Túlio V. A. Campos

Thales M. Stucky

Ainda que os <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/apos-tentativa-fracassada-de-negociacao-carf-nao-tem-previsao-de-retorno-04082022">trabalhos em algumas turmas de julgamento do Carf continuem suspensos</a>, as turmas da Câmara Superior vêm mantendo um ritmo de trabalho bastante intenso e julgando casos relevantes girando em torno do sempre sensível tema acerca dos limites do planejamento tributário.
Exemplo se verifica em relação ao julgamento do processo nº 15889.000242/2008­-98, finalizado em 05/04/2022, no qual a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) decidiu pela possibilidade de dedução na apuração do lucro real e da base da CSLL de gastos de amortização de ágio (prêmio) na emissão de debêntures em operação realizada entre pessoas ligadas (acórdão nº 9101-006.052), caso este analisado sob a égide da legislação vigente em momento anterior à <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12973.htm">Lei 12.973/14</a>.
Antes de adentrar nos fatos do referido acórdão, se faz necessário apontar alguns pontos relevantes sobre as debêntures, que nos termos da legislação societária são instrumentos para o financiamento de sociedades por ações, tanto de capital aberto quanto fechado.
Segundo as normas dos arts. 52 e 56 da Lei 6.404/1976 (<a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/lei-6404-76-lei-das-sa-entenda-principais-regulacoes-22032022">Lei das S.A.</a>), as debêntures possuem natureza de valor mobiliário, representados por títulos de dívida emitidos em série que legitimam seus titulares ao exercício dos direitos neles relevados, podendo assegurar: juros fixos ou variáveis, participação no lucro da companhia e prêmio de reembolso.
Conforme regra do art. 59, I da Lei das S.A, cabe à assembleia-geral da empresa emitente fixar o preço de emissão das debêntures, que pode ser inferior, igual ou superior ao valor nominal. Caso o preço de emissão for superior ao valor nominal, trata-se de emissão com ágio (prêmio), estipulado com base nos resultados esperados pela Emitente com a disponibilização dos recursos financeiros.
Efetuadas tais considerações, retoma-se ao acórdão em que se analisou os limites de planejamento na emissão de debêntures entre partes relacionadas.
Segundo o relatório da decisão em referência, uma empresa industrial do setor açucareiro (Emitente) subscreveu em 2002, por emissão privada de debêntures à parte relacionada (Subscritora), debêntures remuneradas via pagamento de juros fixos anuais e participação nos lucros da Emitente. Tendo em vista a forma de remuneração estipulada, foi deliberado pela assembleia-geral da Emitente, nos termos da legislação societária, ágio (prêmio) sobre o valor nominal dos títulos, contabilizado pela Emitente como reserva de capital, nos termos previstos pela legislação societária e tributária.
Já a Subscritora contabilizou o referido ágio, inicialmente, a débito em conta do ativo e posteriormente levou os valores de amortização do ágio para os resultados dos exercícios de 2003 a 2006, como despesas dedutíveis.
As amortizações deduzidas das apurações de IRPJ e CSLL da Subscritora foram glosadas pela fiscalização. O argumento inicial adotado foi da ausência de laudo de terceiro especializado que fundamentasse e a legitimasse o ágio estipulado, sendo, portanto, as despesas de amortizações desnecessárias à atividade e manutenção da fonte produtora, nos termos do art. 299 do RIR/1999<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, vigente à época dos fatos. As decisões de 1ª e 2ª instância administrativas, entretanto, mantiveram a glosa das despesas, sob o novo fundamento: abuso de direito, argumento não mencionado inicialmente no auto de infração de acordo com as informações extraídas da decisão ora em comento.
A Fazenda Pública considerou a transação que resultou na amortização do ágio sobre as debêntures como planejamento fiscal abusivo, pois, além da ausência de laudo de terceiro, as empresas pertenciam ao mesmo grupo econômico, possuindo os mesmos sócios e administradores, em idêntica proporção no capital social.
Assim, as despesas com a amortização do ágio reduziriam a base tributável de IRPJ e CSLL da Subscritora. Por outro lado, as correspondentes receitas não seriam tributadas na Emitente, por expressa previsão legal do art. 442, III do RIR/1999 que determinava a contabilização do ágio na emissão de debênture como reserva de capital, sem transitar pelo resultado do exercício.
Em contraponto, o Contribuinte utilizou os seguintes argumentos: (i) as normas societárias e tributárias vigentes à época dos fatos não restringiam a dedutibilidade de ágio na emissão de debênture entre partes relacionadas; (ii) não existia norma tributária exigindo laudo técnico de terceiro para validar o preço da emissão das debentures, competência exclusiva da assembleia-geral da emitente; e (iv) o ágio fixado não foi arbitrário, sendo definido por fundação econômica própria, conforme laudo técnico independente juntado ao recurso voluntário.
A autuação foi mantida tanto em primeira instância na Delegacia Regional de Julgamento, quanto em segunda instância na 1ª Seção do Carf (acordão nº 1402-002.490). Em seguida, o Contribuinte interpôs recurso especial à CSRF, provido pela regra de desempate instituída pela <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.988-de-14-de-abril-de-2020-252343978">Lei 13.988/2020</a>, vencidos os quatro conselheiros da Fazenda Pública. Foi a primeira decisão favorável sobre a matéria na Câmara Superior.
Nos termos do voto vencedor, o aporte de recursos via subscrição de debêntures, ainda que no mesmo grupo econômico, se trataria de escolha empresarial e só poderia ser afastada pelo Fazenda Pública, caso demonstrado a desnecessidade ou anormalidade das despesas. O auto de infração fundamentou a indedutibilidade das despesas apenas no argumento de que a transação por ter sido realizada entre partes relacionadas, não seria dedutível para fins de IRPJ e CSLL, argumento este que carecia de base legal.
Com efeito, antes da edição da Lei 12.973/14, a legislação tributária não previa regra específica antielisão limitando a dedutibilidade de ágio (prêmio) na emissão de debentures entre partes relacionadas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, tanto do ponto de vista da emitente, quanto da despesa de amortização do ágio na subscritora.
Dado a ausência de descumprimento das normas societárias e tributárias, o auto de infração foi cancelado, válida a dedutibilidade das despesas de amortização de ágio da Subscritora dos períodos de 2003 a 2006, afastados os argumentos patológicos de abuso de direito e ausência de propósito negocial, fundamentados no acórdão recorrido em desfavor do contribuinte<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, assim como acerca da alegada desnecessidade da despesa, fundamentado no argumento de que o contribuição realizou escolhas válidas, lícitas e dentro do campo legítimo do direito à escolha da estrutura mais adequada sob o ponto de vista tributária
Para além do ineditismo da matéria, a decisão se mostra relevante, pois reforça um entendimento já manifestado em diversas decisões administrativas recentes no âmbito da CSRF quanto à validade de planejamentos tributários<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>que, mesmo eventualmente ousados, decorrem de atos praticados em observância aos parâmetros legais e sem quaisquer vícios de vontade. Assim, tem se posicionado o Carf que alegações de vício de validade do negócio jurídico por abuso de direito, abuso de forma ou ausência de propósito negocial, sem a comprovação de efetiva fraude, dolo ou simulação não seriam suficientes para a desconsideração dos respectivos efeitos tributários pela Fazenda Pública.
Neste ponto, nos parece adequado o entendimento exposto no acórdão em comento ao afirmar que "a escolha empresarial de aportar recursos mediante subscrição de debêntures emitidas por empresa do grupo" trata-se de uma escolha válida do contribuinte, não havendo que presumir fraude ou simulação pelo simples fato de a operação ter sido relacionado entre partes de um mesmo grupo empresarial.
O entendimento mencionado, expressamente manifestado no Acórdão nº 9101-006.052, ganhou força após a conclusão do julgamento da ADI 2.446-DF pelo STF. O julgado, cujo acórdão transitou em julgado em 05/05/2022, confirmou por maioria de votos a constitucionalidade da norma prevista no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, inserida com a edição da Lei Complementar nº 104/01. O objetivo da norma foi instituir na legislação tributária, norma autorizativa para permitir, via regulamentação, a desconsideração de negócios jurídicos adotados com abuso de forma ou de direito<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Decorridos vinte anos da sua edição, o dispositivo ainda está pendente de regulamentação.
Conforme o voto vencedor da relatora Min. Cármen Lúcia na ADI 2.446-DF, embora a norma do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional seja constitucional, permite-se contribuinte identificar meios legais para a redução da carga tributária, já que "a norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada". Ainda, a Ministra indicou que a plena eficácia da norma contida no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional requer regulamentação, ainda pendente.
Por fim, tendo em vista que o art. 102, §2º da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/04 determina que as decisões definitivas de mérito em ações diretas de inconstitucionalidade produzem eficácia e efeito vinculante perante os órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública direta e indireta, por lógica, entendemos que os próximos julgados envolvendo planejamento tributário no âmbito do Carf deverão observar o racional adotado na ADI 2.446-DF, admitindo aos contribuintes a utilização de vias legítimas para buscar a economia fiscal.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Como regra geral, a legislação do IRPJ determina que as despesas dedutíveis são aquelas usuais necessárias à atividade da empresa e à manutenção da fonte produtora (art. 47 da Lei nº 4.506/64). A norma, atualmente reproduzida no art. 311 do Decreto nº 9.580/18 (RIR/2018), era prevista no art. 299 do revogado Decreto nº 3.000/99 (RIR/1999).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A legislação vigente por meio da norma contida no art. 31, I e §5º da Lei nº 12.973/14 veda a exclusão do lucro real de ágio (prêmio) na emissão de debêntures quando o titular do título for sócio da pessoa jurídica com participação superior a 10% do capital.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Esta coluna já teve a oportunidade de tratar em algumas oportunidades, sob a ótica da jurisprudência do Carf os institutos do abuso de direito e do propósito negocial, que embora não previstos expressamente na legislação tributária são frequentemente utilizados pela Fazenda Pública para questionar negócios jurídicos dos contribuintes. Neste sentido, menciona-se o artigo de 09/03/2021: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-carf/carf-e-os-limites-ao-planejamento-tributario-09032021">Carf e os limites ao planejamento tributário - dedutibilidade de juros pagos a residente no exterior.</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Por exemplo: Acórdão 9101-005.006 de 05/04/2022; Acórdão 9101-005.975, de 08/02/2022 e Acórdão 9101-005.876, de 11/11/2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Segundo a Mensagem nº 1.459/99 enviada pelo Ministro da Fazenda ao Presidente da República em 07/10/1999, para aprovação do Projeto de Lei nº 77/99 (posteriormente convertido na Lei Complementar nº 104/01): "A inclusão do parágrafo único ao art. 116 faz-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma que permita à autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de elisão, constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário adotados com abuso de forma ou de direito.

carf

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JOTA

CSRF afirma a necessidade de demonstração de fraude para desqualificar planejamento tributário

Dedutibilidade da amortização do prêmio em debêntures entre pessoas ligadas

CSRF do Carf afirma a necessidade de demonstração de fraude para desqualificar planejamento tributário