Liberdade de expressão

TJAM suspende bloqueio de conta de youtuber que criticou atuação do estado

Decisões determinavam a remoção de um vídeo e, mais tarde, o bloqueio total da conta de um cientista político

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Sepultamentos de pessoas de baixa renda, no cemitério N.S. Aparecida em Manaus / Crédito Fernando Crispim/Amazônia Real

No combate à epidemia do coronavírus, informação é um ativo importante e tem sido usada na disputa política. No Amazonas, foram, até a noite da última terça-feira (19/5), registrados 22.132 casos e 1.491 mortes. Em meio ao colapso do sistema público de saúde, a Procuradoria do Estado amazonense entrou com uma ação judicial contra um youtuber que criticou ações do governo. A Justiça do Amazonas acolheu, na última segunda-feira (18/5), pedido do Google para suspender decisão do primeiro grau que determinava o bloqueio de contas pessoais dele. 

Jack Serafim, que se apresenta como cientista político e comunicador, tem publicado denúncias contra a administração estadual sobre a pandemia. Dentre elas, um vídeo cujo título é “Covid-19: o que é pior que um vírus para o Amazonas”. Na ação, o estado alega que as informações dadas pelo youtuber são falsas, elenca as providências tomadas pelo governo e sustenta que o homem estaria promovendo pânico e desordem social por meio de desinformação. Por isso, solicitou ao Judiciário a remoção do vídeo em questão e a determinação para que o homem se abstivesse de realizar outra postagem, sem as evidências de suas alegações. 

O juiz da 3ª Vara de Fazenda Pública de Manaus, em decisão liminar de 23 de março, havia entendido que as publicações excederam o conteúdo  informativo, e determinou a remoção do vídeo do YouTube e de qualquer outra local que ele teria publicado em 24h, sob pena de multa diária de R$ 10 mil. 

O vídeo foi removido e Serafim publicou outro material, intitulado “Covid-19: a negligência na saúde e o colapso”. O governo então apontou o descumprimento da ordem judicial. O que o youtuber sustentou que não aconteceu porque o vídeo anterior não estava mais no ar. 

“Nesse sentido, não há que se falar em descumprimento da decisão, muito menos em aplicação de medidas tão extrema como a proibição de um jornalista falar sobre o tema mais recorrente do momento, bem como ter bloqueadas as suas contas na internet, impossibilitando que o mesmo mantenha sua rede de contatos e exerça sua profissão, tratando inclusive de outros assuntos”, defendeu.

Serafim, ao entrar com recurso contra a decisão, apontou que a liminar afronta a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 13, em que o STF decidiu que a Lei de Imprensa 5250/1967 é incompatível com a Constituição de 1988 e garantiu ampla liberdade à atuação da mídia em geral e centrou o debate na vedação à censura prévia. 

Ele aponta as fontes nas quais baseou o vídeo gravado, e diz que o único trecho em que dá a opinião sobre o caso é quando diz que “o mais difícil no futuro será entender quem matou mais: se foi o vírus ou a irresponsabilidade do governo”. 

O desembargador Délcio Luis Santos, relator do caso no Tribunal de Justiça do Amazonas, analisou a transcrição do vídeo apresentada nos autos da ação de origem, já que o original já não estava mais disponível na plataforma. Ele discordou da decisão do primeiro grau de que o material excederia os limites razoáveis do direito de liberdade de expressão, sendo capaz de proporcionar caos na população amazonense.

Santos respondeu a pedidos tanto de Serafim como do Google, ambos da mesma forma. O Google, que é dono do YouTube, acabou entrando com o recurso por ter recebido a imposição de bloqueio do canal. A empresa apontou a censura prévia da decisão. Além dos argumentos apresentados pelo comunicador, recorreu, ainda, ao art. 19 do Marco Civil da Internet, além de discorrer sobre o funcionamento da plataforma.

“A interpretação uníssona conferida ao dispositivo legal em referência pelo STJ é a de que determinações judiciais devem indicar não somente a URL (endereço virtual) do perfil ou página de um canal gerenciado na internet, mas sim individualizar o ‘endereço interno das páginas das quais os atos ilícitos estariam sendo praticados’, ou seja, das postagens específicas reputadas infringentes. Sem tal indicação precisa, “a jurisprudência da Segunda Seção afasta o dever do provedor'”, afirmou a empresa.

Como aplicação de hospedagem de conteúdo, em grande parte produzido por terceiros, o YouTube ressalta que não exerce controle preventivo ou monitoramento sobre o conteúdo das páginas pessoais criadas pelos usuários. “Para garantir a liberdade criativa de seus usuários, o controle de conteúdo é excepcional e repressivo, mediante provocação de terceiros interessados. Para tanto, são disponibilizadas diversas funcionalidades, como o recurso de sinalização de conteúdo impróprio, a ferramenta de relatório, o formulário legal on-line e o formulário para reclamação relativa à privacidade”, explica.

De acordo com o YouTube, times da empresa fazem avaliação em caso de violação concreta às políticas internas para remoção de conteúdo. “Todavia, existem vídeos que, embora questionados, não violam diretamente as leis ou as políticas do YouTube ou a situação concreta retrata um conflito de direitos que não cabe à Google dirimir”, afirma.

“É o que acontece, por exemplo, quando uma parte alega que um determinado vídeo viola seu direito à intimidade e, de outro lado, coloca-se o direito à liberdade de expressão e manifestação do pensamento do usuário que compartilhou o material. Nestes casos, caberá ao Poder Judiciário dirimir o conflito e, se for o caso, ordenar a remoção do conteúdo por meio de ordem judicial específica, em seguimento aos termos do art. 19 do Marco Civil da Internet”, diz a empresa.

No primeiro momento, o juiz de origem indicou postagens específicas na ordem judicial, o que foi cumprido e o material foi retirado do ar. Já a medida de bloqueio de todo o canal viola, argumenta o Google, o dever de indicação precisa e inequívoca do material ilícito previsto pelo Marco Civil da Internet, o que culminaria por desobrigar a empresa de remover conteúdo da internet.

“Em análise sumária da transcrição do vídeo objeto da ação observo que o tom de reprovação com que o agravante refere-se ao atual Governo estadual e às medidas tomadas no contexto do combate à pandemia do coronavírus não constitui, a meu ver, motivo suficiente para impedir que sejam expostas as respectivas críticas, sob pena de converter o exercício da jurisdição cautelar em prática judicial inibitória de expressão e de comunicação”, disse o desembargador Délcio Luis Santos, relator do caso no TJAM. 

Para além disso, ele afirma que não há razoabilidade da decisão ao determinar o cancelamento da conta do jornalista para impedir qualquer postagem que tenha como objeto as ações de saúde pública relacionadas à pandemia do coronavírus. Manter a decisão implicaria em um grave risco porque impediria a publicação não apenas do que está sub judice. 

“Não obstante seja desejável e necessário impedir a proliferação de informações falsas via internet, entendo que não se pode decidir com base em ilações, e muito menos impedir que outras matérias sejam divulgadas pela mesma conta, devendo o Poder Judiciário agir com moderação ao limitar o direito à liberdade de expressão, e aqui o exercício da atividade jornalística, considerando o especial cuidado dedicado pelo nosso sistema constitucional à tutela da liberdade de expressão e informação, enquanto instrumentos imprescindíveis para o resguardo e promoção das liberdades públicas e privadas dos cidadãos”, decidiu.

O vídeo

O vídeo que foi removido e é objeto da ação dizia o seguinte:

“Minha caixa de mensagens não para com informações dos hospitais do Amazonas, sobre o caos diante do coronavírus. Profissionais da saúde denunciam a inexistência de material de segurança. Conforme eles, os prontos-socorros estão lotados, e ninguém é testado. Entre os médicos e enfermeiros se fala que o número de infectados é pelo menos 3 (três) vezes maior que o divulgado, já que há pessoas que estão contaminadas e ainda não sabem. Conforme eles, 80% (oitenta por cento) das pessoas que estão espalhando o vírus não apresentam sintoma algum. Por se sentirem bem, continuam nas ruas. A mídia tem mostrado que somente políticos ou casos extremamente graves é que estão sendo testados. Em Manaus o hospital de referência para casos comprovados é o hospital “Delphina Aziz”, que sequer tem uma entrada exclusiva para as pessoas com os sintomas, o que amplia ainda mais a contaminação já na chegada. Nos demais hospitais, então, o caos é ainda pior. O mais difícil no futuro será entender quem matou mais: se foi o vírus ou a irresponsabilidade do governo”.