Mauricio Licks

Embora corriqueiras na vida empresarial, reorganizações societárias podem sujeitar os contribuintes a riscos fiscais nem sempre conhecidos de antemão pelos envolvidos na operação, tal é a complexidade das normas contábeis e jurídicas que tratam do tema. Este parece ser o caso da chamada incorporação de ações, definida no art. 252 da <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/lei-6404-76-lei-das-sa-entenda-principais-regulacoes-22032022">Lei das S.A.</a> como a operação pela qual todas as ações de uma companhia são contribuídas ao capital social de outra, resultando a primeira em uma subsidiária integral da segunda.
Em análise de recurso especial do contribuinte (<a href="https://acordaos.economia.gov.br/acordaos2/pdfs/processados/10183722663201615_6544595.pdf">acórdão n.º 9202-010.324, de 2021</a>), a Câmara Superior de Recursos Fiscais (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/csrf">CSRF</a>) confirmou decisão da turma ordinária, ao entender que a contribuição de ações por pessoa física para o capital social de pessoa jurídica corresponde a uma espécie de alienação, sujeita à apuração do imposto de renda na modalidade do ganho de capital, não obstante tal operação não implicar em qualquer realização financeira (caixa) em favor do contribuinte, mas sim mera permuta de ativos.
Entre outros atos societários realizados no âmbito de uma combinação de negócios, o caso concreto envolvia a entrega de ações da companhia Vanguarda Participações S/A, em troca de ações da empresa incorporadora, a Brasil Ecodiesel Indústria e Comércio de Biocombustível e Óleos Vegetais S/A (Brasil Ecodiesel). Como a apuração, pela autoridade fiscal, dos respectivos custos de aquisição na pessoa física resultaram em montante inferior ao valor atribuído por ação na respectiva operação, a autoridade fiscal lavrou lançamento exigindo o imposto de renda sobre o ganho de capital alegadamente incorrido. Para o fisco, a pessoa física alienou as ações que detinha na Vanguarda Participações, recebendo em troca ações da Brasil Ecodiesel, o que configuraria fato gerador tributável pelo imposto de renda.
Após ter sido derrotado na câmara baixa, o recurso especial do contribuinte foi conhecido quanto às matérias de “tributação da pessoa física no regime de caixa” e “não configuração de alienação na hipótese de incorporação de ações”. 
Quanto ao primeiro tema, o colegiado considerou que inexistiria a alegada violação ao regime de caixa, uma vez que tal regime meramente fixaria o momento do reconhecimento da receita a partir da data de pagamento, contrapondo-se nesse sentido ao regime de competência. Assim, como teria havido pagamento (ainda que com ações), seria lícito reconhecer-se o rendimento oriundo da operação. Além disso, para o colegiado, o art. 2º da Lei 8.134, de 1990, que determina a incidência do imposto de renda pelas pessoas físicas à medida em que a renda for percebida, seria compatível com o reconhecimento da renda a partir do recebimento de bens, o que, inclusive, estaria prevista no art. 23 da Lei 9.249, de 1995.
Quanto à alegação do contribuinte de que haveria mera permuta de participação societária na operação de incorporação de ações, a qual não configuraria alienação em sentido amplo, o órgão considerou o vocábulo “alienação” como contemplativo de todo e qualquer ato cujo efeito seja transferir o domínio de um bem a outrem, nos termos do § 3º do art. 3º da Lei 7.713, de 1998. Assim sendo, desproveu o recurso especial do contribuinte, mantendo o lançamento fiscal.
Juridicamente, embora se possa avaliar o tema a partir de distintos ângulos e argumentos, a presente coluna centrará suas atenções na análise do art. 23 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9249.htm">Lei 9.249, de 1995</a>, fundamento da autuação. Com efeito, este dispositivo outorga às pessoas físicas uma opção de contribuir bens e direitos para o capital social de pessoa jurídica pelo valor de custo ou pelo valor de mercado. A toda evidência, no entanto, o modo de o contribuinte exercer esta opção não parece ser tão óbvio assim. 
Em uma primeira interpretação da norma, pode-se julgar que este dispositivo de lei possui natureza societária e a correspondente opção se dá a partir da confecção do ato societário. Teria a norma assim, um efeito societário (de permitir avaliação dos bens conferidos pelo método de custo de aquisição) e uma repercussão fiscal correlata (de evitar a apuração do ganho de capital). Tratar-se-ia de opção cujo exercício seria definido pela avaliação do ativo no ato de integralização, sendo que, no caso do rito estabelecido pelo art. 252 da LSA, os destinatários da norma seriam as companhias, que fixariam o valor das ações em suas assembleias gerais. Esta visão parece subjazer à orientação da CSRF no acórdão acima, sendo, ademais, adotada pela <a href="http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=55370">Solução de Consulta Cosit n. 224, de 2014</a>.
Ocorre que também é possível uma segunda leitura do referido art. 23 da Lei 9.249, de 1995. É possível que se enxergue na norma um conteúdo meramente fiscal, cujos destinatários são as pessoas físicas (e não as companhias envolvidas). Em outras palavras, a opção a que alude a norma seria exercida pelo contribuinte a partir de sua não atualização do bem recebido em troca na respectiva declaração de imposto de renda. Nesta hipótese, os documentos societários da operação societária não teriam qualquer relevância ao exercício desta opção, que seria efetivada ou não pela pessoa física envolvida. 
Esta segunda visão, mais acertada no nosso entendimento, parece ter orientado o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no julgamento da <a href="https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&amp;numero_gproc=40003285849&amp;versao_gproc=3&amp;crc_gproc=65e613d4&amp;termosPesquisados=J2luY29ycG9yYWNhbyBkZSBhY29lcycg">Apelação Cível nº 5021014-84.2021.4.04.7205/SC</a>. Segundo o julgado, a simples troca de bens não constituiria fato imponível do imposto de renda, nos termos do artigo 43 do Código Tributário Nacional (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ctn">CTN</a>), por inexistir no caso o elemento central sobre o qual se impõe o tributo, a renda, ainda mais se considerarmos o potencial risco de variação negativa do valor do ativo recebido em caso de futura alienação. Para o Tribunal, contudo, “o acionista que teve suas ações incorporadas só se manterá afastado da incidência do imposto de renda se e enquanto mantiver, em suas declarações de bens, o mesmo custo fiscal das ações incorporadas”, o que parece consistente com a segunda visão acima defendida: quem opta é a pessoa física, mediante sua declaração de ajuste anual.
Sem a menor pretensão de exaurir o tema, e em que pesem os ponderáveis fundamentos de que se valeu a CSRF, parece-nos que esta segunda orientação quanto à interpretação do art. 23 da Lei 9.249, de 1995, é mais adequada por razões fiscais e societárias. Sob a perspectiva fiscal, a orientação se mostra mais adequada porque melhor se alinha ao conceito de renda como aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de um acréscimo patrimonial. Se a disponibilidade da renda pressupõe que o contribuinte possa dispor de seu acréscimo patrimonial, inclusive para pagar o imposto, parece mais condizente com a principiologia do imposto considerar que, ao meramente receber um bem cuja valorização é atestada em ata assemblear, tenha o contribuinte o direito de optar por não atualizar o valor do ativo em sua declaração de bens. 
Embora controversa esta noção, parece oportuna a lição de Bulhões Pedreira, segundo a qual se os bens recebidos na troca “não podem, com facilidade, ser convertidos em dinheiro, ainda não há lucro real ou efetivo”[1], sendo o caso, ainda, de se relembrar o <a href="https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=199200156800&amp;dt_publicacao=05/06/1995">REsp n. 23841-2/CE, de 1995</a>, em que se entendeu inexistir lucro em incorporação de bens ao capital social de empresa, porque a operação não se traduz em dinheiro, mas em ações ao contribuinte.
Veja-se que, no caso das pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real, esta compatibilização entre o recebimento da riqueza e o momento do pagamento do imposto é atendida no mais das vezes pela legislação, a partir da possibilidade de diferimento do tributo para os ganhos meramente escriturais, aí incluso o ganho decorrente da avaliação a valor justo de bens contribuídos para a formação do capital social, desde que este ganho seja controlado em subconta específica (art. 17 da Lei 12.973, de 2014).
Com efeito, embora haja de fato um “ganho” escritural, se considerada a valorização das ações registrada no valor que lhes for atribuível na relação de troca entre as ações, o fato é que este ganho é meramente potencial, podendo, por exemplo, estar lastreado em um equívoco de expectativas quanto à lucratividade futura das companhias envolvidas. É, assim, coerente com a legislação tributária do imposto sobre a renda, que tenha o contribuinte pessoa física, a exemplo do que ocorre com as pessoas jurídicas, a opção de não atualizar o valor do bem em sua declaração de ajuste anual. Ora, não sendo referido dispositivo interpretado desta forma, não se estará outorgando a opção, de fato, aos contribuintes pessoas físicas (destinatários textuais do art. 23 da Lei 9.249, de 1995), mas ao conclave assemblear que aprovar a operação, consoante o rito do art. 252 e seguintes da Lei das S.A.
De outro modo, esta segunda interpretação é também mais adequada por ser mais coerente com as demais normas societárias que tratam da integralização de bens. Embora na sociedade limitada caiba aos sócios atribuir, de forma livre, valor aos bens aportados, sem a necessidade de um laudo de avaliação, esta necessidade existe a partir da Lei das Sociedades Anônimas. O art. 8º da LSA exige avaliação fundamentada dos bens conferidos, havendo certa incompatibilidade entre esta determinação e a faculdade prevista no art. 23 da Lei 9.249, de 1995, ao menos se interpretada como uma norma societária com reflexos fiscais (visão aparentemente adotada pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/carf">Carf</a>).
A propósito, a prática evidencia certa perplexidade ao se atribuir à participação permutada o valor de custo das pessoas físicas. Primeiro, porque as pessoas físicas possuem naturalmente valores de custo distintos para bens de mesma natureza, conforme as condições de aquisição deste bem. Um bem adquirido a prestação seria avaliado de modo distinto de um bem pago à vista. Desta forma, eventual prerrogativa de avaliar o bem a valor de custo atrairia, no limite, laudos cuja valoração variaria não segundo o bem objeto de avaliação, mas segundo a pessoa física adquirente.
Segundo, porque um laudo de avaliação que tenha de seguir o método de custo é amiúde imprestável para estabelecer o valor real dos bens conferidos. Isso implicaria, no limite, verdadeira (e desnecessária) relativização do princípio da realidade do capital social, que é justamente a razão pela qual a LSA exige procedimento formal para a avaliação de bens contribuídos para o capital social. Ou seja, a interpretação de que a norma contida no art. 23 da Lei 9.249, de 1995, possui efeitos societários com reflexos fiscais, aparentemente adotada pelo Carf no acórdão comentado, atrairia, no limite, inconsistências entre a prerrogativa outorgada pela Lei 9.249, de 1995, e a Lei das S.A. 
Enfim, tais são algumas das considerações pelas quais, com a devida vênia e respeito aos argumentos vencedores no julgado administrativo, compreende-se não ser a mais adequada a orientação segundo a qual a mera troca de ações deva atrair necessariamente a apuração do imposto de renda na modalidade de ganho de capital. Parece-nos mais apropriada sob as perspectivas fiscal e societária a interpretação segundo a qual caiba ao contribuinte pessoa física a opção por atualizar o bem ou não em sua declaração de imposto de renda.
O certo pelo momento é que, independentemente da visão que se adote como correta, é inegável atualmente o risco a que estão submetidos os contribuintes, ao contribuírem ações para a formação do capital social de pessoa jurídica por valor superior ao valor de custo histórico em operação de incorporação de ações, sem recolhimento do imposto de renda sobre o ganho de capital, na medida em que estarão assumindo posição potencialmente conflitiva com os auditores fiscais da Receita Federal, vinculados pela orientação institucional que lhes foi normatizada pela Coordenação Geral de Tributação e que vem sendo acolhida na esfera administrativa pelo Carf.
<hr />
[1] PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto sobre a Renda – Pessoas Jurídicas. Rio de Janeiro: Adcoas/Justec, 1979, vol. I, p. 281, apud Oliveira, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda (2020) v. I e II (p. 688). IBDT - Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Edição do Kindle.

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JOTA

CSRF decide que operação está sujeita à apuração do Imposto de Renda

Tributação na incorporação de ações

CSRF do Carf decide que operação de incorporação de ações está sujeita à apuração do Imposto de Renda