Passe livre para fake news

MP de Bolsonaro que dificulta remoção de posts é criticada por especialistas e redes

Texto de Bolsonaro lista motivos que justificariam exclusão de publicações. Remoção de desinformação precisaria de aval judicial

remoção de posts
Bolsonaro em motociata na cidade de Uberlândia, Minas Gerais / Crédito: Alan Santos/PR

Após indicar por meses que vedaria a remoção de posts por redes sociais e criticar ações para derrubar fake news, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) editou medida provisória (MP) para limitar a atuação das plataformas. Agora plataformas como Instagram, Facebook, Twitter e YouTube podem ser punidas se retirarem publicações com manifestações sabidamente antidemocráticas, informações falsas ou até que possam prejudicar a saúde das pessoas, como no caso de desinformações sobre a pandemia da Covid-19.

O movimento foi feito na véspera das manifestações bolsonaristas convocadas para 7 de setembro, em que são esperados protestos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e outras instituições democráticas. O governo, que anunciou o texto no Twitter da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, nesta segunda-feira (6/9), diz que o objetivo seria garantir a liberdade de expressão. Especiaistas, contudo, discordam.

A MP prevê a necessidade de garantia de “ampla defesa” e a apresentação de “justa causa e de motivação nos casos de cancelamento ou suspensão de funcionalidades de contas ou perfis”. São enumerados os motivos válidos para a ação. Não são mencionadas a promoção de conteúdos antidemocráticos ou de notícias falsas sobre a pandemia da Covid-19, por exemplo.

“Não se fala em desinformação e discurso ódio, cuja exclusão é essencial para as plataformas. As sanções também seriam por retirar conteúdo de forma indevida, então, em tese, tudo o que não é listado poderia continuar no ar. Mas o principal defeito desse texto é que, nessa matéria, não cabe medida provisória. Parece que é interesse privado”, diz o advogado Marco Antonio Sabino, pesquisador do Instituto de Liberdade Digital (ILD).

Entre os motivos de “justa causa” para remoção de publicações, o texto menciona conteúdos que contenham violência ou atos discriminatórios; incitação ao terrorismo; uso de drogas; violação de direitos autorais; além de promoção de atos contra a segurança pública, defesa nacional e segurança do Estado. Para justificar a derrubada de um perfil, seria preciso haver publicações com essas violações reiteradamente, ação de bots ou identidades enganosas de terceiros.

Tudo o que não se enquadra na lista dependeria de decisão judicial para ser removido, conforme o texto. “As redes sociais vão ficar amarradas para agir em relação a esse tipo de conteúdo; vão precisar buscar o Judiciário para remover cada conteúdo com informação falsa. Isso é uma armadilha para as eleições”, afirma Carlos Affonso, especialista em direito digital e Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS).

O Facebook manifestou críticas à MP na mesma linha dos especialistas. “Essa medida provisória limita de forma significativa a capacidade de conter abusos nas nossas plataformas, algo fundamental para oferecer às pessoas um espaço seguro de expressão e conexão online. O Facebook concorda com a manifestação de diversos especialistas e juristas, que afirmam que a proposta viola direitos e garantias constitucionais”, declarou a empresa em nota ao JOTA.

A busca por mais transparência na moderação de conteúdo pelas empresas, que é desejável para a comunidade ter acesso, não seria resolvida com a MP, segundo os especialistas. “Ela joga mais confusão ao criar uma lista sobre o que pode ser resolvido, burocratizando a remoção de conteúdo. Além disso, o Marco Civil da Internet é uma legislação de princípios; ao entrar nesse tipo de detalhes, ela caduca logo”, pontua Affonso.

“Não está explicito qual seria a autoridade administrativa a aplicar sanções no caso de remoção de conteúdo que não está na lista, nem se esse órgão teria capacidade de comportar essa análise. Gera dúvidas e, provavelmente, idas à Justiça mais frequentes”, afirma Marcela Mattiuzzo, especialista em Direito Econômico e Digital, sócia do VMCA Advogados, em São Paulo.

Em nota à imprensa, o governo argumenta que “a remoção arbitrária e imotivada de contas, perfis e conteúdos por provedores de redes sociais, além de prejudicar o debate público de ideias e o exercício da cidadania, resulta em um quadro de violação em massa de direitos e garantias fundamentais como a liberdade de expressão e o exercício do contraditório e da ampla defesa”.

O líder da Oposição na Câmara, deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), que foi relator do Marco Civil da Internet, criticou a medida e afirmou, em comunicado à imprensa, que pedirá ao presidente do Senado para “devolver a MP e entrará com uma ação na Justiça para que seja declarada a inconstitucionalidade”.

“O objetivo [de Bolsonaro] não é proteger a liberdade de expressão, o que o MCI já faz. O que deseja é impedir que a desinformação e o discurso de ódio que ele e seus apoiadores espalham possam continuar a ser removidos pelas plataformas. Não conseguirá”, afirmou o deputado.

A possibilidade de uma MP ser devolvida à Presidência existe, embora essa seja uma conduta rara. No ano passado, o então presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP) devolveu ao Poder Executivo medida provisória que permitia ao ministro da Educação nomear reitores das universidades federais sem consulta na pandemia.

Desde 1988, aquela foi a quarta medida provisória devolvida pelo presidente do Congresso. “Cabe a mim, como presidente do Congresso Nacional, não deixar tramitar proposições que violem a Constituição Federal”, disse o senador na época. Uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADI), que pode ser aberta por um partido político e analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), seria mais provável.

Leia a íntegra da Medida Provisória 1.068.

Iniciativa contra remoção de posts já vinha sendo gestada no governo

A iniciativa de retirar poderes das redes sociais de remover conteúdos que violem seus termos de uso sem determinação judicial já era estudada há meses pelo presidente Bolsonaro.

A intenção de cercear as redes sociais apareceu publicamente pela primeira vez na abertura da Semana Nacional das Comunicações, evento do governo federal, no começo de maio, quando Bolsonaro afirmou trabalhar num decreto para regulamentar o Marco Civil da Internet com o objetivo de impedir que publicações de apoiadores possam ser deletadas por empresas de mídias sociais. Na ocasião, o JOTA apurou que, semanas antes, o tema fora levantado formalmente no governo pelo secretário especial de Cultura, Mario Frias.

No discurso, Bolsonaro reconheceu o papel que as redes sociais tiveram durante as eleições dele à presidência, em 2018, e rebateu críticas que apoiadores recebem por sua atuação nesses espaços. “O meu marqueteiro é um simples vereador: Carlos Bolsonaro, do Rio de Janeiro. É o Tercio Arnaud, aqui que trabalha comigo, é o Matheus. Eles são perseguidos o tempo todo, como se tivessem criado um gabinete do ódio. Não têm do que nos acusar. É o gabinete da liberdade. É o gabinete João 8:32”, disse, em referência ao versículo bíblico que menciona “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

O vereador carioca Carlos Bolsonaro e os assessores especiais da Presidência Tercio Arnaud e José Matheus Sales Gomes, mencionados por Bolsonaro compõem equipe que mobiliza as redes sociais em favor do governo conhecida como “gabinete do ódio”.

Carlos Bolsonaro e o próprio presidente já tiveram postagens marcadas como falsas. Foi o que aconteceu em 2020 com o vereador, em publicação no Instagram na qual checadores da entidade independente a International Fact-Checking Network marcaram como enganosa.

Durante a pandemia, o presidente teve fotos em que aparecia em aglomerações excluídas pelo Twitter, Facebook e Instagram por terem violado parâmetros de informação no combate ao novo coronavírus. Em abril, o Twitter colocou um aviso de publicação “enganosa” em crítica do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) ao lockdown.

Em agosto, Bolsonaro voltou a fazer críticas à atividade das redes, mas direcionadas também ao Tribunal Superior Eleitoral, ao dizer que a Corte “arrebentou a corda” ao determinar às empresas que administram redes sociais que suspendam os repasses de dinheiro a páginas investigadas por disseminar fake news.