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Projeto de lei quer obrigar plataformas online a checar conteúdos em até 12 horas

Especialistas disseram ao JOTA que pandemia não justifica mudanças no regime de responsabilização da internet

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Crédito: Pixabay

Tramitam no Congresso projetos de lei e propostas de emenda constitucionais que objetivam facilitar ações emergenciais necessárias em meio à pandemia de Covid-19. Entre elas, a chamada PEC da Guerra, que permite ao governo destinar dinheiro a medidas ligadas ao coronavírus sem as exigências de gastos previstas no Orçamento ordinário. Em outras áreas, foram apresentados projetos que fazem sentido no estágio mais agudo da pandemia, mas que podem se mostrar equivocados se tiverem caráter permanente.

Uma das iniciativas institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, que, caso aprovada, vai trazer normas específicas para plataformas com receita bruta anual superior a R$ 78 milhões, ou seja, grandes empresas da internet. Na Câmara, essa proposta foi apresentada por um grupo de deputados, incluindo Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES). O Projeto de Lei 1429/2020 não teve nenhuma deliberação até o momento e aguarda um despacho do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Um texto com exatamente o mesmo teor foi apresentado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE).

Por meio da ferramenta Tracking, o JOTA mapeou as principais proposições do Congresso, dos legislativos estaduais e das capitais sobre a pandemia do coronavírus. O sistema permite ao usuário consultar as medidas do Executivo e do Legislativo por data, esfera, estado, cidade, tipo de medida e nível de importância, entre outros.

Uma das justificativas do PL 1429/2020 é o “combate à disseminação de informações inverídicas e não baseadas em evidências científicas sólidas”. Outro trecho da justificativa cita a pandemia: “a velocidade de contaminação da atual pandemia do coronavírus só se equipara à rapidez com que uma corrosiva infodemia da desinformação tem tomado as redes sociais, que pode ser letal e nociva a saúde individual e coletiva”.

Para especialistas ouvidos pela reportagem do JOTA, rever o regime de responsabilização na internet é um tema delicado e que não pode ser discutido às pressas. “É preciso ter cautela nesse momento, já naturalmente difícil do ponto de vista social e econômico, e alterações legislativas precisam ser cirúrgicas, para ajustar relações jurídicas que efetivamente necessitam ser ajustadas”, diz Patrícia Helena Marta Martins, sócia na área de Cybersecurity & Data Privacy do escritório TozziniFreire.

“O projeto está interferindo em um regime de responsabilidades, que precisa ser pensado com muito cuidado”, destaca Mariana Valente, diretora do InternetLab. “Esses projetos surgem em resposta ao que está acontecendo agora, mas são respostas que vão perdurar no tempo”, alerta. “O debate que a gente tem que fazer é se os regimes adotados pelas grandes plataformas agora são aqueles que pretendemos ter depois da pandemia”.

Twitter, Facebook e YouTube adicionaram às suas políticas de uso restrições a conteúdos ligados à Covid-19 que possam causar desinformação. Posts do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) chegaram a ser removidos do Twitter e do Facebook por conter falas consideradas de risco à população, como a defesa do uso da hidroxicloroquina, medicamento em fase de testes para tratar pacientes com coronavírus. “É uma escolha que está sendo feita pelas plataformas a partir do entendimento de que as balanças nesse momento se alteraram porque estamos diante de uma pandemia mundial muito perigosa”, explica Valente.

O artigo 9º do projeto de lei diz que “os provedores de aplicação devem ser transparentes em relação a conteúdos potencialmente desinformativos e encaminhar tais conteúdos para verificadores e fatos independentes o mais rápido possível para análise”.

Na sequência, é estabelecido o prazo máximo de 12 horas para “adoção das providências indicadas nesta Lei”. Para Mariana Valente, essa exigência criaria a “obrigação de monitoramento de tudo o que se sobe em uma plataforma”.

Atualmente, o regime de responsabilidades é estabelecido pelo Marco Civil da Internet, em especial pelo que determina o artigo 19: “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir e censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviços e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

A constitucionalidade do artigo 19 está sendo questionada em duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte realizaria no fim de março uma audiência pública sobre o tema, mas teve de cancelar por causa do coronavírus.

Patrícia Helena Marta Martins, do TozziniFreire, não vê necessidade de mudar o que já prevê o Marco Civil da Internet, considerando que o texto “é fruto de amplo e plural debate que envolveu diversos setores da sociedade ao longo de sete anos”. Sobre o regime de responsabilização, a advogada lembra que “os provedores de aplicação de internet efetivamente removem milhares de conteúdos administrativamente, como contas falsas, spam, discurso de ódio, nudez”. Martins ressalta ainda que a Constituição – no artigo 5º, inciso XXV – prevê que somente o Poder Judiciário tem legitimidade para decidir se determinado conteúdo infringe ou não o ordenamento jurídico e se determinado direito ou garantia deve se sobrepor a outro.

Já Aline Zinni, especialista em Direito Digital do escritório Kasznar Leonardos, avalia que o Marco Civil da Internet precisa de leis complementares, mas que esse não é o momento para discuti-las. “Acho válido ter uma lei específica para tratar desse grande problema que temos hoje, que são as fake news, a desinformação em geral”, diz. “Enxergo o Marco Civil da Internet como uma norma mais principiológica, mais basilar”, explica. “Não entendo que a pandemia seja uma justificativa para tentarmos empurrar um projeto de lei como esse, que demanda tanta discussão. Fora que as grandes plataformas já tratam de desinformação”.

Risco de autocensura

Uma das seções da proposta da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet trata de regras para provedores de aplicação de mensagens instantâneas como o WhatsApp, por exemplo.

O artigo 18 prevê que os provedores devem “identificar aos usuários o produtor das mensagens escritas por terceiros e as mensagens que tiveram origem ou disseminação realizada por bots”. Bots, mais conhecidos como robôs, é a definição de programas que simulam ações humanas para disseminar conteúdos.

Para Mariana Valente, do InternetLab, trata-se de uma interferência grande em como as comunicações privadas funcionam hoje. “Se aumenta a possibilidade de eu ser identificado no encaminhamento de mensagens, é claro que eu vou me autocensurar”, afirma. Segundo ela, o projeto é bem intencionado e busca coibir ações de produtores de desinformação que querem causar danos. No entanto, destaca, a regra também valeria, por exemplo, para “alguém produzindo conteúdo para criticar o governo”.