Flavio Costa Bezerra Filho

A expressão “Cortes Online” não diz muito sobre o que tenta definir. Richard Susskind, jurista inglês que há décadas estuda os impactos da tecnologia no mundo jurídico, usa a expressão no título de seu último livro “Online Courts and the Future of Justice”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Resumidamente, pensar em uma corte online é desconstruir a ideia de que um tribunal deve ser necessariamente um local físico, para se entender que o que mais importa é o serviço por ele entregue. O que se pretende com a existência de um Poder Judiciário é que haja prestação jurisdicional enquanto serviço público, e é possível entregar jurisdição por meios virtuais.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Segundo o autor, há, em muitos países, demandas pela adoção de um modelo de Justiça prestada por meios digitais. Destacam-se, entre outros fatores, a demanda econômica de racionalização dos gastos com o sistema de Justiça. Em cenário de crise, isso se potencializa, e reduzir custos, entregando serviço público de maior qualidade, é dever do administrador.
Formas novas de resolução de disputas, sem barreiras geográficas e capazes de reduzir a barreira econômica, contribuem para ampliar o acesso à justiça, preocupação maior do autor.
Susskind menciona países como o Brasil e a Índia, que acumulam acervos de 80 milhões e 30 milhões de processos judiciais, os quais simplesmente não conseguirão vencer tais passivos sem a adoção de técnicas diversas das que geraram a formação desses números.
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse contexto, o argumento do ganho de eficiência se entrelaça com o do acesso à justiça: para que efetivamente haja acesso, deve-se entregar a prestação jurisdicional em tempo razoável.</blockquote>
Susskind divide o avanço tecnológico na Justiça em duas ondas: (1) uma evolutiva, incremental, na qual os processos atuais serão otimizados pela tecnologia; e (2) a efetiva revolução, em que a tecnologia levará à adoção de novos processos, maneiras totalmente novas de se resolver disputas.
O primeiro momento poderia ser exemplificado a partir do modo pelo qual se desenvolveu o processo eletrônico no Brasil, que resultou na criação de verdadeiros processos físicos digitalizados.
Embora não se possa negar o grande ganho de eficiência que houve com a adoção da forma eletrônica, as regras processuais e até mesmo a praxe forense ainda se limitam pela lógica do processo físico. É nessa linha o movimento incremental, da primeira onda, referido pelo autor.
Se, hoje, olhamos para o nosso sistema de justiça, vemos a possibilidade de, por meio de técnicas já disponíveis, operá-lo melhor. Na segunda onda, se vislumbra que os próprios institutos e a forma de raciocínio jurídico serão gradualmente recriados diante da nova realidade.
Concorde-se ou não com essas mudanças, concorde-se ou não com Susskind, a obra não é apenas preditiva, mas também descritiva. Diante de sistemas cada vez mais capazes, já existentes, pelo uso da inteligência artificial, do blockchain, da realidade virtual e da jurimetria, ele nos mostra algo que está acontecendo e que, a despeito de nossas opiniões, mudará o modo como se resolvem conflitos no mundo.
Nada disso é novidade no mercado privado. É importante que se confie na mão de obra de que se dispõe, mas as novas ferramentas colocam a advocacia pública em posição delicada.
Atualmente, já não é simplório fazer frente à quantidade de demandas em face do Poder Público, mesmo havendo um gargalo no Poder Judiciário, o qual, como visto, acumula um acervo de milhões de demandas pendentes de julgamento. Mas isso tende a se alterar.
Mudanças simples podem ser catastróficas para uma advocacia pública que não se antecipe às novidades tecnológicas. Um exemplo atual: os números da Coordenadoria de Execuções Contra a Fazenda Pública da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo demonstram que, com a adoção do teletrabalho pelo TJSP e a restrição provisória de tramitação dos processos judiciais aos processos eletrônicos, no contexto da pandemia da Covid-19, aumentaram em 27% as intimações enviadas diariamente ao órgão, entre os meses de abril e maio de 2020, quando comparados com os meses de fevereiro e março.
Tudo isso dentro do ferramental hoje já em uso no tribunal. Pode-se imaginar a magnitude do que virá com alterações instrumentais mais drásticas.
A atuação da advocacia privada já vem passando por mudanças, e o Judiciário também não está parado, estando à frente de diversas inovações em prol da eficiência judicial. O gargalo tende a acabar, e a advocacia pública precisará manter a qualidade da atuação que lhe é historicamente atribuída, diante da previsão de aumento significativo da demanda de trabalho.
As barreiras para criação e implantação de novas ferramentas no setor público não podem ser desconsideradas, e, por isso mesmo, são importantes as iniciativas que vêm se dando cedo.
No entanto, não só desafios se apresentam, mas também oportunidades interessantes. De forma não exaustiva, podem-se mencionar algumas das novas ferramentas que vêm sendo usadas no meio jurídico, mundialmente, e que podem contribuir para o trabalho das procuradorias.
As primeiras delas são as plataformas de ODR (online dispute resolution), em que as partes podem, virtualmente, de forma simplificada, buscar autocomposição ou uma decisão rápida para suas demandas. Diversos países já tiveram experiências bem sucedidas com causas de menor monta, como EUA e Canadá.
O uso de ODR é destacado até mesmo no âmbito de empresas, como eBay e Mercado Livre, que possuem sistemas de resolução de controvérsias entre compradores e vendedores.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
No âmbito do Judiciário brasileiro, há um precedente interessante de uso de ODR de forma a racionalizar o procedimento de recuperação judicial da Oi S.A., perante o TJRJ. Um sistema online permitia aos milhões de credores realizarem acordos para recebimento de seus créditos com a empresa, o que culminou no credenciamento de mais de vinte mil advogados em 30 dias, registrando, ao final da primeira etapa do projeto, em dezembro de 2017, mais de 35.000 acordos, totalizando mais de 100 milhões de reais em pagamentos imediatos a credores. <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Trata-se de experiência vista como bem sucedida, e pode servir de inspiração para que sejam criados meios de redução dos gastos com litígios desnecessários no setor público.
Por sua vez, os mecanismos de clusterização e categorização foram introduzidos em vários casos de sucesso, inclusive no Brasil. O STF, em parceria com a UnB, criou o Victor, robô dotado de inteligência artificial que lê todos os Recursos Extraordinários que chegam à Corte e os categoriza, identificando as relações com os temas de repercussão geral.
O STJ, em linha parecida, desenvolveu internamente o Sócrates, para lidar com recursos repetitivos. TJMG, TJPE e TJRN seguem o mesmo caminho. No ano passado, o TJSP firmou convênio com a USP para desenvolver ferramentas de inteligência artificial.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
A tomada de decisão automatizada tem potencial enorme no setor público, e já foi experimentada com sucesso na execução fiscal pelo TJRJ, por exemplo. Do lado da advocacia pública, a AGU tem sistema já em operação e a PGDF um projeto em andamento.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Na PGE-SP, já são conhecidas iniciativas internas, entre as quais a própria instituição do Núcleo de Inovação de que se originou este trabalho. A robotização de tarefas burocráticas libera o tempo de profissionais qualificados, para que possam se concentrar na formulação de teses e estratégias processuais.
Com isso, a atuação estratégica ganhará ainda mais relevância, mesmo na realidade do contencioso de massa. E não é só no trabalho repetitivo que a tecnologia vem auxiliar o meio jurídico. Um ganho qualitativo também é esperado. Possuir instrumentos de juízos preditivos a partir da jurimetria permitirá uma atuação melhor direcionada nos litígios.
Os instrumentos de juízos preditivos permitem uma forma sistematizada de se saber, antecipadamente, como determinado órgão jurisdicional decidirá um caso, a partir de seu comportamento em casos parecidos.
É possível saber até mesmo, com base na probabilidade calculada a partir de uma massa crítica de publicações, o quão sensível pode ser um juiz ou tribunal a determinados argumentos.
Ademais, a jurimetria associada à inteligência artificial permite evitar a propositura de demandas ou insistência em defesas que, estatisticamente, são fadadas ao insucesso. A partir dessas análises, será possível orientar os novos meios de resolver litígios de forma menos custosa ao Estado, como mecanismos administrativos de ODR, e aprofundar o uso da autocomposição pela Fazenda Pública, estatisticamente fundamentada.
Para além de todo o exposto, a incorporação do novo ferramental no setor público suscita relevantes discussões. Que tipos de algoritmos podem ser utilizados? Como se dará a accountability desses sistemas? São questões morais delicadas, a serem seriamente debatidas em outro contexto, de modo a formatar devidamente a inevitável mudança.
Por ora, coube vislumbrar algumas das potencialidades da incorporação das novas tecnologias na advocacia pública, dividindo o entusiasmo com a apreensão relativa à possível demora nessa adoção.
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O episódio 42 do podcast <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/sem-precedentes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Sem Precedentes</a> analisa as acusações de Donald Trump questionando a legalidade do pleito eleitoral nos EUA. Ouça:
https://youtu.be/xRgH-5h1gH8
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> SUSSKIND, Richard. Online courts and the future of justice. Oxford: Oxford University Press, 2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> WOLKART, Erik Navarro; BECKER, Daniel. Isaac Newton, eBay e canelas de gigantes: Covid-19 e o futuro da Justiça. Disponível em &lt;<a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/isaac-newton-ebay-e-canelas-de-gigantes-covid-19-e-o-futuro-da-justica-14042020">https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/isaac-newton-ebay-e-canelas-de-gigantes-covid-19-e-o-futuro-da-justica-14042020</a>&gt;. Acesso em 09 de agosto de 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CURY, CÉSAR. Um modelo transdisciplinar de solução de conflitos:
Direito e tecnologia no processo de recuperação judicial no leading case OI S/A. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique dos; WOLKART, Erik Navarro. Inteligência artificial e direito processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Juspodivm, 2020. p. 88. A plataforma encontra-se no link: &lt;<a href="https://www.credor.oi.com.br/">https://www.credor.oi.com.br/</a>&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “De acordo com o documento, serão apoiadas as atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico em inteligência artificial aplicada à ciência de dados da área jurídica, utilizando-se algoritmos de aprendizagem de máquinas para o desenvolvimento de ferramentas computacionais para a análise de documentos ou dados processuais.” Disponível em: &lt;<a href="http://www.sti.usp.br/ferramentas-de-inteligencia-artificial-aumentarao-eficiencia-na-area-juridica/">http://www.sti.usp.br/ferramentas-de-inteligencia-artificial-aumentarao-eficiencia-na-area-juridica/</a>&gt;. Acesso em: 17 de setembro de 2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> As discussões sobre o projeto da PGDF podem ser acessadas em: &lt;<a href="http://www.pg.df.gov.br/inteligenciaartificial/">http://www.pg.df.gov.br/inteligenciaartificial/</a>&gt;. O sistema da AGU, em operação, pode ser conhecido em: &lt;<a href="https://agu.jusbrasil.com.br/noticias/100362832/agu-aposta-em-inteligencia-artificial-e-automacao-de-processos-para-agilizar-trabalhos-juridicos">https://agu.jusbrasil.com.br/noticias/100362832/agu-aposta-em-inteligencia-artificial-e-automacao-de-processos-para-agilizar-trabalhos-juridicos</a>&gt;.

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JOTA

Desafios e oportunidades da tecnologia aplicada ao direito

A advocacia pública perante Cortes Online

Cortes Online: Desafios e oportunidades da tecnologia aplicada ao direito. Leia na coluna Advocacia Pública em Estudo no JOTA