Pedro Adamy

O voto de qualidade tem sido um tema permanente no Carf. Esta <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-carf/a-crise-e-o-voto-de-qualidade-no-carf-31032020">coluna</a> já se ocupou do tema em diversas edições. Sua sistemática foi profundamente modificada pela Lei nº 13.988/20, que alterou a Lei nº 10.522/02, incluindo entre os seus dispositivos o artigo 19-E, com a seguinte redação: 
<blockquote class="jota-article__quote">
Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.
</blockquote>
O dispositivo legal foi saudado como indicador de uma nova fase no processo administrativo fiscal federal, por encerrar uma longa disputa sobre o voto de qualidade no Carf. Da mesma forma, o novo dispositivo foi questionado em ações diretas de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ADI 6403 e ADI 6399). As referidas ações, no entanto, têm mais enfoque no processo legislativo que levou à edição do artigo 19-E, do que no efetivamente sobre a sistemática do voto de qualidade em si. 
Nada obstante todas essas discussões, o Poder Executivo, por intermédio do Ministério da Economia, regulamentou o dispositivo legal por meio da Portaria nº 260 de 01° de Julho de 2020. A edição da referida Portaria levanta dois tipos de questionamentos. 
De um lado, deve-se questionar se o artigo 19-E necessita de regulamentação por meio de Portaria do Ministério da Economia ou se ele é integralmente autoaplicável, sendo desnecessária qualquer espécie de detalhamento ou regulamento para sua fiel aplicação. 
De outro lado, e sendo afirmativa a resposta ao questionamento anterior, se a Portaria extrapolou ou não o texto e as finalidades da lei. 
<blockquote class="jota-article__eye">A Portaria 260/20, ao restringir demasiadamente a aplicação da previsão legislativa, extrapolou a função dos regulamentos no direito brasileiro. </blockquote>
Ao restringir demasiadamente o âmbito de aplicação do dispositivo legal, a Portaria viola a autoridade e o caráter democrático do processo legislativo. Como afirma Marcela Abrahão, 
<blockquote class="jota-article__quote">
o fato de o Parlamento servir como ‘fórum’ para o debate e a ponderação dos compromissos e das necessidades dos cidadãos, sendo a instituição que legitima democraticamente as medidas estatais em razão de sua estrutura e processo, faz com que a primazia da lei seja a expressão primária da forma de estado democrático.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">[1]</a>
</blockquote>
É de se lamentar, portanto, que a regulamentação do Poder Executivo não observe esse caráter substantivo do processo legislativo e de sua relação indissociável à própria noção de democracia e Estado de Direito. 
Ainda, ao criar restrições indevidas no próprio processo administrativo fiscal violou a competência regulamentar do Poder Executivo. Em primeiro lugar, não compete ao Poder Executivo a determinação da natureza de determinada disposição legislativa. Quer isso dizer que a natureza – processual ou material – do disposto no artigo 19-E não será definido por Portaria do Ministério da Economia. 
Em segundo lugar, não compete à Portaria definir a extensão dos eventuais sujeitos beneficiados pelo julgamento. Em se tratando de exigência de créditos tributários, limitar o alcance das decisões ao contribuinte, excluindo uma parcela da previsão normativa faz pouco ou nenhum sentido. Processos com exigências idênticas poderão ter resultados antagônicos, única e exclusivamente por tratarem ou de contribuinte ou de responsável tributário. Conceda-se que houve má técnica e a imprecisão legislativas na redação do dispositivo legal. 
No entanto, a finalidade do legislador era clara, evidente. Nesse sentido, a Portaria 260/20 gerará uma incoerência nos julgamentos administrativos que afetará, em grande medida, a própria autoridade das decisões do Carf. Imagine-se que, em uma mesma sessão de julgamento, contribuintes e responsáveis, discutindo a mesma matéria, sairão do Conselho com resultados distintos. A incoerência é clara; a violação à igualdade, idem. 
Diante de tais considerações e do novo quadro legislativo trazido pela Lei 13.988/20, a sistemática do voto de qualidade deveria ter sido observada em sua inteireza na regulamentação editada pelo Ministério da Economia. Como visto, isso não ocorreu. 
<blockquote class="jota-article__eye">A Portaria, de um lado, limitou indevidamente as hipóteses de aplicação do dispositivo legal e, de outro, descumpriu a finalidade da legislação, ao definir que o processo administrativo fiscal federal, em caso de empate, seria declarado favorável ao contribuinte. </blockquote>
Não há dúvidas, portanto, que a função regulamentar do Poder Executivo foi violada. Nas palavras de Ataliba, escritas há cinco décadas e ainda atuais, “a regulamentação (...) só existe para adequar a máquina administrativa à fiel observância das leis”, ou ainda, “só cabe regulamento em matéria que vai ser objeto de ação administrativa ou desta dependente. O sistema só requer ou admite o regulamento, como instrumento de adaptação e ordenação do aparelho administrativo, tendo em vista exatamente a criação de condições para a fiel execução das leis”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">[2]</a>
 Não é necessário que se alongue na discussão sobre a ilegalidade dos regulamentos que não obedecem aos critérios estipulados pela legislação. Reitere-se, apenas que ao tê-lo feito de tal maneira, o legislador obrigou a Administração a respeitar e observar os critérios escolhidos. 
Distanciar-se deles, ou regulamentá-los de forma a não os implementar coerentemente, viola a função dos regulamentos e atos normativos administrativos no ordenamento jurídico. Em outros dizeres, não atentar para o mandamento legal faz com que a Portaria 260/20 sofra de irreparável ilegalidade, por não observar o conteúdo e a finalidade previstos na legislação.
Sobre isso, não restam dúvidas que, uma vez violados os limites, as obrigações, as prescrições legais, os regulamentos e demais atos normativos do Poder Executivo estarão eivados de ilegalidade e, como tal, deverão ser reconhecidos pelo Poder Judiciário. Esse será, aliás, o efeito nefasto da Portaria 260/20: a judicialização de matérias que poderia ter sido resolvidas na esfera administrativa. 
Quando todos os setores demandam a urgente redução da litigiosidade fiscal, e a adoção de políticas de resolução amigável de disputas tributárias, com o Poder Judiciário assoberbado por discussões tributárias intermináveis e crescentemente complexas, a Portaria – ao restringir o âmbito de aplicação da lei – levará ainda mais demandas ao Poder Judiciário, incentivando e fomentando a litigiosidade entre contribuinte e fisco. Nesse cenário, não haverá vencedores.

<hr />
<a class="sdfootnotesym" style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">[1]</a> ABRAHÃO, Marcela da Rosa. As Restrições aos Direitos Fundamentais por Ato Normativo do Poder Executivo. São Paulo: Almedina, 2017, p. 232-233.
<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">[2]</a> ATALIBA, Geraldo. Decreto regulamentar no sistema brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Vol. 97, 1969, p. 31 e 28. 
</div>

20190716_142029

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JOTA

Não há dúvidas de que a função regulamentar do Poder Executivo foi violada

Portaria ME 260/20: ainda o voto de qualidade

Não há dúvidas de que a função regulamentar do Poder Executivo foi violada