Marcos Galileu Lorena Dutra

Viviane Muller Prado

Lie Uema do Carmo

Recentemente, as atenções da mídia e de parte da comunidade jurídica voltaram-se para o episódio envolvendo as ações da Game Stop no mercado americano e a suposta tentativa de replicá-lo no Brasil, principalmente em torno das ações do IRB Brasil. O fenômeno desafia os reguladores ante certos movimentos no mercado, com mudanças em preços, liquidez e volume negociados fomentadas via redes sociais.
Nas últimas semanas, houve uma proliferação de manifestações em torno da possibilidade de caracterização do crime de manipulação do mercado (art. 27-C da Lei n.º 6.385, de 7 dezembro de 1976) ou de alguma infração administrativa, em especial das modalidades tipificadas na discutida Instrução CVM n.º 8, de 8 de outubro de 1979. Sobre o assunto, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou um comunicado alertando que “a atuação com o objetivo deliberado de influir no regular funcionamento do mercado pode caracterizar ilícitos administrativos e penais”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Atitude semelhante ocorreu no caso americano, com manifestações públicas da SEC sobre a controvérsia que dominou o noticiário.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Mas os eventos possibilitam um olhar para outros aspectos, menos associados à análise da conduta dos agentes que deram causa a esses movimentos - e em que medida poderiam (ou deveriam) ser considerados ilícitos. Questões de estruturas do mercado foram decisivas para os efeitos do comportamento dos investidores nos Estados Unidos e no Brasil, sendo o impacto lá bem mais significativo que o observado aqui. Em tempos de discursos em defesa de maior liberdade econômica e de redução de custos regulatórios para os agentes, alguns aspectos que contribuíram para os efeitos no Brasil merecem uma análise.
Muitas vezes tomado como o paradigma para fins de regulação, o mercado americano guarda razoáveis diferenças em relação ao brasileiro, particularmente no que diz respeito ao funcionamento do mercado secundário. Tomando-se como exemplo o caso específico da Game Stop e do IRB Brasil, há alguns aspectos relevantes onde essas diferenças aparecem.
A primeira diferença significativa diz respeito à infraestrutura de negociação, onde ocorre o embate entre as tais sardinhas e tubarões no processo de formação de preços. Nos EUA a negociação de equities é fragmentada entre as várias bolsas de valores, os alternative trading systems (ATSs) e as próprias corretoras (que, dentro de certas condições, podem fechar operações entre seus clientes). Há estruturas variadas de complexidade, transparência, rapidez e mesmo regras de fechamento de negócios. Essa pluralidade de locais faz com que não haja uma convergência de todas as ordens para um único livro de ofertas, onde haja transparência total e livre concorrência pelos melhores preços.
Essa fragmentação conduz a variações na forma com que o serviço de execução de operações é prestado, dadas as diferenças nesses diversos mecanismos de negociação. Mesmo com toda a tecnologia disponível, a implementação instantânea de medidas tópicas que amorteçam movimentos mais agudos pode ser difícil (ainda que certos avanços desde o flash crash em 2010 tenham sido implementados). É certo que a SEC e os autorreguladores podem oportunamente interferir, mas essa atuação ocorre de uma forma diferente em relação ao caso brasileiro, muitas vezes apenas após o evento que se deseja evitar.
Com toda a hype em torno da aplicação de novas tecnologias à negociação, pode causar espécie a constatação de que no Brasil é uma regra do início da década de 1990 que disciplina a interferência da bolsa de valores na negociação contínua.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> O que inclui o uso de seu poder discricionário para administrar o recebimento de ofertas e o fechamento de negócios. Tirando proveito da negociação centralizada observada no caso brasileiro, a bolsa pode atuar ex ante, de maneira a evitar movimentos que atentam contra a formação regular dos preços, ou pelo menos reduzir seu impacto.
Assim, para preservar a integridade do mercado, a bolsa pode suspender temporariamente a negociação contínua e submeter as ofertas a um processo de leilão - medida que, em situações específicas, auxiliou na contenção da volatilidade das ações que foram alvo de movimentos de legalidade duvidosa. O exercício desse importante poder pela bolsa, de um lado, propicia aos investidores que aderiram ao frenesi uma oportunidade para melhor refletir sobre a conveniência de suas decisões. De outro lado, trata-se de um remédio especialmente sensível dada a centralidade da decisão em um único ator, uma única bolsa, como no caso brasileiro, que pode se transformar, para alguns investidores, em remédio amargo.
Além dessa primeira possibilidade de intervenção, existe ainda uma outra dimensão, que diz respeito aos mecanismos de empréstimo de ações, referidos no Brasil como “aluguel” (que não é uma expressão tecnicamente correta, mas largamente utilizada). Ao contrário do caso americano, mais uma vez se trata de um mercado centralizado e que conta com uma regulamentação específica.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Dentre outras disposições, a norma exige que os serviços de empréstimo sejam mantidos exclusivamente por entidades de compensação e liquidação (as clearings, que são autorreguladoras por expressa obrigação legal); traz a obrigatoriedade de oferecimento de garantias nas operações; há limite de 20% na posição para empréstimo de ativos; e exige a divulgação pública dos saldos emprestados para cada valor mobiliário, em bases diárias.
Essa última obrigação de publicidade em torno do volume total de empréstimos é acompanhada de uma outra informação importante, também viabilizada pela centralização de operações em entidades de compensação e liquidação: é o disclosure obrigatório do total das posições em aberto de contratos derivativos, associado ao monitoramento dos limites de posição nesses mercados.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> A depender da modalidade, esses limites são aplicáveis não apenas ao total de valores mobiliários em circulação (o free float), mas também a posições por intermediário, por investidor ou por grupo de investidores.
Toda essa estrutura faz com que seja potencialmente mais difícil observar aqui problemas de dimensão semelhante à americana, com posições vendidas superiores à disponibilidade de ações ou com o risco oferecido aos intermediários por clientes em posições short (e que afetem o mercado como o todo). No caso brasileiro, as manobras podem ser mais onerosas para os participantes que buscam influenciar indevidamente o mercado. E a estrutura de controles, aliada à maior transparência, facilita a atuação tempestiva dos reguladores e autorreguladores. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/mercado-capitais-gamestop-acoes-22022021">Alguns desses aspectos já foram explorados aqui mesmo no JOTA.</a>
<blockquote class="jota-article__eye">É preciso evitar a demonização da estratégia vendedora adotada por certos participantes, pois ela tem importante papel no oferecimento de liquidez e na sinalização da baixa qualidade de certos ativos.</blockquote>
Mas é necessário manter sob controle as posições agregadas em mercados de liquidação futura e nos empréstimos, que possam oferecer riscos para todo o sistema.
É evidente que os pontos descritos não esgotam as diferenças entre os mercados. Mas são aspectos que podem auxiliar no entendimento dos impactos de movimentos especulativos dessa natureza, evitando-se que a ação dos reguladores ocorra exclusivamente ex post. Como sempre acontece após o fim das “bolhas”, após a deterioração do processo de formação de preços surgem as perdas dos investidores menos informados, com a consequente perda de credibilidade no mercado.
Sobre esse ponto, é importante lembrar que os mecanismos de apuração de responsabilidades e de ressarcimento de prejudicados possuem limitações. Para a manipulação de preços, não é diferente. Conforme dados do Núcleo de Mercados Financeiro e de Capitais (MFCap) da FGV Direito SP, em 2019 e 2020 o Colegiado da CVM julgou quatro processos administrativos sancionadores envolvendo acusações de manipulação de preço e analisou quatro propostas de termos de compromisso relacionadas com o tema. Em nenhum deles houve ressarcimento dos prejudicados.
Ademais, a persecução da manipulação em casos com participação massificada de investidores pode ter resultados frustrantes para o público em geral. Na final da década de 1990 houve o caso da Lightpar, uma companhia sem atividade operacional relevante que teve um salto de mais de 2.000% nos preços em março de 1999. Houve um processo contra os administradores da companhia e de sua controladora (Eletrobrás), que terminaram absolvidos.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Houve também o caso da “bolha do alicate”, um movimento especulativo entre 2010 e 2011, em que o valor de mercado da Mundial S.A. saltou de R$ 77 milhões de para R$ 1,4 bilhão, tornando as ações de companhia de produtos de beleza e talheres uma das cinco mais negociadas da bolsa. Na esfera administrativa, houve a condenação de apenas uma pessoa por manipulação de preços.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
É claro que não se advoga o abandono da repressão à manipulação de preços em função dos desafios presentes em casos dessa natureza. Nem que as duas experiências mencionadas antecipam o que poderá acontecer nesse episódio. Mas precisa ser dada ênfase ao papel da estrutura de mercado na prevenção de abusos.
Eventuais revisões dessa estrutura de mercado, ainda que motivadas pela iniciativa de “modernização”, precisam ser analisadas com cuidado. Olhar apenas para as ineficiências (que certamente existem) geradas por um regramento mais prescritivo pode subtrair do debate o seu papel preventivo.
Maiores controles e supervisão, associados a uma maior transparência, têm seus benefícios, que precisam ser adequadamente ponderados em relação aos custos. As dificuldades na obtenção de resultados efetivos ex post podem obrigar à manutenção de certas medidas ex ante, em prol do que se considera interesse público - lembrando que tanto as sardinhas como os tubarões merecem sua dose adequada de proteção e de responsabilidade.
É claro que uma estrutura de mercado mais defensiva não permite a conclusão de que o Brasil estará imune a problemas trazidos por essa nova forma de movimentação dos investidores ou outras deles derivadas. Não se pode furtar a um olhar mais crítico, avaliando-se a adequação das estruturas em vigor à luz da nova realidade. Aqui mesmo nessa Coluna já foram apontados vários aspectos que continuam a exigir um olhar mais cuidadoso, que têm sua parcela de contribuição para o que se observou nos primeiros dias de fevereiro de 2021.
Já se destacou <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/disclosure/protecao-investidor-influenciadores-digitais-01102020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">a crescente influência das mídias digitais e a possível inadequação da regulamentação e da supervisão</a>; <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/disclosure/a-crise-o-mercado-e-os-pequenos-investidores-26032020">a entrada de centenas de milhares de novos investidores nos mercados de renda variável</a>, em um país com <a href="https://pensologoinvisto.cvm.gov.br/como-esta-a-educacao-financeira-dos-jovens-brasileiros-uma-analise-a-partir-do-pisa/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">resultados muito aquém do desejável em matéria de educação financeira</a>, mesmo entre jovens; <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/disclosure/agentes-autonomos-e-gerentes-de-banco-patinhos-feios-ou-cisnes-06082020">os conflitos de interesses na cadeira de distribuição</a> e o limitado papel dos intermediários como gatekeepers.
À luz do episódio, pode ser uma boa oportunidade para se rever essas questões, aproveitando-se do potencial dos mecanismos regulatórios preventivos citados. Alterações realizadas sob o calor de crises muito agudas nem sempre trazem bons resultados. Mas também não se pode adiar indefinidamente essa reflexão, pois os fatos recentes sugerem que o mercado passou por transformações, que merecem uma melhor compreensão de seus efeitos.
Os autores agradecem a ajuda da acadêmica Manoela Naquis na pesquisa para a elaboração do artigo. 
Este artigo e as opiniões nele contidas não refletem necessariamente as posições da Fundação Getúlio Vargas, da Comissão de Valores Mobiliários e de outras instituições com as quais os autores tenham vínculos.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/cvm-alerta-possivel-atuacao-irregular-de-pessoas-em-midias-sociais-com-vistas-a-influenciar-o-comportamento-de-investidores
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://www.sec.gov/news/public-statement/joint-statement-market-volatility-2021-01-29
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Instrução CVM n.º 168, de 23 de dezembro de 1991. A CVM propôs a revisão do seu regime no âmbito da <a href="about:blank">Audiência Pública n.º SDM n.º 09/2019</a>, atualmente em análise na autarquia, com a manutenção dos poderes das bolsas de interferência na negociação contínua, quando necessário.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Instrução CVM n.º 441, de 10 de novembro de 2006.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Instrução CVM n.º 283, de 10 de julho de 1998.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> O voto do diretor relator desse caso traz um alerta importante para os dias atuais: “Se não se logra — como lamentavelmente não foi possível lograr neste caso — encontrar os artífices e beneficiários de tal movimento especulativo, não se pode transformar o sentimento de justa frustração que daí decorre em caça a um culpado qualquer, de modo a transformar o coadjuvante involuntário em ator principal.” COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Inquérito Administrativo CVM n.º 22/99. Relator: Diretor Marcelo Trindade. j. 16 ago. 2001. Disponível em: http://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/sancionadores/sancionador/anexos/2001/20010816_PAS_2299.pdf. Acesso em: 21 fev. 2021.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Processo Administrativo Sancionador n.º RJ-2002-11002. Rel. Diretor Roberto Tadeu Fernandes Antunes. j. 8 dez. 2016. Disponível em: http://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/sancionadores/sancionador/anexos/2016/RJ201211002_Rafael_Ferri_e_outros.pdf. Acesso em: 21 fev. 2021.

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JOTA

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