Milton Seligman

Aqui é o fim do mundo 
Minha terra tem palmeiras 
Onde sopra o vento forte 
Da fome, do medo e muito 
Principalmente da morte 
(Marginália 2, Gilberto Gil)
A elite brasileira, da qual fazemos parte tanto eu como você cara leitora e caro leitor, tem uma generosa percepção de si mesmo e costuma atribuir ao Brasil qualidades que gostaríamos muito de ter. Temo que algumas dessas percepções sejam equivocadas.
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O assassinato do João Alberto Silva Freitas, um negro, nas dependências do supermercado Carrefour em Porto Alegre nos ajuda a entender a pretensão exagerada do autoelogio. Beto, como era chamado, foi espancado e asfixiado até a morte por dois seguranças do supermercado sob a supervisão atenta de uma mulher, ligada de alguma forma ao estabelecimento comercial. Os assassinos e a conivente são todos brancos.
A cena é horrorosa e o contexto parece encomendado: véspera do dia da consciência negra, data em que se pretende debater, celebrar as conquistas e acertar a agenda para melhorar a situação da população negra em nosso país. O crime ilustrou o descaso como negras e negros são tratados no Brasil.
Alguns pontos mexeram comigo e gostaria de mencioná-los.
O primeiro foi a inaudita violência com que o Beto Silva foi morto pelos seus feitores. Claro que lembra o assassinato de George Floyd pelo policial Derek Chauvin, em 25 de maio passado, em Minneapolis, nos Estados Unidos. Lá, o policial ajoelhou-se no pescoço da vítima e o asfixiou; aqui foi um infindável número de socos antes de uma imobilização, com as mãos, provocando asfixia. Ao lado do João Alberto, uma mulher acompanhava e reforçava os agressores.
A segunda questão foi a impressionante falta de empatia das autoridades públicas com o crime e sua brutalidade. Todos circunscreveram o ocorrido e demarcaram seu grau de responsabilidade. Nenhum sinal de revolta e de inconformismo pelo ocorrido, nenhum gesto de afeto pela família, pelos amigos, e pela própria vida que se perdeu. Nenhum ato de presença. Todos pareciam querer dizer que não tinham culpa e fizeram a sua parte. Mas o poder público tem mais a ver com isso do que parece e quem o representa são as autoridades constituídas.
De tudo o que envolve autoridades, nada foi mais constrangedor e acintoso do que as palavras do presidente Jair Bolsonaro na reunião dos líderes do G20. Nenhuma palavra de solidariedade com a família Silva e ainda disse que aqueles que protestam querem "colocar a divisão entre raças" no Brasil.
O terceiro ponto tem a ver com a fala do vice-presidente da República, general Mourão, que mesmo horrorizado com o crime, não o atribui a qualquer forma de racismo, afirmando que esse é um problema que ele viu nos Estados Unidos, quando lá morou, e que não existe no Brasil.
Recomendo muito ao presidente Bolsonaro e ao general Mourão – bem como a todos que me honram com sua leitura - que <a href="https://www.youtube.com/watch?v=z5YpCH0fASg&amp;app=desktop">assistam a entrevista dada pelo professor Silvio Almeida na CNN no Programa Nosso Mundo</a>, no dia 20 de novembro, gravado aparentemente antes do assassinato do Beto Freitas em Porto Alegre.
Claro que o Brasil é racista, estruturalmente racista, e como não seria? Os dados são avassaladores. Depois de 388 anos de escravatura e sendo um dos últimos países das Américas a terminar com essa chaga, temos hoje uma população em que a maioria, aproximadamente 54%, é descendente de africanos. Se olharmos para os dados de violência verificamos que são negras e negros 70% dos assassinados em nosso país. Se olharmos as pessoas mortas pelas forças policiais, pelo Estado, sobe para 80% os mortos que descendem de africanos.
Alguns insistem que não é por serem negros, mas sim por serem pobres que essas pessoas sofrem a violência expressa nos dados. Há em nosso Brasil uma colossal desigualdade social. Já mencionei em outro artigo que estudo do IBGE sobre as <a href="https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-por-cor-ou-raca.html?=&amp;t=resultados">Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil</a> mostra dados sobre as diferenças entre brancos e pretos ou pardos e escancara a enorme desigualdade existente em áreas ligadas ao trabalho, distribuição de renda, educação, moradia com a ausência de pelo menos um serviço de saneamento básico e representação política.
Como lembra Silvio Almeida, “desigualdade cria espaço para o racismo” e, adiciono, impede o nosso desenvolvimento sustentável.
A desigualdade é a razão pela qual os nossos preconceitos raciais têm raiz estrutural. Nossas instituições não estão criadas para garantir a liberdade de oportunidades, para enfrentar profundamente as desigualdades e para atuar de maneira determinada para fazer com que não sejam mais naturais a desgraça, a morte e a pobreza de pessoas negras.
Todo esse debate coincide com a data em que o Brasil celebra a consciência negra. Há nesse debate algo que vai além da comunidade afrodescendente, e tem uma questão cultural que a todos interessa. Basta que um grupo seja discriminado dentro de uma sociedade para que todos os outros grupos sejam privados de sua mais autêntica e completa humanidade.
A consciência negra sobre a necessidade de um outro humanismo interessa para as mulheres, para a comunidade LGBTQ+, para os judeus, para os muçulmanos, para os indígenas e para todos aqueles que somente se sentirão seguros e acolhidos quando a sociedade maior adote e institua uma nova humanidade.
Esse é um problema marcado em nossa raiz cultural e daí a dificuldade de extirpá-lo. Isso somente será possível com muito estudo, com muitos dados, com muitas evidências e com muita militância em favor dos direitos humanos e das lutas contra os preconceitos raciais.
É natural que nossa numerosa sociedade viva dentro de múltiplas contradições. O grande paradoxo, entretanto, é que nosso racismo estrutural conviva com a admiração profunda que temos por brasileiros negros e negras que construíram a nossa própria identidade cultural como Pelé e Marta, no futebol, Machado de Assis e Carolina Maria de Jesus, na literatura, Cartola, Clementina de Jesus, Gilberto Gil e tantos que nos embalam com seus cantos. Essa consciência e gratidão bem poderiam servir de inspiração para a mudança.

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JOTA

Como lembra Silvio Almeida, 'desigualdade cria espaço para o racismo' e, adiciono, impede o nosso desenvolvimento

Sim, nós somos racistas

Como lembra Silvio Almeida, 'desigualdade cria espaço para o racismo' e, adiciono, impede o nosso desenvolvimento