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Coluna CARF

A boca que pronuncia as palavras da Súmula

Os conselheiros do Carf não são apenas a boca que pronuncia as palavras da Súmula

Pedro Adamy
13/04/2021|07:40
Atualizado em 13/04/2021 às 09:02
Carf
Crédito: André Corrêa/Agência Senado

“Les juges de la nation ne sont, comme nous avons dit, que la bouche qui prononce les paroles de la loi, des êtres inanimés, qui n’en peuvent modérer ni la force ni la rigueur.”

Montesquieu, De l’Esprit des lois, Livro XI, Cap. VI

É famosa no direito brasileiro a expressão “juiz boca da lei”. Ela advém de uma ideia exposta por Montesquieu, em seu colossal e – à sua época – inovador O Espírito das Leis. Trata-se, na verdade, de uma redução da frase efetivamente presente na obra do pensador francês, originalmente assim redigida:

“Os juízes da nação são, como já dissemos, apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados, que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor.” [1]

As ideias, como se sabe, são filhas de seu tempo. Com Montesquieu, uma das maiores mentes da história humana, não foi diferente. A ideia de que qualquer julgador apenas repete as palavras do legislador, sem qualquer aspecto criativo, crítico, reconstrutivo, ou tanto o mais, há tempos foi superada. O juiz não é, e provavelmente jamais foi, um mero repetidor de palavras.[2]

Atualmente, sempre que surge a referência ao “juiz boca da lei” o contexto é crítico ou pejorativo. E isso por diversas razões. Por amor à brevidade, pode-se enumerar três delas: primeiro, porque nega a própria natureza da interpretação jurídica, que não é, nem nunca poderá ser, ato de mera repetição de palavras. Em outras palavras: o juiz não é, nem nunca será, um mero autômato que lê os dispositivos legais e, acrítica e cegamente, repete-os para resolver o caso sob julgamento.

Segundo, porque a própria aplicação das leis pressupõe uma análise do contexto fático no qual se insere tal aplicação e sua interpretação. Quer isso dizer que as leis não são aplicadas em abstrato, sem um contexto que pode, em maior ou menor grau, influenciar a reconstrução normativa dos dispositivos interpretados.

Terceiro, porque, em muitos casos, o direito é ambíguo, vago, e indeterminado, fazendo com que a mera repetição das palavras da lei em nada contribua para a adequada solução do caso concreto.[3]

As Súmulas no CARF estão previstas no artigo 72 do Regimento Interno, nos seguintes termos:

Art. 72 – As decisões reiteradas e uniformes do CARF serão consubstanciadas em súmula de observância obrigatória pelos membros do CARF.

A importância das Súmulas no CARF é inegável. Em primeiro lugar, elas representam a consolidação da posição do Conselho, de forma a orientar e facilitar julgamentos futuros, tornando obrigatória sua observância aos membros do órgão julgador.

Em segundo lugar, em outros dispositivos o Regimento determina que as Súmulas sejam observadas de obrigatória, inclusive prevendo que Conselheiros que não adotem a posição consolidada em Súmula poderão perder o mandato, nos exatos termos do artigo 45, inciso VI do RICARF. Da mesma forma, determina o não cabimento de recurso especial em temas que tenham adotado a posição sumulada, ainda que a sua aprovação tenha acontecido após a interposição do recurso (art. 67 §3°) ou ainda o não cabimento do agravo em caso de negativa de seguimento do recurso especial baseado em posição sumulada (art. 71 §2°, inc. VI).

Em terceiro lugar, a relevância das Súmulas foi reafirmada pelo artigo 75 §2°, ao determinar que o Ministro da Economia poderá editar ato para asseverar a vinculação da administração tributária federal às Súmulas aprovadas.

Deve-se notar, no entanto, que a aplicação de Súmulas não é uma atividade automática, que decorre da mera leitura das palavras consolidadas no texto da Súmula. Ainda, a aplicação não é ato que se realiza sem qualquer tipo de intervenção do intérprete ou sem qualquer fenômeno interpretativo, em maior ou menor grau. Pelo contrário.

A aplicação das Súmulas pressupõe um juízo bastante criterioso entre a situação fática posta ao exame do CARF, da legislação aplicável ao caso concreto, bem como, da posição sumulada do Conselho. Para que isso fique claro, basta analisar as disposições atinentes às Súmulas presentes no Código de Processo Civil.

Com efeito, o próprio Código de Processo Civil elenca os critérios para a edição e aplicação das Súmulas. Por brevidade, transcrevem-se os dois principais dispositivos que tratam do tema.

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

(...) § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

(...) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

(...)

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Como se pode ler, em ambos os dispositivos, o Código de Processo Civil prevê que a aplicação da Súmula não é mera tarefa de repetição. Pode-se dizer, sem qualquer receio de erro, que aplicar Súmulas não é psitacismo jurídico. Não é repetição acrítica do texto condensado aprovada nos termos do RICARF.

Pelo contrário. O Código de Processo Civil, inteiramente aplicável ao processo administrativo por força de seu artigo 15, exige que o julgador, para aplicar uma Súmula, ultrapasse alguns obstáculos decorrentes dos dispositivos acima transcritos.

Em primeiro lugar, o julgador deve determinar as circunstâncias fáticas dos casos que levaram à edição da Súmula, para que, em casos futuros, seja feita a correta e adequada qualificação dos fatos e verificação da aplicabilidade ou inaplicabilidade da posição sumulada ao caso em exame.

Em segundo lugar, deve examinar os fundamentos determinantes do caso que ensejaram a edição da Súmula. Assim como o elemento anterior, os fundamentos determinantes tornarão viável o confronto entre a posição cristalizada na Súmula e os casos futuros que serão decididos com base nela.

Em terceiro lugar, a aplicação da Súmula pressupõe o ajustamento entre o caso julgado e os fundamentos da Súmula. Novamente, a sua aplicação não é ato automático e acrítico, mas pressupõe atividade qualificadora e interpretativa do julgador, sem a qual não é possível determinar se a posição consolidada em Súmula é ou não a mesma colocada sob julgamento.

Em quarto lugar, deve o julgador verificar a existência de diferenças fundamentais entre os casos e os fundamentos determinantes que ensejaram a edição da Súmula e o caso sob julgamento. Havendo diferenças relevantes, deve ser operada a distinção entre os casos, afastando-se a aplicação da Súmula. Nota-se, por oportuno, que o ônus argumentativo é do julgador que pretende uma distinção relevante entre a Súmula e o caso julgado. Assim, pode-se dizer que, pelo menos em tese, há uma presunção de aplicabilidade da Súmula, cabendo ao julgador a demonstração clara e inequívoca de sua inaplicabilidade.

Em quinto lugar, o julgador deve verificar se a posição cristalizada na Súmula não foi superada, por julgados posteriores e com vinculatividade formal perante o Conselho. Assim é que, em alguns casos, a posição sumulada é superada por julgamentos finais da Câmara Superior, ainda que a Súmula não seja formalmente revogada.

Pois bem. E qual a relação de Montesquieu com as Súmulas do CARF?  Pode-se resumir tal relação com uma paráfrase:

Os conselheiros do CARF não são apenas a boca que pronuncia as palavras da Súmula, seres inanimados, que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor.

Se é verdade que os dispositivos legais não podem ser objeto de mera repetição pelo juiz, transformando os julgadores em meras “bocas da lei”, também as Súmulas não são passíveis de serem objeto de mera repetição acrítica pelos conselheiros do CARF, transformando-os em meras “bocas da Súmula”.

A atividade de aplicação das Súmulas pressupõe interpretação e qualificação, não sendo um ato automático, sem qualquer interferência do julgador. Assim fosse, não haveria sequer a necessidade de julgadores humanos para os casos nos quais se defende a aplicação de uma posição sumulada.

A força de uma Súmula e o seu rigor na aplicação ao caso concreto são elementos que competem aos julgadores. Presumir que haverá aplicação acrítica e automática de texto de Súmula a todos os casos que, em maior ou menor grau, se assemelham ao texto da Súmula é negar a própria natureza da atividade julgadora que é, de maneira inegável, atividade interpretativa.

Ainda, a Súmula e o seu texto não têm natureza autônoma, desprendida dos casos que ensejaram a sua edição. Como acima mencionado, o confronto entre os casos que fundamentaram e consolidaram a posição do Conselho, cristalizado em uma Súmula, é elemento indispensável na atividade julgadora que pretenda decidir com base em posição sumulada.

Deve-se notar, por oportuno, que o afastamento da aplicação de Súmulas do CARF é, desde muito tempo, aceito e discutido na jurisprudência do Conselho, por motivos diversos. Para o que interessa, colaciona-se decisão recente da CSRF, à qual muitas outras poderiam ser adicionadas, na qual o afastamento da Súmula n. 25 expressamente discutido entre os conselheiros. Assim restou ementada, na parte relevante:

MULTA QUALIFICADA. PRESUNÇÃO DE OMISSÃO DE RECEITAS. DEPÓSITOS BANCÁRIOS. REITERAÇÃO. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS PRÓPRIOS PARA A MOTIVAÇÃO DA DUPLICAÇÃO DA PENA. CONJECTURA SOBRE A PRÓPRIA INFRAÇÃO. INADIMPLEMENTO FISCAL E DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES. SÚMULA CARF No 25. AFASTAMENTO.

Súmula CARF no 25: A presunção legal de omissão de receita ou de rendimentos, por si só, não autoriza a qualificação da multa de ofício, sendo necessária a comprovação de uma das hipóteses dos arts. 71, 72 e 73 da Lei n° 4.502/64.

A presunção de omissão de receitas traduz-se em inadimplemento tributário (descumprimento de obrigação principal e acessória), não podendo ser revestida, automática e objetivamente, de ocultação de fato jurídico tributário ou impedimento e retardamento da sua apuração pela Fiscalização.

Os fundamentos para a qualificação da multa de ofício de que a infração ocorreu reiteradamente, em diversos períodos de apuração é uma mera conjectura sobre a própria infração de omissão de receitas, procedidas pela adoção de prisma analítico de sua temporalidade, sem o devido respaldo legal.

(Acórdão 9101-005.366).

Não é o objetivo deste pequeno artigo adentrar nas discussões sobre distinguishing, overruling, ratio decidendi, fundamentos determinantes e tudo o mais que cerca a discussão sobre a (in)aplicabilidade de Súmulas. Outros autores já o fizeram em maior profundidade e com mais autoridade.

O importante a se reter de tudo que foi acima exposto é que a função de todo e qualquer Conselheiro é exatamente interpretar as Súmulas, verificando seus fundamentos, sua aplicabilidade ao caso e, para citar Montesquieu mais uma vez moderar a sua força e o seu rigor. De forma alguma pode-se exigir de um Conselheiro do CARF que se torne uma boca amorfa que simplesmente repete as palavras de uma Súmula.

Por fim, este pequeno texto serve como reconhecimento e singela homenagem aos Conselheiros que, diante de uma situação inusitada, mantiveram a coragem e a altivez de defender as posições que acreditam serem as mais corretas e adequadas ao direito tributário brasileiro.


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[1] Montesquieu, De l’Esprit des lois. Paris: Garnier, 1869, p. 149. Publicado no Brasil: O Espírito das Leis. Trad. Cristina Muracho. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 175.

[2] Para uma reconstrução histórica do fenômeno interpretativo no direito, veja-se SCHRÖDER, Jan. Recht als Wissenschaft. 2a ed. Munique: C.H. Beck, 2012, pp. 132 e ss.

[3] ADAMY, Pedro. Vagueza Normativa e Transições Políticas. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, 2013, p. 260 e ss.logo-jota