Beatriz Cunha

Bruno Ricardo Bioni

Hana Mesquita

Johanna Monagreda

Marina Lowenkron

Rafael A. F. Zanatta

Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou 22 Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra dispositivos das leis orgânicas estaduais e da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (LC n.º 80/94), que previam a prerrogativa da requisição.
O início do julgamento da ADI n.º 6852, que questionava a LC n.º 80/94, foi marcado por forte movimentação da comunidade jurídica, da mídia e das redes sociais, seja em perfis jurídicos ou não, de celebridades ou de pessoas comuns, em apoio à causa que levou à #DefensoriaSim aos tópicos mais comentados do Twitter.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
O impacto da campanha nas redes e o seu apoio por atores de diversos setores demonstrou que a importância do julgamento não decorre de mero corporativismo, mas coloca em xeque instrumento essencial para a democracia no país. Afinal, a prerrogativa de requisição tem papel essencial na promoção do acesso à ordem jurídica justa, tentando equilibrar as balanças da Justiça em um país que lamentavelmente figura no ranking das nações mais desiguais do mundo. Pelo indicador Gini, usado pelo Banco Mundial para medir desigualdade e distribuição de renda, <a href="https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/12/15/brasil-tem-a-8-pior-desigualdade-de-renda-e-supera-so-paises-africanos.htm">o Brasil em 2019 era o 8º pior país no mundo em desigualdade, atrás apenas de alguns países da África</a>.
Considerando que injustiça social e violações de direitos andam de mãos dadas, o constituinte de 1988 se preocupou em prever uma instituição com autonomia e instrumentos e lhe determinar a missão de promoção dos direitos humanos e defesa dos direitos individuais e coletivos dos vulneráveis: a Defensoria Pública. Para se desincumbir da missão constitucional, ferramentas de trabalho são necessárias.
A requisição, ora questionada, é apenas isso: uma ferramenta de trabalho para o equilíbrio de forças, que permite aos Defensores auxiliarem o vulnerável na obtenção de dados necessários para avaliar se sofre ameaça ou lesão a direito e tomar as medidas necessárias para a cessação ou reparação do risco ou dano diagnosticado.
Mas, ao mesmo tempo em que é “apenas” um instrumento de trabalho das Defensoras e Defensores Públicos, a requisição é uma conquista histórica do acesso material à justiça, na compreensão desse direito como efetivo acesso à ordem jurídica justa. Atualmente, segundo dados da <a href="https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/download/pesquisa-nacional-da-defensoria-publica-2021-eBook.pdf">Pesquisa Nacional da Defensoria Pública de 2021</a>, estima-se que o país possua ao menos 186.299.853 habitantes considerados como público potencial da Defensoria Pública por força de vulnerabilidade econômica, isto é, 88% da população total do país. Ainda, a mesma pesquisa estima que, desses usuários em potencial, 51.733.631 habitantes não possuem acesso aos serviços jurídico-assistenciais oferecidos pela Defensoria Pública, em violação ao art. 134 da Constituição Federal e à diretriz do art. 98 do ADCT. Em outras palavras, se a Defensoria, no atual estado da arte, sequer tem pernas para cumprir a missão constitucionalmente imposta, a quem interessa lhe cortar os braços?
De nada adianta prever uma instituição formalmente constituída para tutela dos direitos humanos dos indivíduos e grupos vulneráveis e privá-la de meios para desempenhar o seu papel.
Como se sabe, os Defensores Públicos são responsáveis por concretizar direitos em uma sociedade extremamente desigual<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e atuam nas tutelas coletiva e individual  na defesa de direitos e garantias fundamentais, o que naturalmente inclui aqueles relacionados à proteção de dados<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Reconhecimento facial e fotográfico<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, discriminação algorítmica<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> e a garantia do exercício dos direitos dos titulares de dados – temas nos quais as Defensorias Públicas brasileiras vêm notadamente atuando – são exemplos claros dessa interface entre proteção de dados e justiça social.
Longe de ser um “superpoder” que exorbita as atribuições da Defensoria Pública, a prerrogativa de requisição é uma ferramenta imprescindível para a contenção e redução de injustiças informacionais no Brasil. Afinal, conforme destacam Luciana Gross Cunha e Maria Tereza Sadek: “(...) <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/restringir-as-defensorias-publicas-revela-desprezo-aos-direitos-humanos.shtml">a prerrogativa de requisição de informações e de documentos aos órgãos públicos é, sem dúvida nenhuma, um instrumento fundamental para que a Defensoria Pública possa exercer suas atividades em conformidade com a afirmação do Estado Democrático de Direito e com reverência à primazia da dignidade da pessoa humana</a>”.
É mais uma camada, ao lado dos direitos do titular cristalizados nos arts. 17 a 22 da LGPD, que é capaz de reduzir a assimetria de informação de como o(a)s cidadão são catalogados, fichados, enfim, julgados e avaliados por um banco de dados. Considerando que muitas vezes o titular se depara com verdadeiros <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-ux-um-equilibrio-para-o-consentimento-16072021">"labirintos"</a> para exercer seus direitos, isto é, arquiteturas que reforçam a sua hipossuficiência. Tal poder atribuído às Defensorias é vital para a efetiva materialização dos direitos básicos como de acesso, retificação, deleção e oposição.
Os casos concretos abaixo evidenciam isso.
As pessoas socioeconomicamente fragilizadas que recorrem à instituição sequer  têm condição de diligenciar para conseguir os documentos necessários para ajuizar suas demandas. É nesse cenário que se insere a prerrogativa de requisição, que se tornou ainda mais decisiva em razão da crise sanitária da Covid-19. Durante a pandemia, diversas famílias brasileiras foram beneficiadas pela prerrogativa para reclamar contra o indeferimento do auxílio emergencial.
Foi a prerrogativa de requisição, ainda, que permitiu a obtenção de prontuários médicos indispensáveis para instruir ações pleiteando vagas em unidade hospitalar, exames e medicamentos. É que, sem a possibilidade de requisitar tais informações, a Defensoria Pública vê-se impossibilitada de comprovar a situação de saúde do/a usuário/a, e, ainda, a circunstância de urgência ou emergência. Trata-se, pois, de condição imprescindível para a obtenção de qualquer medida liminar e, caso não atendida, pode implicar morte ou dano irreversível à integridade do paciente.
De outro lado, a requisição também foi e é ferramenta indispensável para a defesa criminal. Afinal, ela permite que Defensores Públicos tenham acesso a certidões de nascimento para comprovar que a pessoa privada de liberdade é indispensável aos cuidados de criança ou pessoa com deficiência. Sem essa prerrogativa, perder-se-ia um instrumento fundamental para a substituição da prisão por prisão domiciliar, afastando-se dos objetivos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao editar a <a href="https://atos.cnj.jus.br/files/original160026202003305e82179a4943a.pdf">Recomendação n.º 62/2020</a> e a <a href="https://atos.cnj.jus.br/files/original22125020210125600f4262ef03f.pdf">Resolução n.º 369/2021</a>.
Em outro caso, a prerrogativa instrumentalizou pedido de retirada da foto de um homem negro de um álbum de suspeitos em uma determinada delegacia de polícia. Para além da autodeterminação informativa, o simples fato de a foto permanecer naquele álbum fazia com que diversas vítimas fossem levadas a reconhecer aquele indivíduo como o autor do crime contra elas praticado, incentivando falsas memórias em evidente prejuízo à presunção de inocência.
Ademais, Defensoras e Defensores Públicos puderam continuar monitorando as condições carcerárias e socioeducativas à distância. Em tendo sido decretada a emergência sanitária e em tendo sido fechadas as portas de tais unidades para o público externo, a requisição foi o que permitiu que a Defensoria Pública obtivesse informações sobre internos pertencentes aos grupos de risco ou com suspeita de Covid-19. Semanalmente, os gestores eram instados a enviar à instituição tais dados, a fim de que fossem feitos os respectivos requerimentos de liberdade e/ou atendimento de saúde.
Com efeito, a partir da análise desses casos, pode-se extrair algumas conclusões. A primeira delas é que a prerrogativa de requisição é instrumento para dar efetividade a uma série de direitos fundamentais, dentre os quais também se insere o direito à proteção de dados pessoais. Desse modo, ela permite que se obtenham informações sobre a confirmação do tratamento; o acesso aos dados pessoais eventualmente tratados; a retificação desses mesmos dados; e, até mesmo, a eliminação quando ausente uma base legal que os justifique ou quando caracterizado o excesso.
Os casos acima evidenciam que nem sempre a instituição poderá se valer pura e simplesmente dos arts. 18 a 22 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Afinal, há situações em que não há tempo hábil para se aguardar o prazo da LGPD ou da Lei de Acesso à Informação (LAI) para se obter a providência necessária para salvaguardar o direito do(a) usuário(a). Foi esse o <a href="https://sistemas.rj.def.br/publico/sarova.ashx/Portal/sarova/imagem-dpge/public/arquivos/relat%C3%B3rio_poder_de_requisi%C3%A7%C3%A3o_2021_(1).pdf">caso em que, após negativa de atendimento à requisição, propôs-se ação judicial para obter relatório médico e o paciente morreu antes que pudesse pleitear a sua vaga em unidade de terapia intensiva</a>. Do mesmo modo, é irrazoável, por exemplo, que se aguarde por 15, 20 ou 30 dias quando a resposta puder ter o condão de colocar uma pessoa em liberdade, assegurá-la o recebimento de um auxílio que se pretende “emergencial” ou livrá-la de uma grave violação de direitos humanos.
Daí nasce a segunda conclusão: quando em pauta a defesa do direito à proteção de dados pessoais, a prerrogativa de requisição é ainda mais essencial nos casos em que houver urgência ou emergência, caracterizada pelo risco de perecimento do direito e/ou dano irreparável ou de difícil reparação. Por meio dela, permite-se que a assistência jurídica seja efetiva e que o direito em xeque seja levado a sério, saindo verdadeiramente do papel com a celeridade necessária para permitir a sua fruição.
Logo, é evidente que a restrição da prerrogativa de requisição impacta a tutela coletiva e individual na defesa dos direitos fundamentais, incluindo também a proteção de dados pessoais. A vulnerabilidade socioeconômica do usuário das Defensorias Públicas acentua seu grau de exposição aos efeitos negativos do processo de datificação da sociedade de modo que a prerrogativa de requisição das Defensorias é imprescindível para dar efetividade aos direitos consagrados em nosso ordenamento jurídico. Assim, para que um tratamento de dados pessoais efetivamente justo e democrático ocorra, é indispensável que as Defensorias Públicas estejam adequadamente munidas das ferramentas necessárias para combater as assimetrias da complexa realidade brasileira.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BIONI, Bruno; ZANATTA, Rafael; KITAYAMA, Marina. Guia de Primeiros Passos para a Adequação das Defensorias Públicas à LGPD. São Paulo: Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, 2021. p. 6.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BIONI, Bruno; MESQUITA, Hana; ZANATTA, Rafael. Relatório de Discussões da Oficina Prática de Adequação à LGPD - Defensorias Públicas e Proteção de Dados. Revisão Maraísa Rosa Cezarino. São Paulo: Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, 2021.p. 25.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Relatório da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro sobre reconhecimento fotográfico em sede policial. Disponível em: <a href="https://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/54f8edabb6d0456698a068a65053420c.pdf">https://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/54f8edabb6d0456698a068a65053420c.pdf</a>. Acessado em 23 de novembro de 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Para saber mais sobre a atuação das Defensorias Públicas em matéria de discriminação algorítmica, confira o Webinar <a href="https://www.youtube.com/watch?v=Cgc7QALFHZs">Proteção de Dados Pessoais e o papel das Defensorias Públicas </a>realizado em parceria pela Defensorias do Estado de São Paulo, do Rio de Janeiro e Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa.

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JOTA

De nada adianta prever uma instituição para tutela dos direitos humanos e privá-la de meios para desempenhar o seu papel

A prerrogativa de requisição das Defensorias Públicas e a justiça de dados

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