Meios de pagamento

Carteiras digitais abrem mercado de pagamentos para empresas não financeiras

Nova fase do open banking também permitirá a operação de empresas de fora do sistema bancário no Pix

carteiras digitais
Crédito: Unsplash

Combinando as inovações do open banking e do Pix, os iniciadores de pagamento devem impulsionar uma nova fase na investida do Banco Central (BC) para expandir os serviços financeiros a novos agentes. Na prática, em breve será possível enviar valores via Pix por meio de aplicativos de mensagens, redes sociais, agregadores de contas e carteiras digitais – e poderemos ver versões turbinadas dessas últimas se multiplicarem em ritmo maior com a mudança.

Com aval do Banco Central, empresas não-financeiras já podem atuar como iniciadores de pagamento desde outubro passado. A autoridade inseriu essa categoria como uma nova modalidade de instituição de pagamento, que inclui ainda emissores de cartões pré-pagos e crédito ou maquininhas. Nesse vínculo mais recente, a transferência é autorizada via outro aplicativo com conta, o que a partir do próximo mês não será mais necessário.

Pelo baixo risco, segundo o BC, a instituição que presta serviço exclusivamente como iniciador de pagamento tem um processo de autorização mais simples. No fim de julho, aprovou a Resolução nº 118, permitindo a transferência via Pix pelos iniciadores, além de outras instituições financeiras e de pagamentos.

Desde então, o que já tem acontecido é que um pedido de delivery ou transporte em aplicativo não precisa mais ser pago via cartão de crédito diretamente, por exemplo. Ele pode ser feito via transferência por um iniciador de pagamento, frequentemente uma carteira digital. Como tudo isso acontece em segundos e, para o consumidor, de forma praticamente irrefletida, o processo passa despercebido.

A data limite para que as instituições participantes do open banking implementem os requisitos e procedimentos para o compartilhamento do serviço de iniciação de pagamento por Pix está marcada para 29 de outubro, quando se inicia a terceira fase do sistema de compartilhamento de informações. Inicialmente, a previsão é que começasse no final de agosto.

Nessa fase, há evoluções escalonadas até março, quando clientes poderão solicitar digitalmente propostas de crédito a várias instituições ao mesmo tempo. “Por algum tempo, ainda que fomente a concorrência, esse processo em certas áreas, como crédito, deve ver disputa entre integrantes que já estão no ecossistema, como bancos e fintechs”, avalia Rafael Schiozer, professor de finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo. 

Na perspectiva dele, em outras áreas com normas mais simplificadas, como pagamentos, é possível pensar em parcerias e lançamento de novos produtos Antes mesmo do open banking, a entrada de novos atores no mercado aconteceu sobretudo a partir da regulação como instituição de pagamento, menos exigente do que a exigida de bancos e empresas de crédito.  

O espaço das carteiras digitais

Em certa medida, a ideia de facilitar a transação digital por diferentes meios (crédito, débito ou dinheiro), trazida pelo BC com os iniciadores de pagamento, já era executada pelas carteiras digitais. Esse serviço armazena dados financeiros para realizar transações em lojas físicas e virtuais usando o celular ou outros dispositivos digitais. Na hora de pagar, a loja pode ter conexão com carteira digital, acionada por senha – isso poupa tempo e pode garantir maior segurança.

Nesse modelo, talvez o maior exemplo de carteira digital seja o pioneiro PayPal, nascido em 1998 nos Estados Unidos e que atualmente está presente em cerca de 200 mercados (ou seja, em quase todos os países do mundo). Ao permitir o armazenamento de dados de cartões, ele faz transferências entre pessoas ou para empresas. Um motivo para ter se popularizado tanto entre americanos é até elementar: no país, não existem figuras como DOC ou TED para transferências entre bancos distintos para pessoas diferentes.

Globalmente, esse tipo de ferramenta tem se expandido e ganhado novas feições, inclusive por incluir serviços híbridos. Ainda em 2019, estudo da consultoria Bain & Company já mostrava o aumento da tendência de mudança dos modelos de pagamento trazida pelas carteiras digitais. O levantamento global projetava que elas chegassem a 28% do total de pagamentos realizados em pontos de venda em 2022.

As carteiras digitais começaram a se popularizar sobretudo a partir da China, com o Wechat, da Tencent, e o Alipay, do Alibaba. No restante da Ásia, se expandiu rapidamente e se tornou quase onipresente, segundo o estudo. Enquanto isso, na América Latina, as projeções da Bain eram de que seriam menos usadas do que na média mundial – em 2022, 18% no comércio eletrônico, menos da metade do esperado para o resto do mundo.

Entretanto, tudo indica que esse movimento tenha se acelerado com a explosão do e-commerce durante a pandemia, verificado pelos principais marketplaces. No Brasil, os pagamentos digitais estão em alta. As transações realizadas em dispositivos móveis aumentaram 35% em 2020 em comparação com o ano anterior, segundo radiografia dos pagamentos divulgada pelo BC em setembro. E o Pix, existente por apenas um trimestre do período, já representava 1,3% dessas operações.

A busca por serviços financeiros digitais viveu um ponto de virada no período. Teve efeito o aumento do número de brasileiros com acesso a contas bancárias (de instituições tradicionais ou não), sendo que boa parte deles abriu sua primeira conta já em um banco digital. Muito forte no ano passado, esse movimento continua a apresentar números expressivos.

Pesquisa Datafolha encomendada pela associação Zetta, fundada por Mercado Pago e Nubank, mostrou que 38% dos respondentes usavam carteira digital ou aplicativo de pagamento. Isso embora as pessoas sem conta em banco representassem um quinto do total pesquisado. Além disso, quase a metade já tinha chaves cadastradas no Pix, com penetração maior entre os mais jovens, escolarizados e de maior renda.

Cabe observar ainda que, entre serviços financeiros digitais, uma carteira digital figura entre os aplicativos mais baixados, segundo uma pesquisa do Bank of America, que acompanha dados da Apple Store e Google Play. Atrás apenas do Nubank, o PicPay, que começou nesse modelo, permitindo guardar dinheiro e transferir em lojas físicas e online, foi o que mais teve procura. Ele ainda tem rendimento em geral com o dobro do CDI para o dinheiro armazenado. Há cerca de 600 carteiras digitais no país, com diferentes níveis de complexidade.

Agora, o aumento das possibilidades para iniciadores de pagamentos, como a inserção do popular Pix, pode aprofundar o movimento de serviços financeiros incorporados a outros produtos digitais. Cada vez mais oferecida por empresas de diferentes setores, a carteira digital (frequentemente, turbinada) é parte desse processo.

Empresas pautadas pelo comércio online começaram logo. A 99 lançou recentemente a 99Pay; a Rappi tem o Rappi Pay; o Mercado Livre tem o Mercado Pago desde 2008 em alguns países do grupo. Com algumas variações, o funcionamento é comum entre eles: geralmente até no mesmo aplicativo, é possível pagar contas e fazer transferências.

A mistura de serviços com diferentes objetivos gera desafios regulatórios que o setor não enfrentava até então – por isso, o Banco Central tem buscado trazer para sua alçada o máximo dessas novas funções, incluindo os iniciadores, que poderiam ficar descobertos sem a nova categoria. Inclusive, antes da regra, o WhatsApp tentou lançar seu iniciador de pagamento, mas foi barrado pela autoridade; neste ano, voltou com a novidade.

“Ao mesmo tempo em que é bom para o mercado e usuários, o aumento de concorrência expõe a mais riscos de cibersegurança e fraudes no Pix. As instituições precisam estar em conformidade tanto com as regras open banking e Pix quanto com legislação de proteção de dados”, avalia Patricia Peck, sócia do Peck Advogados e membro do Conselho Nacional de Proteção de Dados. Para o usuário, a relação entre os diferentes serviços dentro de um mesmo conglomerado precisa estar clara.

Nesse sentido, emergem agora as carteiras digitais de varejistas tradicionais. A Via (antiga Via Varejo, dona das Casas Bahia) tem, desde 2019, startup de carteira digital banQi. O aplicativo oferece uma conta corrente, permite fazer transferências, recargas de celular, pagar boletos, além de fazer saques gratuitos em lojas da varejista e também em lotéricas. Já a Pernambucanas anuncia ser a primeira loja a ter carteira digital, basicamente uma evolução do cartão da varejista.

A direção é de maior integração entre as diferentes interfaces – do ecommerce de uma marca conhecida nacionalmente, atendendo diferentes grupos de renda, e seus serviços financeiros. A Magalu adicionou a carteira dela, Magalu Pay, no seu “superapp”; por ele, se faz compras nas lojas, paga contas, Pix, transferências entre outros usuários da marca e via Banco do Brasil.

“Antes de vermos as transformações da chegada de soluções digitais gratuitas, o acesso a crédito pela população na base da pirâmide se dava sobretudo nas varejistas. Elas podiam oferecer isso por terem histórico mais completo sobre os próprios clientes, ao contrário dos bancos”, explica Breno Barlach, diretor de Pesquisa e Inovação do Plano CDE, organização que pensa em soluções para esses grupos.

Com o open banking, ele enxerga esse histórico mais compartilhado e com maiores opções para os grupos nas faixas de renda C, D e E. Esse papel ocupado pelo varejo – na prática incluindo no sistema uma população considerada “desbancarizada”, por não usar com frequência contas correntes – se reinventa com novos serviços financeiros oferecidos por elas, como a emergência das carteiras digitais. O relacionamento próximo é um diferencial que elas têm com essa população e que, agora, os bancos tradicionais tentam alcançar.

“Mesmo fintechs voltadas para classes mais altas de jovens acabaram se comunicando muito bem com público de baixa renda por serem gratuitas. Esse diferencial agora precisa ser anunciado pelas antigas instituições como ‘olha, também temos'”, diz Barlach. Para os pequenos empreendedores, essa digitalização e a chegada do Pix foram definidores na medida em que aumenta a capacidade de fazer negócios instantaneamente e sem novos custos.,

Embora com avanços nos últimos anos, mais difícil de atingir é parcela da população acima de 60 anos – via de regra, em todas as faixas de renda, ela é mais excluída digitalmente :apenas 24% disseram ao Datafolha ter chave Pix. “Existe uma intersecção entre inclusões digital e financeira. Para evitar nichos de excluídos, é importante pensar na proximidade com uma agência ou mesmo trocas de mensagem que conectem clientes com as instituições”, diz Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV.

Mesmo com a migração do acesso dos usuários para canais digitais, a atenção física não perdeu completamente o espaço – mesmo com o fator distanciamento social. Enquanto em 2015, o acesso por agências era 35% dos casos, em 2020 foram 22%, aponta o BC. E correspondentes bancários ainda têm 4%. Para a transição digital das finanças se completar, esse público precisaria se ver contemplado também nas carteiras nos celulares.