Rogério Studart

Nesta quarta-feira (13), ficamos sabendo que a inflação de junho nos Estados Unidos foi de 1,3%, fazendo com que a taxa anual chegasse a 9,1%. Os americanos não viam coisa assim desde o começo dos anos 1970, quando Ian Macleod, então ministro da Fazenda do Reino Unido, cunhou o termo “estagflação” para definir <a href="https://hansard.parliament.uk/Commons/1965-11-17/debates/06338c6d-ebdd-4876-a782-59cbd531a28a/EconomicAffairs?highlight=stagflation">“o pior de dois mundos”</a>: uma perversa combinação entre estagnação econômica e carestia em alta.
Há paralelos entre o que ocorreu então com a situação atual, mas também importantíssimas diferenças. Contrastando os dois, pode-se entender porque uma solução aparentemente fácil — aumentar a taxa de juros — pode ser ineficaz e ainda piorar a situação.
No fim dos anos 1960, os Estados Unidos vinham de décadas de ouro do “sonho americano”, quando os trabalhadores ampliavam sua qualidade de vida de geração em geração. Esta melhora advinha especialmente de uma valorização contínua do salário médio, politicamente também relacionada com o aumento do poder sindical. Assim como ocorre hoje, a economia americana passava <a href="https://www.federalreservehistory.org/essays/oil-shock-of-1973-74">por gargalos importantes nas cadeias de produção</a>. E, parcialmente em função dos gastos militares associados com a <a href="https://www.washingtonpost.com/archive/politics/1978/10/25/war-in-vietnam-started-13-year-spiral-of-prices/eb322c1f-d1a2-4e40-bfbd-bccae51a9efc/">Guerra do Vietnã</a>, em meados de 1973, a indústria vinha operando em capacidade praticamente total e havia desabastecimento de insumos industriais. Com isto, os preços no atacado das commodities industriais já subia a uma taxa anual de mais de 10%.
Em 1970, quando o termo “estagflação” é criado, a maioria dos analistas ainda acreditava em uma “hipótese de livro-texto” que pressupunha que a carestia era essencialmente um fenômeno de demanda, ocorrendo quando a economia estava aquecida para além do razoável. E os <a href="https://fred.stlouisfed.org/graph/fredgraph.png?g=RJK1">dados</a>, pelo menos nos Estados Unidos, pareciam confirmar esta hipótese: até então realmente parecia haver uma clara relação entre inflação e desemprego. Reduzir a inflação era, portanto, uma questão de desaquecer um pouco o mercado de trabalho.
Porém, a disparada da inflação a partir de 1973 teve características especiais, associadas a um tema que voltaria a assombrar o mundo mais recentemente: a vulnerabilidade das cadeias de produção e, especialmente, a dependência da produção a fontes de energias fósseis. Por exemplo, a <a href="https://www.federalreservehistory.org/essays/oil-shock-of-1973-74">quadruplicação do preço do petróleo</a> em 1973 gerou uma disparada de todos os custos de produção. Em um quadro de maior organização sindical, o processo assume características inerciais, em uma corrida entre salários e preços que passa a ser determinante na manutenção da inflação em patamares mais elevados. Com isto, os subsequentes choques de custo terminavam elevando este patamar.
Apesar da complexidade por trás do fenômeno, entre os economistas predominou a ideia de que a “<a href="https://www.investopedia.com/articles/economics/09/1970s-great-inflation.asp">grande inflação</a>” dos anos 1970 era culpa dos “preços do petróleo, especuladores cambiais, empresários gananciosos e líderes sindicais avarentos”, mas especialmente das políticas monetárias que financiavam déficits orçamentários maciços apoiados por líderes políticos irresponsáveis.
Nos anos subsequentes, muitos economistas passaram a atribuir a inflação à <a href="https://www.ft.com/content/fabe5b47-afea-4557-adac-ce4ddeb4c206">falta de “coragem” do Banco Central</a> em aumentar a taxa de juros tanto quanto o necessário para barrar o processo inflacionário. E esta visão veio a se tornar ainda mais popular nos anos 1980, quando a elevação dos juros ao seu<a href="https://fred.stlouisfed.org/graph/?g=RLfc"> ápice</a> no pós-guerra coincide com a queda sistemática da inflação. Interessantemente, o que a maioria dos entusiastas do “chama o Banco Central” como guardião de metas de inflação omite é o fator mais importante para a redução dos custos de produção e dos preços ao consumidor nestes anos: a <a href="https://www.macrotrends.net/1369/crude-oil-price-history-chart">queda significativa do preço internacional do petróleo</a> e a ampliação da venda de produtos da Ásia emergente (especialmente a China) a partir da abertura quase unilateral do mercado americano.
Como mencionado no <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/e-o-brasil-com-isto/enfrentar-desigualdade-e-pobreza-e-condicao-para-superar-a-crise-30062022">meu último texto</a>, o problema atual tem raízes similares. Porém, eu diria, as circunstâncias são ainda mais graves. Primeiro, as cadeias de produção, agora mundiais, estão bagunçadas como consequência da pandemia. Reconstituí-las poderia ser mais fácil não fosse o conflito crescente entre as duas maiores economias e dois maiores parceiros comerciais do mundo globalizado. Claro que a série de problemas geopolíticos gerados pelo conflito na Ucrânia, que também fez disparar os preços do petróleo, somente diminui a probabilidade de resolução no futuro próximo das travas no comércio internacional.
Por outro lado, o imbróglio financeiro que liga taxa de juros e estabilidade financeira global é significativamente maior — por pelo menos duas razões. Primeira, apesar da queda do <a href="http://www.slate.com/articles/business/the_united_states_of_debt/2016/05/the_rise_of_household_debt_in_the_u_s_in_five_charts.html">endividamento privado</a> nesta década de taxas de juros negativas, <a href="https://www.visualcapitalist.com/visualizing-u-s-household-debt-by-generation/">distintas gerações de americanos</a> e <a href="https://www2.deloitte.com/xe/en/insights/economy/issues-by-the-numbers/rising-corporate-debt-after-covid.html">pequenas e médias empresas</a> continuam vivendo uma crise da dívida. Em segundo lugar, aqueles que tiveram o privilégio de poupar mais em função dos diversos auxílios emergenciais na pandemia tem nas suas carteiras ativos financeiros com valoração inversamente relacionada às taxas de juros. Ou seja, um aumento das taxas de juros pode, hoje, não só gerar um ajuste para parar uma economia superaquecida. Pode, também, gerar um processo cumulativo de bancarrota em famílias e empresas, e uma recessão da mesma estatura da crise dos anos 1930.
<h3>E o Brasil com isto?</h3>
Bem, desnecessário dizer que a situação do Brasil é ainda mais complexa. Em primeiro lugar, o país tem índices ainda elevados de desemprego e uma demanda doméstica castigada pelo empobrecimento das classes médias, e pelo crescimento das famílias que voltaram a habitar o mundo da fome. Apesar da queda da Selic nos últimos anos, os <a href="https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/05/foco-e-concorrencia-e-spread-bancario-e-menor-do-que-se-imagina-diz-bc.shtml">juros cobrados na ponta</a> continuavam a ser dos mais elevados no mundo. O empobrecimento, a queda do salário real e os juros exorbitantes explicam porque no Brasil entrar “no cheque especial” é quase um Hotel Califórnia: impossível de sair.
Tanto assim que, após a pandemia, <a href="https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-06/inadimplencia-das-familias-tem-oitava-alta-consecutiva-diz-cnc">77% das famílias estão endividadas</a>. Aumentar as taxas de juros poderia levar à aceleração de uma <a href="https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/07/11/inadimplencia-bate-novo-recorde-e-atinge-66-milhoes-de-brasileiros-em-maio-aponta-serasa.ghtml">tendência já presente</a> no país: inadimplência em alta, e quebradeiras de empresas e indivíduos. Esse processo pode tranquilamente se tornar um círculo perverso, de longa duração, de aumento do risco de crédito, aumento dos juros de empréstimos, e mais bancarrotas.
Apesar de todas estas peculiaridades, ainda há uma percepção forte de que, no Brasil como no resto do mundo, a <a href="https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/07/11/inflacao-e-sempre-o-resultado-de-uma-falha-do-governo.ghtml">inflação sempre é uma falha de governo</a>. De fato, com os casuísmos da política fiscal, inclusive a aprovação da <a href="https://veja.abril.com.br/economia/camara-aprova-pec-das-bondades-em-primeiro-turno/">PEC das Bondades</a>, é fácil assumir que todos os males que afetam a economia têm a ver com a ineficácia da gestão pública. Porém, se nossa análise estiver correta, elevar ainda mais a Selic no Brasil somente agravaria o sofrimento do nosso resiliente setor privado, aumentando o problema de desabastecimento e a precária situação das famílias. O resultado de tudo isto é desmoralizar ainda mais um dos pilares de política econômica, o Banco Central, enfraquecendo a capacidade de utilizá-las para cumprir as metas gerais: estabilidade de preços, queda do desemprego, estabilidade financeira e desenvolvimento. Neste momento, portanto, se voltarem a “chamar o Banco Central”, talvez a resposta mais sábia seja sua diretoria fingir-se de surda.

imagem_materia

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

É fácil assumir que todos os males que afetam a economia têm a ver com a ineficácia da gestão pública

Chamem o Banco Central!

Se voltarem a “chamar o Banco Central”, talvez a resposta mais sábia seja sua diretoria fingir-se de surda