

Escândalos envolvendo corretoras de criptomoedas como o da FTX, que misturaram recursos de clientes com o patrimônio dessas instituições, trazem à tona a necessidade e a urgência de se regulamentar a segregação patrimonial, que foi removida do projeto legislativo que deu origem à Lei 14.478/2022, com diretrizes para a atuação de exchanges. O dispositivo chegou a ser incluído pelo Senado Federal, mas acabou eliminado pela Câmara dos Deputados.
Especialistas ouvidos pelo JOTA foram unânimes em afirmar que não contemplar a segregação patrimonial no marco legal gera insegurança jurídica e inibe investimentos no mercado de criptomoedas. Por meio da segregação patrimonial, as corretoras são impedidas de usar o dinheiro de clientes para pagamentos, com o objetivo de evitar ficarem insolventes.
Apesar das incertezas, a expectativa é que a segregação patrimonial seja contemplada na regulamentação da nova lei, que deve entrar em vigor em 20 de junho de 2023. De acordo com a senadora Soraya Thronicke (União-MS), autora do Projeto de Lei 2681/2022, que pretende instituir a obrigatoriedade da segregação patrimonial, o Poder Executivo precisa minimizar riscos desse mercado na regulamentação e implementação da nova lei.
“O Banco Central tem condições de estabelecer e aplicar efetivamente a lei. Caso não o faça, o tema será discutido outra vez pelo Parlamento”, diz Thronicke.
Para a proposta legislativa relacionada à segregação patrimonial, foram ouvidos representantes de instituições financeiras e de criptomoedas e de entidades de defesa do consumidor. Entre os consultados estão a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a Associação Brasileira de Criptoeconomia (Abcripto) e a Zetta – associação sem fins lucrativos fundada pelo Nubank e Mercado Pago.
De acordo com Thronicke, a segregação patrimonial é fundamental para proteger a poupança do consumidor e garantir que o risco do depósito do recurso seja apenas o risco do ativo – que pode valorizar ou cair, conforme a dinâmica do mercado. “Com a segregação, garantimos que a exchange não vai gastar o dinheiro do consumidor com despesas da empresa”, afirma a senadora.
A opinião é compartilhada pela Febraban. Em nota, a entidade avalia que a segregação patrimonial é um importante instrumento de proteção do consumidor, “considerando que o mercado de criptoativos historicamente apresenta elevadas volatilidades, o que implica em riscos para os clientes”.
Conforme Felipe Carteiro Moreira, sócio da área de Direito Digital do escritório Rayes e Fagundes Advogados Associados, a segregação patrimonial é fundamental para a confiabilidade no sistema de intermediação com criptomoedas. Ele faz um paralelo com os arranjos de pagamento, que não permitem a penhora do patrimônio de clientes em caso de dívida de instituições de pagamento.
O especialista acrescenta ainda que bancos possuem legislação específica que estabelece a integralização de um capital mínimo como condição de segurança e garantia de pagamento aos clientes em caso de insolvência das instituições financeiras. Segundo Moreira, ter algo similar para corretoras de moedas virtuais seria importante para dar mais confiança a esse sistema. “Ter o patrimônio sob risco não é interessante para investidores”, alerta.
Moreira destaca ainda que outra saída para aumentar a confiabilidade no mercado de criptomoedas seria a aprovação de projetos como o do PL 1600/2022, de autoria do deputado Eduardo Martins (PL-RR), que pretende regular a penhora no mercado de moedas virtuais.
Fundo de emergência é visto com ceticismo
A Binance, principal exchange do mundo, defendeu publicamente um fundo mantido pelas empresas, sem obrigatoriedade ou intervenção estatal, similar a um Fundo Garantidor de Créditos (FGC), para ressarcir investidores em determinadas situações. A corretora já possui um fundo da ordem de US$ 1 bilhão em criptoativos denominado Secure Asset Fund for Users (SAFU), que nunca foi auditado.
Mas especialistas vêem a proposta com ceticismo. Na visão de Isac Costa, professor do Ibmec e do Insper e especialista no mercado de criptomoedas, a instituição de uma espécie de FGC local é um tanto quanto incompatível com o caráter global do mercado cripto. Ele acrescenta que de nada adianta ter uma salvaguarda dessa natureza se a exchange pode usar os recursos dos clientes como quiser e alavancar-se, criando um potencial risco sistêmico.
“Se as exchanges quiserem atuar como bancos, é preciso pensar em mecanismos que auxiliem na proteção desse mercado em uma perspectiva holística e não apenas com ‘puxadinhos’, como seria o caso de um FGC”, afirma Costa.
Para Carlos Portugal Gouvêa, sócio do PGLaw e professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP, pensar em fundo de reserva sem regular a segregação patrimonial é um contrassenso, já que a insegurança jurídica seria mantida. Ele explica que as seguradoras funcionam de forma adequada nos mercados financeiro e de capitais porque têm como recuperar o valor das indenizações pagas aos investidores no processo de liquidação ou de falência das instituições, o que é mais difícil no mercado de criptomoedas.
“Ainda não se sabe ao certo como tratar os criptoativos, que são instrumentos de troca que podem ser usados como pagamentos, mas que não cumprem a mesma função da moeda”, comenta Portugal Gouvêa.
Ele acredita que o Brasil se precipitou na aprovação da Lei das Criptomoeda, porque nem os países desenvolvidos têm uma regulação para o tema. “Por que até os Estados Unidos com a regulação mais moderna de mercados de capitais não regulam as criptomoedas? Porque é complicado regular esse mercado que tem evoluído rapidamente”, destaca.
Portugal Gouvêa acrescenta ainda que ter uma regulação dá a falsa sensação de que se é um mercado seguro, o que pode não ser verdadeiro. O especialista considera que o mercado cripto é experimental e é natural que algumas poucas pessoas percam dinheiro para gerar aprendizado e monitorar o tamanho do risco que estão assumindo. “Acredito que, na regulamentação da lei, o Banco Central tomará medidas mais cuidadosas do que as que foram tomadas no Congresso Nacional na construção das normas, incorporando, inclusive, a segregação patrimonial”, aposta.
Escândalos no mercado de criptomoedas fortalecem pressão por segregação patrimonial
As discussões sobre a obrigatoriedade da segregação patrimonial ganharam mais força com escândalos envolvendo corretoras em diversos países, incluindo o Brasil. O caso mais emblemático foi o colapso da FTX, que usou os recursos dos consumidores de todo o mundo indevidamente em suas operações e não fez uma adequada gestão de risco. Estima-se que o rombo causado foi de US$ 8 bilhões.
Como na época da quebra da corretora não havia regulamentação para a atuação das exchanges no Brasil e a FTX não possuía registro no país, qualquer ação judicial de investidores brasileiros contra a empresa tornou-se praticamente inviável, já que teriam de recorrer judicialmente na jurisdição em Bahamas, onde a empresa estava instalada.
A perspectiva em relação à nova Lei das Criptomoedas é que incentive a instalação de empresas estrangeiras no país e também estimule o desenvolvimento do mercado doméstico. Segundo Thronicke, a legislação brasileira tem tomado como referência discussões no âmbito do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco de Compensações Internacionais (BIS), do Grupo de Ação Financeira (Gafi) e outros organismos multilaterais que debatem regulação e supervisão do sistema financeiro.
“Nosso intuito não é apenas copiar outros modelos, mas gerar novas normas que sejam referências em outros países”, destaca Thronicke.
Atualmente, apenas o PL 2681/2022 trata da complementação da regulamentação do mercado de ativos virtuais. Thronicke acredita que, em breve, serão protocoladas novas proposições legislativas. Ela, inclusive, está avaliando a possibilidade de dispor em novo projeto de lei sobre proof of funds – documento que comprova que uma pessoa ou empresa tem capacidade financeira para realizar uma transação.
“Será mais um passo para proteger o consumidor de casos como o da FTX ou da GAS Consultoria”, afirma a senadora.
A GAS Consultoria, chefiada por Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como “Faraó dos Bitcoins”, teve sua falência decretada recentemente pela 5ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro. Mais de 127 mil investidores tentam recuperar judicialmente R$ 9,3 bilhões que teriam sido perdidos em investimentos com criptomoedas. Santos, o Faraó, está preso na Penitenciária Federal de Catanduvas, no Paraná.