A Legalbot, criada em 2016, é uma startup que formulou uma plataforma de compliance de regulação, usando algoritmos e robôs para mapear novidades regulatórias de acordo com a área de atuação do cliente. Para o CEO, Alexandre Bess, o Estado como um todo, incluindo departamentos administrativos e reguladores, seria um cliente em potencial. Mas diante das dificuldades de prestar serviços a entes estatais, hoje a Legalbot tem somente um contrato com o poder público.
Um dos nós que o Marco Legal das Startups quer desatar é justamente a escassez da contratação de soluções inovadoras pelo Estado. O texto está pautado para ser votado no plenário da Câmara dos Deputados nesta segunda-feira (14/12). O JOTA ouviu CEOs de startups que prestam serviço ao poder público para saber se o teor do texto em discussão na Câmara dos Deputados pode ajudar a sanar as dificuldades enfrentadas hoje. A impressão atual é a de que o marco é uma boa iniciativa, mas ficaram de fora pontos fundamentais: redução da burocracia e trazer para o processo uma abertura de diálogo com órgãos de controle.
“A gente tem cliente no governo e o contrato foi por licitação, com pregão eletrônico”, relata Bess. Como a Legalbot tem um serviço inovador, esse contrato entrega mais do que foi especificado na concorrência. “Em licitação sempre pode acontecer isso, de você vender algo e depois entregar muito mais”, diz. “Culturalmente, o gestor público tem muito medo da contratação de inovação, porque no fim das contas é o CPF dele que está em jogo”.
Por isso, são raros os casos em que startups prestam serviço ao poder público. “Há um certo consenso de que a compra pública é um grande gargalo para esse tipo de parceria entre governo e empresas inovadoras”, explica Eduardo Spanó, professor convidado do Insper especialista em inovação.
Se um produto ou serviço é inovador, teoricamente não tem como participar de um pregão sem adaptações, uma vez que a proposta é de algo novo. Nesse caso, se o poder público se interessar pela contratação, precisa recorrer à inexigibilidade de licitação, regulada pelo artigo 25 da Lei 8.666/1993, que institui normas para contratos da administração pública. O artigo 25 diz: “É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo […]”.
Só que é muito raro um gestor público optar pela alternativa de inexigibilidade de licitação. “Demanda muita vontade do governo que pretende contratar, porque muitas vezes o gestor tem medo de seguir pelo caminho da inexigibilidade por eventuais problemas com o controle”, ressalta Spanó.
O pesquisador Yasser Gabriel, do Observatório do TCU da FGV Direito SP, explica que há riscos em um contrato por inexigibilidade: “a sanção pode vir por vários lados, com punição do gestor no final das contas. Essa punição pode vir por uma fiscalização de um tribunal de contas ou por uma lei de improbidade”.
Mesmo com as dificuldades desse modelo, a Colab, GovTech que tem uma ferramenta que aproxima cidadãos do governo, fez todos os contratos até hoje por inexigibilidade. “A gente perde muito contrato porque o gestor não negocia por inexigibilidade. E sempre vem na sequência a frase ‘escreve o termo de referência, porque você vai ganhar [uma eventual licitação]”, revela Gustavo Maia, CEO e co-fundador da empresa, fundada em 2013.
A Colab tem como clientes cidades como Teresina, Recife, Niterói, Santo André e Juiz de Fora. Além de disponibilizar uma ferramenta para maior participação social, a startup atua junto a administrações municipais para permitir gestões mais eficientes e inovadoras.
Já a Bright Cities consegue, com o plano mais básico, vender sem licitação suas soluções para tornar as cidades mais inteligentes. O Decreto 9.412/2018 permite a compra direta de serviços, sem licitação, até o valor de R$ 17,6 mil. A startup também faz vendas por inexigibilidade. A CEO da empresa, Raquel Cardamone, avalia que as principais dificuldades de negociar com o poder público são a “burocracia e a falta de incentivo para a inovação no país”.
Para Cardamone, é preciso ampliar o diálogo com órgãos de controle. “Acredito que o marco será um avanço, mas ainda haverá uma importante tarefa de conscientização dos órgãos, gestores públicos e tribunais de contas para sua implementação assim que for lançado”, diz. A Bright Cities é uma GovTech que usa algoritmos para recomendar estratégias, soluções e fornecedores que se adaptam da melhor forma às necessidades da cidade que contrata o serviço.
Em determinados casos, o Estado se torna sócio de uma empresa para ter direito a usar uma solução inovadora. “Pelo lado do fomento, você tem a participação do Estado como sócio, aportando um dinheiro e depois, se der certo, tem partes nos royalties e lucros”, explica Carolina Fidalgo, professora de pós-graduação de Direito Administrativo da UERJ e sócia do escritório Rennó Penteado Sampaio. “O problema do fomento por esse modelo é que o objetivo do Estado não é se tornar sócio de várias empresas no país”, ressalta.
Com tamanhos entraves, o poder público atualmente acaba contratando poucas soluções inovadoras. “No modo como o governo faz a compra, há uma especificação exata do que ele quer, é preciso escrever no detalhe o produto que está sendo comprado”, lembra Eduardo Spanó, professor convidado do Insper especialista em inovação. “E com essa especificação detalhada, não vai vir nada de novo do ecossistema”.
O gestor que tenta inovar, por sua vez, está exposto a riscos. “Hoje em um projeto inovador, se você não chega ao produto final, há uma boa expectativa de responsabilização daqueles que tentaram inovar”, afirma Arby Rech, auditor federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU). “No meu entendimento, essa questão da aceitação do risco pelos órgãos de controle tem que ser um pouco maior nesses projetos de inovação”, defende.
“Quando é uma contratação de inovação, órgãos de controle tendem a olhar como um serviço que tem que dar resultados. Não é a lógica de contratação de inovação para fomentar um serviço novo”, diz Yasser Gabriel, pesquisador do Observatório do TCU da FGV Direito SP.
Novidades presentes no marco legal das startups
O marco legal, nos moldes atuais, caracteriza startup como uma empresa de inovação com até 10 anos e com faturamento anual de até R$ 16 milhões. Visando o fomento das empresas em estágio inicial, as regras do texto são válidas somente se houver o enquadramento nesses critérios.
Embora não exista nenhuma lei que torne as empresas novas menos competitivas, na prática, é isso o que ocorre. “É muito difícil que uma empresa novata consiga ingressar nesse mercado de negociação com o poder público”, diz Gabriel. “A Lei 8.666 foi pensada para empresas que já estejam estabelecidas no mercado”, explica. “Por exemplo, como se comprova experiência? Com atestado, e empresa consolidada tem atestado, já empresa nova não tem atestado”.
As licitações pelo poder público deverão ser feitas, de acordo com o projeto, com a indicação do problema a ser resolvido. Caberá às startups selecionadas demonstrar durante a concorrência que possuem soluções adequadas à demanda do Estado. “É completamente sem sentido uma inovação sob demanda”, avalia Gustavo Maia, CEO da Colab.
O projeto de lei diz: “A delimitação do escopo da licitação poderá se restringir à indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela administração pública, incluídos os desafios tecnológicos a serem superados, dispensada a descrição de eventual solução técnica previamente mapeada e sua especificações técnicas, e caberá aos licitantes propor meios para a resolução do problema”.
Eduardo Spanó, professor convidado do Insper, considera a alternativa proposta uma boa ideia. “O mérito do marco é tentar especificar o problema que é para ser resolvido e abrir para as startups testarem qual é o produto que melhor resolve esse problema”, diz. “Esse é um ponto importante e que eu acho que deveria ir para além de startups”.
Fabiana Topini, sócia da área societária do escritório Rennó Penteado Sampaio com foco em Startups, faz a ressalva de que, antes da licitação, seria válido fazer uma consulta ampla. “Entendo que deveria haver uma consulta pública antes de ser divulgado o edital. Porque no mundo privado há esse procedimento”, diz. “O procedimento serviria para receber as informações, o que pode melhorar o escopo do que é o objeto do edital”.