Thales M. Stucky

Bem-vindo, 2022! O ano que recém inicia promete ser bastante agitado, especialmente na seara tributária. Seja no âmbito legislativo, em função das incertezas quanto à tramitação das propostas de reforma tributária, seja no âmbito do contencioso, com importantes casos na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF), os profissionais da área não terão descanso.
E para não haver dúvidas sobre essas perspectivas, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) já inaugura o ano com uma pequena turbulência. A reversão da expectativa com relação à retomada das sessões presenciais naquele órgão partir de janeiro <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, causada pela comunicação de quase 70 conselheiros(as) representantes do Fisco pelo não comparecimento às sessões convocadas para este mês, trouxe inquietações quanto aos trabalhos naquele órgão julgador.
Assim, o mês de janeiro, que apontava para um feliz reinício das atividades presenciais no Carf, começa com indagações, deixando contribuintes e seus representantes apreensivos quanto ao rumo dos seus processos, especialmente se considerarmos o estoque de casos de cifras relevantes cuja tramitação restou suspensa ao longo dos últimos dois anos <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Não obstante esse cenário quanto ao futuro imediato das atividades no Carf, esta coluna não pode parar! E assim, neste primeiro artigo do ano apresentamos interessante acórdão proferido por turma da 2ª Seção de Julgamento que, por maioria de votos, afastou a aplicação da multa isolada de 150%, prevista no §10º do artigo 89 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm">Lei 8.212/91</a>, ante a ausência de comprovação de conduta dolosa em caso de compensação considerada indevida (Acórdão nº 2401-007.320). Tal acórdão trouxe importantes lições quanto ao ônus da prova para justificar a imposição de multas acima dos percentuais básicos, assim como em relação ao tratamento do conceito de dolo em matéria tributária e que merecem destaque conforme segue.
Como sabido, a legislação tributária brasileira adota um regime de sanções bastante agressivo. A multa básica em casos de lançamentos de ofício é de 75% (artigo 44, I da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9430.htm">Lei 9.430/96</a>), de modo que todo e qualquer contribuinte que de boa-fé adote uma interpretação ligeiramente diferente daquela empregada pelo Fisco ou, ainda, incorra em um erro involuntário na apuração de suas obrigações tributárias, estará sujeito, além do valor do tributo supostamente devido, a um ônus adicional de quase 100% sobre a cobrança efetuada (sem considerar os acréscimos de juros de mora). Tal penalidade adicional pode chegar a até 225%, em casos de constatação de dolo e eventual ausência de colaboração durante a fiscalização.
Tal constatação acerca da agressividade das multas tributárias no sistema brasileiro faz com que alguns autores sustentem a aplicação do conceito de confisco em relação às multas, especialmente a partir da consideração caso a caso da capacidade contributiva do contribuinte no momento do fato gerador <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Assim, mesmo a violação involuntária à legislação tributária pode trazer um ônus bastante elevado, para não dizer desproporcional, ao contribuinte. Ocorre que, a despeito da existência de incentivos (indevidos?) que estimulam a emissão de autos de infração com imposição de multas elevadas <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, não nos parece haver dúvidas que os lançamentos para aplicação de multas qualificadas, ou quaisquer outras acima do percentual mínimo, devem ser realizados com a maior cautela e parcimônia possível, mediante demonstração extremamente detalhada dos fundamentos que autorizem a sua imposição em face dos graves efeitos às atividades dos contribuintes, incluso o risco de interrupção da atividade econômica a depender do valor da autuação.
Portanto, dentro do mínimo que se espera da autoridade fiscal ao efetuar lançamentos de ofício com imposição de multas qualificadas ou, como no caso aqui relatado, isoladas, mas em percentual elevado em comparação com as multas básicas, é a produção de amplo conteúdo probatório com elementos que demonstrem o quanto mais claro possível a ocorrência do elemento subjetivo (dolo) nas condutas imputadas ao contribuinte alvo do lançamento.
O dolo no âmbito tributário, adotando-se o conceito extraído da lei penal, estaria presente quando verificada a efetiva intenção do contribuinte infrator de esconder ou mascarar a ocorrência do fato gerador. Essa ação pode se dar por intermédio de subterfúgios sutis como, por exemplo, a partir da execução de uma série de atos coordenados sem a presença dos devidos elementos de substância a justificá-los (enquadrando-se na, por vezes, zona cinzenta entre planejamento tributário lícito e o abusivo), ou mesmo a partir de ações mais grotescas e nitidamente ilícitas, como a utilização de documentos falsos a sustentar a existência de créditos indicados em procedimentos de compensação.
Voltando ao caso em destaque, o acórdão 2401-007.320 versa sobre a aplicação da multa isolada prevista no artigo 89, §10 da Lei 8.212/91, que estabelece a incidência de multa isolada em percentual de 150% em caso de compensação indevida exigindo a plena demonstração de falsidade em relação à declaração apresentada pelo contribuinte na compensação questionada. Abaixo o dispositivo em questão:
<blockquote class="jota-article__citation">"Artigo 89 — As contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo único do artigo 11 desta Lei, as contribuições instituídas a título de substituição e as contribuições devidas a terceiros somente poderão ser restituídas ou compensadas nas hipóteses de pagamento ou recolhimento indevido ou maior que o devido, nos termos e condições estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal do Brasil. 
(...) 
10 — Na hipótese de compensação indevida, quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo, o contribuinte estará sujeito à multa isolada aplicada no percentual previsto no <a style="font-family: inherit; font-size: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9430.htm#art44i.">inciso I do </a><a style="font-family: inherit; font-size: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9430.htm#art44i.">caput do artigo 44 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996</a>, aplicado em dobro, e terá como base de cálculo o valor total do débito indevidamente compensado".</blockquote>
A literalidade do texto legal acima está de acordo com a linha apresentada para justificar a imposição de multas de ofício qualificadas, não obstante aqui estarmos tratando de uma multa isolada. Ou seja, para que haja legitimidade no lançamento de uma penalidade mais gravosa, há a necessidade inequívoca de comprovação da conduta dolosa por parte do sujeito passivo, sob pena de a autuação avançar sobre as tênues linhas que separam a legítima atividade arrecadatória daquela relativa à proibição do excesso ou mesmo confisco.
De acordo com o exposto no julgado, o contribuinte procedeu com a compensação, sem qualquer autorização administrativa ou judicial prévia, de débitos previdenciários mediante utilização de créditos apurados a partir de pagamentos a maior de contribuições incidentes sobre verbas da folha de pagamento e RAT/GILRAT. Conforme esclarecido pelo contribuinte em suas razões, a decisão pela utilização de tais créditos ocorreu a partir de uma análise individual de que certas verbas que compuseram a base de recolhimento das Contribuições Previdenciárias sobre Folha de Salários em períodos anteriores foram indevidas. A suportar tal conclusão, alegou o contribuinte a existência de entendimentos doutrinários e de decisões judiciais que, mesmo sendo de terceiros, foram proferidas sob o regime dos recursos repetitivos, caso das parcelas incidentes sobre o adicional de 1/3 de férias gozadas e aviso prévio indenizado (REsp nº 1.230.957/RS), o que garantiria a certeza sobre o crédito empregado em tais compensações.
No entanto, por não concordar com a interpretação aplicada pelo contribuinte a respeito das bases de cálculo das contribuições incidentes sobre a folha de salários, assim como por não identificar decisão judicial que autorizasse o contribuinte integrante da lide a realizar as compensações, o Fisco não apenas as considerou indevidas como, além da multa de mora em percentual de 20%, aplicou a multa isolada de 150% sobre o valor das referidas compensações ao argumento de que "a compensação efetuada sem o devido lastro legal caracteriza evidente intuito de fraude".
É de se notar que, de acordo com o excerto acima extraído, não houve descrição da ocorrência de qualquer ação específica por parte do contribuinte que pudesse caracterizar a ocorrência de dolo para justificar o intuito de fraude, mas simplesmente a alegação de que a compensação foi realizada sem lastro legal, saltando aos olhos a parca fundamentação empregada pela fiscalização para justificar a imposição da penalidade.
Não foi trazido aos autos a descrição de qualquer ato que pudesse apontar a conduta dolosa do contribuinte a comprovar a "falsidade de declaração apresentada pelo sujeito passivo", quando da transmissão das declarações de compensação. Em verdade, parece-nos bastante óbvio que a operação questionada passou ao largo de qualquer hipótese de falsidade, pois para realizar as compensações teve o contribuinte a necessidade de demonstrar a apuração dos créditos utilizados a partir de uma revisão de obrigações acessórias e informações transmitidas ao Fisco. Ou seja, tinha o Fisco à sua plena disposição todos os elementos fáticos e documentais necessários para examinar a procedência ou não das compensações consideradas indevidas, não tendo o contribuinte deliberadamente omitido ou tentado embaraçar a obtenção de dados para que o Fisco pudesse fazer, como de fato fez, a revisão das compensações levadas a efeito pelo sujeito passivo.
No caso, verifica-se que a decisão por considerar as compensações indevidas e a aplicação da multa isolada decorreu tão somente da divergência interpretativa em relação aos dispositivos que delimitam a base de cálculo para apuração das contribuições previdenciárias sobre a folha de salários, nada mais. Ou seja, a "conduta dolosa" suscitada pelo Fisco para aplicar a multa em percentual de 150%, foi a mera interpretação divergente acerca da legislação previdenciária em referência, sem a indicação de qualquer ato incorrido pelo contribuinte que apontasse qualquer falsidade nas declarações prestadas nas compensações.
Considerando a literalidade do artigo 89, §10 da Lei 8.212/91 para aplicação da multa isolada de 150%, não há dúvidas que falhou a fiscalização na obrigação de produzir a prova que lhe cabia, pois conforme bem apontado no percuciente voto apresentado pelo conselheiro Rayan Santa Ferreira, se de um lado "é verdade que, por força do artigo 136 do Código Tributário Nacional (CTN), 'salvo disposição em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou responsável', ou seja, independe de dolo", de outro lado, em relação especificamente à multa isolada em questão, "há a condicionante de comprovação da falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo".
E, a esse respeito, o acórdão em análise confirmou que não houve qualquer comprovação em relação à conduta dolosa a justificar a imputação de falsidade em relação à declaração do contribuinte, conforme bem assinalado no seguinte trecho do voto vencedor, verbis:
<blockquote class="jota-article__citation">"...cabe mencionar que o motivo da glosa se deu apenas por divergência de entendimento, ou seja, com base em entendimento jurisprudencial a contribuinte que entendeu que as verbas não têm natureza salarial, enquanto o fiscal entende que tem. Ao meu ver, impossível indicar falsidade em interpretação da legislação. O fato de puramente discordar da compensação formalizada NÃO autoriza aplicar a multa punitiva" (grifos do original).</blockquote>
Tal decisão tem a virtude de nos lembrar da importância das regras sobre a distribuição do ônus da prova, por vezes um tanto desprestigiadas no processo administrativo, especialmente se em favor do Fisco. Isso porque, se de um lado não há dúvidas de que para constatação de eventual infração tributária a intenção do sujeito passivo é irrelevante (artigo 136 do CTN), por outro lado, para fins de imposição de penalidades qualificadas, como é o caso da multa isolada prevista no artigo 89, §10 da Lei 8.212/91, a devida demonstração da conduta dolosa é requisito indispensável para suportar a sua aplicação, não sendo possível à autoridade fiscal esquivar-se deste ônus probatório e, muito menos, os órgãos julgadores deixarem de analisar a presença desse requisito no lançamento, conforme bem assinalado nas razões do voto vencedor proferido no acórdão aqui reportado.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Portaria Carf/ME nº 14.548/2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Vale dizer que ao longo de 2020 e 2021, em adição às diversas medidas de suspensão de trabalhos por conta da pandemia, o Ministério da Economia editou diversas portaria versando sobre os valores de processos sujeitos a julgamentos virtuais, tendo a última delas (Portaria nº 14.814/2021), elevado esse valor para R$ 36 milhões.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.linkedin.com/posts/dalton-luiz-dallazem_ontem-atendendo-a-um-cliente-que-est%C3%A1-prestes-activity-6805543775511822336-YPD7">https://www.linkedin.com/posts/dalton-luiz-dallazem_ontem-atendendo-a-um-cliente-que-est%C3%A1-prestes-activity-6805543775511822336-YPD7</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> FAJERSZTAJN, Bruno, apud HALPERIN, Eduardo Kowarick, Multa Qualificada no Direito Tributário, IBDT, São Paulo, 2021, p. 136.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/receita-federal-o-caos-fiscal-por-tras-da-greve-dos-fiscais-06012022">Receita Federal: o caos fiscal por trás da greve dos fiscais - JOTA</a>

Carf

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Carf reafirma a comprovação do dolo como requisito para aplicação da multa isolada de 150%

Contornos do ônus da prova no processo administrativo

Coluna Carf: Órgão reafirma a comprovação do dolo, ou seja, o ônus da prova, como requisito para aplicação da multa isolada de 150%