Fake News

O que pensam os especialistas sobre o bloqueio do Telegram?

Medidas de Moraes contra usuários e potencial de a plataforma ficar fora do ar indeterminadamente são alvos de críticas

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Crédito: Unsplash

O bloqueio do Telegram por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), é a mais ampla suspensão a um serviço de internet no Brasil. Ela tem efeitos práticos, mas também políticos.

A decisão do ministro se pautou pelo descumprimento de ordens judiciais pelo Telegram no âmbito da investigação contra o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, do canal Terça Livre, responsável pleo disparo de fake news. Na justificativa que faz para o movimento, porém, ele não se restringiu ao caso, mas citou informações da Polícia Federal sobre o uso da plataforma por grupos criminosos inclusive de pornografia infantil.

“Essa decisão é baseada em Allan dos Santos, mas ela é geral sobre o uso do Telegram, mirando em algo mais amplo, como as eleições, que já se espera serem uma guerra digital”, avalia Marco Antonio Sabino, pesquisador do Instituto de Liberdade Digital (ILD).

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Além de mensageria privada, o Telegram funciona como rede social ao permitir grupos de milhares de pessoas e não ter limite de encaminhamento de mensagens. Porém, ela não é aberta e nem sujeita à moderação. “É uma espécie de dark web na internet aberta. Para o político mal-intencionado, é maravilhoso”, completa Sabino.

Moraes aumentou para R$ 500 mil a multa diário pelo descumprimento de sua decisão – na ordem anterior, eram R$ 100 mil. Há ainda a possibilidade de multa diária de R$ 100 mil para usuários que usarem tecnologia (como VPN com conexão de outro país) para burlar o cerco. Com isso, a decisão abre um novo capítulo na disputa sobre a legalidade da plataforma no país.

Após a divulgação da decisão, nesta quinta-feira (18/3), o fundador do Telegram, Pavel Durov, pediu desculpas STF pela “negligência” ao não cumprir ordens judiciais. “Definitivamente, poderíamos ter feito um trabalho melhor”, disse Durov em seu canal no Telegram. Ele justificou o descumprimento dizendo que “parece que tivemos um problema com e-mails entre nossos endereços corporativos do telegram.org e o Supremo Tribunal Federal”.

Moraes determinou que, no prazo de cinco dias, o aplicativo de origem russa seja retirado das lojas de aplicativo da Apple e do Google no Brasil e que todas as operadoras de celular inviabilizem o uso da plataforma. Assim, o cerco é fechado para que o aplicativo nem possa ser baixado nem usado por aqueles que já o têm no aparelho.

O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) prevê que os provedores podem ser responsabilizados pelo descumprimento de ordem judicial. “Se o bloqueio do Telegram tivesse acontecido por motivos abstratos, como a falta de participação com os esforços eleitorais, a decisão seria desproporcional. Mas, com o caso Allan dos Santos, há uma razão bastante concreta”, diz Yasmin Curzi, professora do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“Já a multa direcionada aos usuários vai contra a cultura de liberdade, internet aberta e direitos digitais que precisa ser valorizada”, pondera Curzi. Entendimento oposto, que permitiria também a coerção que ultrapassa a empresa, é a noção de que o magistrado no processo civil pode tomar medidas de apoio para que a decisão dele seja cumprida. Nesse caso, a visão é que se trata de uma tentativa de pressionar o Telegram a atender às ordens.

A suspensão de plataformas também está prevista pelo Marco Civil a Internet como uma das possibilidades caso sejam ignoradas decisões judiciais que determinam o fornecimento de dados para a identificação de usuários. Na situação do Telegram, Moraes afirma que os perfis de Allan dos Santos foram retirados, mas a rede nunca enviou as informações que possuía sobre ele.

Para suspender a plataforma, o ministro menciona o artigo 12 do Marco. Todavia, o artigo estabelece sanções nas hipóteses em que houver o descumprimento de deveres relacionados à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem.

“As sanções previstas, a princípio, não autorizam o bloqueio de aplicações de internet, mas a suspensão ou a proibição das atividades que envolvem os atos previstos no artigo 11, quais sejam, ‘a coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros de dados pessoais ou de comunicações'”, afirmam pesquisadores de Direito Digital em artigo publicado no JOTA. Assim, numa análise literal, o artigo permite apenas o bloqueio das atividades de tratamento de dados pessoais, mas não do serviço em si.

“As decisões do ministro têm jurisdição apenas no Brasil, mas ele não fala em limites geográficos e pede que o bloqueio das contas seja geral, quando só poderia limitar o acesso de brasileiros ao conteúdo. É questionável”, afirma Christian Perrone, professor do Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS), no Rio de Janeiro.

A medida de focar na plataforma como um todo, e não em contas pontuais, deveria ser extraordinária, na visão de Perrone. “Há um impacto social e econômico em suspender o acesso isso, que demandaria uma justificativa muito robusta para que não tivesse sido primeiro restringido apenas o acesso nas lojas”, diz.

Segundo ele, o bloqueio da plataforma no Brasil poderia atingir outros países próximos, já que, em certa medida, impacta o funcionamento da internet. “Temos interconexão na infraestrutura de base da internet, então, se são feitas mudanças, as regiões seguintes podem ser afetadas pelas restrições”, diz ele. Esse efeito já aconteceu com a restrição de aplicativos por operadoras após decisões judiciais.

É a primeira vez que uma decisão desse tipo parte do Supremo. Em 2015 e 2016, o WhatsApp foi bloqueado algumas vezes por descumprimento de decisões judiciais. Mas as medidas foram adotadas por juízes de primeira instância e foram revistas nos tribunais.

Se a plataforma decidir não atender às ordens de Moraes – ou o ministro aceitar as desculpas do fundador –, a suspensão se mantém. “As medidas de suspensão são autoritárias, mas os juízes têm essa possibilidade desde que motivem, como aconteceu. Quando elas se prolongam, começamos a falar em censura à medida em que há menos um meio para se expressar”, diz Sabino.

No ano passado, 53% dos celulares brasileiros tinham o Telegram instalado, segundo a pesquisa Panorama Mobile Time.

Entenda o bloqueio do Telegram pelo STF

O ministro Alexandre de Moraes determinou o bloqueio do Telegram no Brasil. A ordem chegou na última quinta-feira (17/3) à Anatel. A suspensão do funcionamento do Telegram no Brasil permanecerá até o efetivo cumprimento das decisões judiciais anteriormente emanadas por Moraes, inclusive com o pagamento das multas diárias fixadas e com a indicação, em juízo, da representação oficial no Brasil (pessoa física ou jurídica).

A decisão é de ontem e, como a Anatel não tem como operacionalizar a decisão, o encaminhamento da agência reguladora do setor de telecomunicações foi comunicar as empresas sobre a decisão judicial e da necessidade de executar o bloqueio no aplicativo de mensagens. Isso já ocorreu há alguns anos também quando uma decisão judicial determinou o bloqueio do WhatsApp.

O Telegram, por ter menos restrições de uso (como quantidade de mensagens), tornou-se uma plataforma mais utilizada para distribuição de conteúdo bolsonarista e é visto também, por ter menos restrições (como quantidade de mensagens replicadas), um caminho mais propício à disseminação de notícias falsas (fakenews).

“O desrespeito à legislação brasileira e o reiterado descumprimento de inúmeras decisões judiciais pelo Telegram, é circunstância completamente incompatível com a ordem constitucional vigente, além de contrariar expressamente dispositivo legal”, diz um trecho da decisão. “A plataforma TELEGRAM, em todas essas oportunidades, deixou de atender ao comando judicial, em total desprezo à JUSTIÇA BRASILEIRA.” Leia a íntegra da decisão.

Além disso, Moraes majorou a multa diária para o Telegram até o cumprimento da decisão de R$ 100 mil para R$ 500 mil, a partir da intimação da empresa. Para que o Telegram possa voltar a funcionar depois que a decisão seja cumprida, a multa deverá ser paga.

Moraes também afirma que as pessoas físicas e jurídicas que usarem de subterfúgios tecnológicos para continuidade das comunicações ocorridas pelo Telegram estarão sujeitas às sanções civis e criminais, na forma da lei, além de multa diária de R$ 100 mil.

Na decisão, Moraes cita 5 casos de descumprimentos de decisões:

  1. (Em relação às decisões de 13/1/2022 e 15/2/2022, a plataforma TELEGRAM não procedeu ao bloqueio dos perfis @allandossantos @artigo220 @tercalivre, e deixou de a) indicar o usuário de criação dos mencionados perfis, com todos os dados disponíveis (nome, CPF, e-mail), ou qualquer outro meio de identificação possível, além de apontar a data de criação do perfil; (b) suspender, imediatamente, o repasse de valores oriundos de monetização, dos serviços usados para doações, do pagamento de publicidades e da inscrição de apoiadores e advindos de monetização oriunda de lives, inclusive as realizadas por meio de fornecimento de chaves de transmissão aos canais/perfis indicados; e (c) indicar de forma individualizada os ganhos auferidos pelos canais, perfis e páginas referidos acima, com relatórios a serem apresentados em 20 (vinte) dias.
  2. Em relação à decisão de 18/2/2022, embora tenha ocorrido o bloqueio dos perfis @allandossantos @artigo220 @tercalivre (sem comunicação ao Juízo), a plataforma TELEGRAM deixou de fornecer os dados requeridos, acima referidos
  3. Em relação à decisão de 8/3/2022, a plataforma TELEGRAM deixou de cumprir integralmente a decisão deste SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, deixando de bloquear o perfil @allandossantos2 e, ainda, de (a) indicar o usuário de criação dos mencionados perfis, com todos os dados disponíveis (nome, CPF, e-mail), ou qualquer outro meio de identificação possível, além de apontar a data de criação do perfil; (b) suspender, imediatamente, o repasse de valores oriundos de monetização, dos serviços usados para doações, do pagamento de publicidades e da inscrição de apoiadores e advindos de monetização oriunda de lives, inclusive as realizadas por meio de fornecimento de chaves de transmissão aos canais/perfis indicados; (c) indicar de forma individualizada os ganhos auferidos pelos canais, perfis e páginas referidos acima, com relatórios a serem apresentados
    em 20 (vinte) dias; (d) informar nestes autos, imediata e obrigatoriamente, acerca da criação de quaisquer novas contas/perfis pelo investigado ALLAN LOPES DOS SANTOS, além de proceder ao seu bloqueio IMEDIATO; (e) adotar mecanismos que impeçam a criação de quaisquer novos perfis por ALLAN LOPES DOS SANTOS, notadamente por meio da checagem e vedação à criação de contas palavras-chave, combinadas ou não, precedidas ou sucedidas por quaisquer outras palavras relacionadas a qualquer parte do seu nome e quaisquer outras que sejam identificadas e usadas pelo investigado; e (f) informar nestes autos, imediata e obrigatoriamente, sobre todas as providências adotadas para o combate à desinformação e à divulgação de notícias fraudulentas, incluindo os termos de uso e as punições previstas para os usuários que incorram nas mencionadas condutas.
  4. Em relação à decisão de 12/8/2021, nos autos do Inq. 4.781/DF, a plataforma TELEGRAM deixou de cumprir integralmente a decisão deste SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, deixando de proceder a imediata exclusão/retirada das publicações divulgadas no link https://t.me/jairbolsonarobrasil/2030, preservando o seu conteúdo, com disponibilização ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL;
  5. Em relação à decisão judicial nos autos do Inq. 4.781/DF, em 17/2/2022, a plataforma TELEGRAM deixou de cumprir integralmente a decisão deste SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, deixando de proceder ao bloqueio do canal https://t.me/claudiolessajornalista, com o fornecimento de seus dados cadastrais a esta SUPREMA CORTE e a integral preservação de seu conteúdo.

Moraes justifica a decisão usando o Marco Civil da Internet. “O ordenamento jurídico brasileiro prevê, portanto, a necessidade de que as empresas que administram serviços de internet no Brasil atendam às decisões judiciais que determinam o fornecimento de dados pessoais ou outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, circunstância que não tem sido atendida pela empresa Telegram”, escreveu o ministro.

No mês passado, o ministro havia determinado a suspensão de perfis no Telegram ligados ao blogueiro bolsonarista Allan dos Santos no prazo de 24 horas após a intimação. Caso o aplicativo russo não cumprisse a determinação, a plataforma estaria sujeita a “suspensão do funcionamento dos serviços do Telegram no Brasil pelo prazo inicial de 48 horas”. Diante da possível punição, pela primeira vez, o aplicativo russo cumpriu uma determinação do Judiciário brasileiro.

Na decisão mais recente, Moraes afirmou que “apesar do bloqueio pontual dos três perfis mencionados (@allandossantos; @artigo220 e @tercalivre), não houve, por parte da empresa Telegram, o devido atendimento à determinação emanada deste SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL”.

Na decisão, Moraes também havia determinado à plataforma a suspensão do repasse de valores de doações, o pagamento de publicidades e a inscrição de apoiadores. Assim como a monetização oriunda de lives, inclusive as realizadas por meio de fornecimento de chaves de transmissão aos canais/perfis indicados. O ministro deu 20 dias para que o Telegram indicasse, de forma individualizada os ganhos auferido pelos canais, perfis e páginas ligadas a Allan dos Santos, como o Terça Livre.

Para Moraes, Santos tem “se utilizado do alcance de seu perfil no aplicativo Telegram (com mais de 121 mil inscritos) como parte da estrutura destinada à propagação de ataques ao Estado Democrático de Direito, ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Senado Federal, além de autoridades vinculadas a esses órgãos”.

“O uso do Telegram se revela como mais um dos artifícios utilizados pelo investigado para reproduzir o conteúdo que já foi objeto de bloqueio nestes autos, burlando decisão judicial, o que pode caracterizar, inclusive, o crime de desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito (art. 359 do Código Penal). A utilização de vários perfis, criados com a intenção de se esquivar dos bloqueios determinados, tem sido prática recorrente de Allan Lopes dos Santos para a continuidade da prática delitiva, comportamento que deve ser restringido”, escreveu Moraes.

Na decisão, Moraes havia determinado a intimação da empresa Telegram, por meio de intimação pessoal dos sócios de seu procurador domiciliado no país (Araripe & Associados), escritório que cuida de questões relacionadas a propriedade intelectual. O escritório foi novamente intimado desta vez.