazo, sobre a nova postura dos bancos centrais. Como mencionamos, alguns dos problemas pelo lado da oferta global não desaparecerão tão cedo. E outros provavelmente se ampliarão nos próximos anos – como, por exemplo, o número e intensidade de eventos climáticos e seus impactos sobre as infraestruturas e as estruturas produtivas, e as cadeias de produção nacional e global.
Temos temas urgentes a resolver, como a fome, o desemprego e a pobreza. Mas os próximos governos precisarão atuar para reduzir a nossa vulnerabilidade aos vaivéns das cadeias de produção global, e para aumentar a resiliência ao aquecimento global. Em outras palavras, assim como ocorre nos <a href="https://www.ft.com/content/b27ced7c-3034-4909-83e4-e669b143ac3f">Estados Unidos</a>, mas também na Europa e na Ásia, o Brasil precisará de políticas de diversificação produtiva e adaptação aos desafios do século 21. E o objetivo maior da política macroeconômica (monetária, fiscal e cambial) deverá ser, além da necessária estabilidade de preços, facilitar estas políticas de transformação. Esta função, sim, será crucial para garantir um crescimento mais duradouro e um desenvolvimento mais justo e sustentável no longo prazo. Sobre isso falaremos no próximo texto.

regularguy-eth-K_3UV1ZFcJ0-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Problema inflacionário está fora da alçada dos bancos centrais e requer transformação produtiva

Inflação global e a crise dos macroeconomistas

Problema da inflação em alta em diversos países está fora da alçada dos bancos centrais e requer transformação produtiva