Leonardo Cocchieri Leite Chaves

A discussão que envolve o uso remunerado de faixas de domínio de rodovias por agentes econômicos já se estende há alguns anos na academia e na jurisprudência. Quanto ao tema, alcançou especial repercussão o debate relativo à possibilidade de concessionárias de rodovias cobrarem pelo uso das faixas de domínio que componham os complexos rodoviários por elas administrados.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em precedente da 1ª Seção[1], consolidou entendimento no sentido de que poderá o Poder Concedente prever em favor da concessionária, no edital de licitação, a obtenção de receitas alternativas ou acessórias visando à modicidade das tarifas de pedágio, nas quais se incluem especificamente as receitas oriundas da contraprestação pelo uso das faixas de domínio.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A construção jurisprudencial em questão é dotada de especial profundidade teórica, pois decidiu-se a controvérsia não só do ponto de vista jurídico, nos moldes do quanto dispõe a Lei nº 8.987/1995, mas também foram encampados pelas razões de decidir fundamentos socioeconômicos que permeiam a matéria, ao se tomar como fator justificante da cobrança pelo uso de faixa de domínio em rodovias concedidas a promoção da modicidade tarifária.
Todavia, esse entendimento do STJ em relação às concessionárias de rodovia não é aplicado por essa mesma Corte aos casos em que o complexo rodoviário é administrado pelo próprio Poder Público, notadamente nas situações em que a faixa de domínio é utilizada por empresas prestadoras de serviços públicos para a passagem de linhas de transmissão de dados e de insumos (ex. energia elétrica e gás natural)[2].
Entende o STJ que, nas hipóteses em que a gestão da rodovia é realizada diretamente pelo Estado, é vedada a instituição de cobrança pela instalação de infraestrutura de serviços públicos nas faixas de domínio pelo fato de tais serviços beneficiarem toda a sociedade, ainda que se vislumbre nessa situação um uso anormal de bem de uso comum do povo com intuito lucrativo.
Entretanto, não há fundamentos jurídicos e econômicos que justifiquem a distinção das hipóteses em que as rodovias são concedidas, de um lado, ou administradas diretamente pelo Estado, de outro, para fins de instituição de cobrança pelo uso das faixas de domínio.
Primeiramente, releva destacar que a remuneração pelo uso de faixas de domínio constitui contraprestação específica pela utilização de infraestrutura pública, construída e gerida, a depender da hipótese, pelo Estado ou pela concessionária de rodovias. Não se trata, portanto, de contraprestação simplesmente pelo uso do solo, subsolo ou espaço aéreo, como expresso na jurisprudência do STJ, mas especificamente pelo uso da própria infraestrutura rodoviária.
Com efeito, as faixas de domínio integram a infraestrutura rodoviária, pois, em razão de sua essencialidade à segurança das rodovias, nela são incorporados diversos serviços e obras a cargo do Poder Público, tais como como terraplanagem, aterro, drenagem, limpeza de vegetação, construção de cercas, fiscalização, etc.
Os próprios prestadores de serviço público que utilizam essas estruturas se beneficiam das referidas obras e serviços realizados pelo administrador rodoviário, o que certamente também confere maior segurança às próprias linhas de transmissão de dados e insumos.
Nesse caso, diante de sua qualidade de verdadeira infraestrutura pública, construída e gerida seja pelo Estado seja por delegatários, há de ser devidamente remunerado o seu uso por terceiros, mesmo que sejam estes prestadores de serviços públicos.
Um exemplo é capaz de elucidar melhor o argumento. As leis que disciplinam os setores elétrico e de telecomunicações estabelecem o dever de compartilhamento de infraestrutura pelos agentes setoriais, a fim de garantir o acesso a estruturas essenciais à prestação dos serviços[3]. Com base em tais previsões normativas, o uso compartilhado da infraestutura por concessionárias de energia e telefonia é obrigatório, mas, frise-se, sempre remunerado.
Assim, caso determinada concessionária utilize a infraestrutura implementada por outra concorrente, obriga-se, por imposição legal, a remunerar o uso de tal infraestrutura. De forma análoga, o mesmo raciocínio é válido na situação ora apresentada. Trata-se, de igual modo, de utilização de infraestrutura pública (faixas de domínio) para se viabilizar a prestação de serviços por agentes econômicos, sendo devida, portanto, a respectiva contraprestação ao ente gestor da rodovia.
Em que pese a indiscutível relevância social dos serviços públicos de telefonia e de fornecimento energético e afins, não há dúvidas de que tais serviços estão inseridos em mercado competitivo e que são prestados com precípua finalidade lucrativa.
Nesse contexto, é certo que os custos que compõem a implementação e gestão dos meios para a prestação do serviço devem ser arcados pelos próprios agentes econômicos, aqui incluídos os custos concernentes à remuneração pelo uso faixas de domínio de rodovias.
Diante desse cenário, busca-se obstar a apropriação privada de lucros que decorram do uso de infraestrutura pública[4]. De se afastar a hipótese tratada na obra seminal de Garett Hardin, em “A Tragédia dos Comuns”[5], segundo a qual os bens públicos de uso comum, ao serem utilizados indistintamente em benefício de interesses privados, são expostos a progressivo esgotamento e inevitável colapso.
Além disso, do mesmo modo pelo qual as receitas acessórias possibilitam a redução das tarifas cobradas dos usuários em rodovias concedidas (art. 11 da Lei nº 8.987/95), a contraprestação pecuniária que decorre do uso das faixas de domínio administradas pelo Poder Público é revertida em favor dos próprios usuários das rodovias, em ações promovidas pelo ente gestor da malha rodoviária na melhoria da infraestrutura e dos serviços rodoviários.
Há a concretização do interesse público primário nas duas hipóteses, sobretudo nos casos em que o Estado administra rodovias de sua titularidade por intermédio de autarquias especializadas (DNIT, DER estaduais etc.), que aplicam tais valores auferidos pela exploração econômica da infraestrutura rodoviária diretamente em ações e serviços realizados nas rodovias.
Assim, seja para garantir a modicidade tarifária, nos casos de rodovias concedidas, seja para permitir o desenvolvimento de ações voltadas à ampliação e melhoria da infraestrutura e dos serviços rodoviários, nos casos de administração direta pelo Poder Público, há relevantes razões de ordem social e econômica na obtenção de receitas advindas da cobrança pelo uso de faixas de domínio.
A corroborar com os argumentos aqui esposados, o professor Floriano de Azevedo Marques Neto, em obra paradigmática acerca do regime jurídico dos bens públicos, afirma que “não há contradição entre o interesse geral e o aproveitamento econômico. Desde que este seja moldado em conformidade com a aplicação específica daquele, há uma combinação, pois o produto desta exploração econômica se incorpora ao orçamento do poder público, seu titular, viabilizando também a consecução de finalidades públicas”[6].
Por fim, considerando-se especificamente os casos de rodovias estaduais, a justa remuneração pelo uso de faixas de domínio é fator que impede a imposição econômica de serviços públicos federais (telecomunicações, energia etc.) sobre serviços públicos estaduais (infraestrutura e serviços rodoviários), o que é expressamente vedado pela Constituição Federal (art. 18 e 19, III, da CF/1988).
Não há ordem de preferência entre serviços prestados pelos entes federados, de modo que deve ser vedada no sistema federativo a prevalência econômica de um grupo de serviços a cargo de um determinado ente em detrimento dos bens ou serviços de outro. Isentar agentes econômicos que utilizem faixas de domínio de rodovias estaduais da contraprestação devida por tal uso implica justamente na afronta ao equilíbrio e à igualdade entre serviços prestados pelos entes federados, além de violação ao próprio direito de propriedade[7].
Portanto, não há como prevalecer o óbice à cobrança pelo uso das faixas de domínio de rodovias administradas diretamente pelo Poder Público. Na mesma linha do entendimento firmado pela jurisprudência do STJ em relação às concessionárias de rodovias, deve ser conferido ao Estado o poder de gestão de seus bens e infraestruturas públicas, o que abrange necessariamente o direito de exigir contraprestação pelo uso das faixas de domínio de suas rodovias.
&nbsp;
<hr />
[1] REsp 975.097/SP, Ministra DENISE ARRUDA, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/12/2009, DJe 14/05/2010. A orientação firmada em tal precedente tem sido reiterada em diversos e recentes precedentes de ambas as turmas que compõem a e. 1ª Seção (AgInt no REsp 1848363/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, DJe 23/03/2020; e REsp 1790863/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 22/05/2019).
[2] REsp 1.144.399/PR, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/09/2017, DJe 24/10/2017).
[3] O art. 73 da Lei n. 9.472/1997 e o art. 15, § 6º, da Lei 9.074/1995 encampam a essential facility doctrine no marco regulatório dos setores de telecomunicações e de energia elétrica, respectivamente. O tema concernente à essential facility doctrine foi objeto de precisa análise neste JOTA por Alexandre Cordeiro. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/essential-facility-doctrine-17022017">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/essential-facility-doctrine-17022017&gt;</a>.
[4] Nesse sentido, relevante destacar o entendimento do Min. Herman Benjamin em voto proferido no julgamento do REsp 1.246.070/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/05/2012, DJe 18/06/2012: No caso da rodovia, o uso comum é a passagem de veículos, não de cabos ou dutos pelo subsolo ou nas faixas marginais. Esse uso não comum, de natureza privada e com intuito lucrativo deve ser remunerado, na forma da legislação aplicável. Trata-se de ocupação com destinação privada: para quem presta o serviço e para quem o recebe, já que nem todos são beneficiados, a não ser os assinantes de determinada companhia telefônica”.
[5] HARDIN, Garett. The Tragedy of the Commons. Science, New Series, Vol. 162, No. 3859 (Dec. 13, 1968), pp. 1243-1248.
[6] Bens Públicos, Função Social e exploração econômica – O Regime Jurídico das Utilidades Públicas, Ed. Fórum, 2009, p. 438-439.
[7] No ponto, destaque-se o recente ajuizamento da ADI 6482 pelo Procurador Geral da República, em que se questiona a constitucionalidade do art. 12 da Lei n. 13.116/2015 (Lei das Antenas), que veda a cobrança de contraprestação em razão do direito de passagem em vias públicas, faixas de domínio e em outros bens públicos de uso comum do povo, para fins de instalação de infraestrutura de telecomunicações. Defende o PGR que a norma proibitiva prevista no dispositivo impugnado afronta a autonomia federativa, o direito de propriedade e o regime constitucional de competências, por entender, quanto a esse último, que a matéria não poderia ser disciplinada em norma geral da União sobre telecomunicações e direito urbanístico.

transito__sp_anchieta_imigrantes_0175

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Não há como prevalecer óbice à cobrança pelo uso das faixas de domínio de rodovias administradas pelo Poder Público

O uso remunerado de faixas de domínio de rodovias na jurisprudência do STJ

Não há como prevalecer óbice à cobrança pelo uso das faixas de domínio de rodovias administradas pelo Poder Público