Processo eleitoral

O jogo regulatório das fake news eleitorais

Tribunais, legisladores e autorregulação precisam definir suas posições em campo

Foto: Elza Fiúza/ABr

O PL 2630/2020, que visa a instituir uma “Lei das Fake News” e foi recentemente aprovado no Senado Federal, trouxe à luz a dificuldade de se definir a divisão de trabalho entre os diversos atores jurídicos e delimitar o escopo da tarefa de cada um.

Menos que uma ordem hierárquica unitária, em que legisladores mandam e cidadãos cumprem as normas ou são sancionados a partir do escrutínio judicial, o direito atual assemelha-se a um complexo jogo regulatório em que os reguladores estatais e não estatais precisam definir suas posições em campo para que as jogadas tenham efeito sem violar as próprias regras do jogo – no caso, essas regras incluem as garantias de isonomia no processo eleitoral, a prevenção e repressão do abuso de poder econômico, a tutela da liberdade de expressão, a proteção da privacidade no uso de dados pessoais e uma série de outras linhas que demarcam a arena jurídico-eleitoral.

É preciso ter em mente ao menos três definições: a legislação deve ter caráter conteudístico ou procedimental? Qual o papel das cortes? Como abordar a autorregulação das plataformas digitais? Projeto de pesquisa que desenvolvemos com apoio da Fapesp, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em parceria com o Observatório Eleitoral das Américas, busca mapear e entender como Legislativo, Judiciário e Sociedade Civil se posicionam em relação ao tema desde as eleições majoritárias de 2018 no Brasil.

Do ponto de vista sociológico-sistêmico que adotamos, é importante observar como o direito pode servir à institucionalização e estabilização das expectativas do procedimento eleitoral, ou pode ser um elemento destabilizador e perturbador do jogo.

Sobre a legislação eleitoral, a complexidade do tema sugere que, em vez de definir parâmetros substantivos para se determinar a verdade ou falsidade das informações, as normas procurem estruturar um ecossistema de procedimentos e atores encarregados de certificarem a origem e a responsabilidade na cadeia de produção das informações e processamento de sua redundância e confirmação (essa autorreferência que faz a mentira repetida parecer verdade).

Existem vários indícios da limitação estrutural do direito para abordar o tema. De um lado, diante da falta de capacidade imaginativa dos programas jurídicos, que insistem em adotar medidas de criminalização das fake news, para além da sistemática do direito de resposta ao ofendido (Lei nº 9.504/1997, art. 57)[1]; de outro, pela dificuldade de produção de provas e identificação dos agentes.

Isso decorre sobremaneira do anonimato de “portas lógicas” das redes computacionais. Qualquer um pode ser protagonista e produzir informações falsas por meio de alguns cliques na rede, seja via compartilhamento do mesmo endereço de protocolo, seja pela programação de robôs. O rastreamento é uma tarefa difícil, que exige um maior diálogo entre direito e ciência da informação.

Sobre juízes e tribunais, fato é que prevalece um verdadeiro déficit cognitivo desses órgãos e organizações para apurar os impactos alegados de supostas fake news, o que expõe uma questão identitária de fundo do próprio sistema judicial: juízes e tribunais não possuem para si a função de controlar e pautar o debate público.

O ministro Edson Fachin, em voto no TSE em 2018[2], indicou com clareza essa auto-observação. Reconheceu que a tarefa do Tribunal Superior Eleitoral “não deve ser a de indicar qual é o conteúdo verdadeiro, nem tutelar, de forma paternalista, a livre escolha do cidadão”.

Afirmou que o ideal democrático implica presumir a escolha “responsável, informada e crítica” por parte dos cidadãos e que “Justiça Eleitoral não deve, portanto, atrair para si a função de fact-checking ou ainda realizar um controle excessivo”.

Entretanto, a missão institucional da Justiça Eleitoral, além de infirmar alegações e punir comportamentos específicos, parece ser a de posicionar-se como guardiã jurídica de uma esfera pública democrática. E fazer isso minorando o risco de que os tribunais se encaminhem para ser organizações centrais da política no contexto das fake news e eleições. O balizamento das regras não pode se confundir com a disputa de poder entre governo e oposição, ou entre vencedores e vencidos.

É preciso visualizar um campo regulatório em que os tribunais dão a última palavra e estão no centro do direito, mas há um intenso papel da periferia jurídica: os reguladores estatais e não estatais.

Quando se aborda a proteção da privacidade dos dados e a disseminação de notícias falsas (seja no contexto eleitoral, seja no atual contexto sanitário da pandemia da Covid-19), cabe ter em vista que as normas ainda não estão estabilizadas e generalizadas.

Afinal, as expectativas que cada jogador forma ao observar os demais (candidatos e reguladores, cidadãos e juízes, empresas de mídia e seus clientes) são ainda pouco programadas pelas instâncias políticas e burocráticas e baseiam-se em um tripé de características que dificultam sua cristalização:

  • Tratam de temas altamente baseados em expectativas cognitivas: o direito depende em grande medida da expertise e dos especialistas nos novos meios de disseminação da informação;
  • Possuem múltiplas interferências sistêmicas, especialmente na política, na mídia e na economia; e cada jogador se mexe para preservar seus interesses ou melhorar sua posição (como mostra o adiamento da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados);
  • Têm caráter transfronteiriço, já que são tecnologias mundiais sob controle de companhias privadas monopolistas ou oligopolistas.

Cabe, portanto, considerar o papel autorregulatório dessas plataformas digitais e redes sociais (a exemplo do recém-criado Conselho de Supervisão do Facebook). Diante delas, o direito e as cortes estatais não devem permanecer simplesmente passivos, terceirizando sua competência jurisdicional.

Podem, é certo, estabeceler formas inteligentes de cooperação e “metarregulação”, isto é, de regular a autorregulação e desenvolver em conjunto conhecimento especializado e capacidade de prevenção e repressão dos abusos no meio digital.

É interessante perceber mecanismos alternativos de regulação e de autorregulação, por meio de compartilhamento de boas práticas e do uso responsivo das redes sociais pelos eleitores-usuários, de formas de verificação das fontes (fact-checking) e até mesmo com a implementação de estruturas como os comitês que buscam preservar a moderação de conteúdos nas plataformas (content oversight board), entre outros modelos que representam uma normatividade importante ao tema das fake news e eleições e que também marcam um outro sentido para o direito, mais flexível e aberto à sociedade civil e ao diálogo interdisciplinar.

O objetivo é evitar restrições excessivas às novas modalidades de exercício da liberdade de manifestação e não comprometer o direito à privacidade. A dúvida é saber o quanto este caráter experimental se transformará em uma significativa mudança de comportamento dos eleitores-usuários nas redes.

O tema “fake news e eleições” foi exacerbado no contexto da pandemia da Covid-19 e neste ano de eleições municipais postergadas, talvez pela certeza das autoridades de que as próximas eleições no contexto da pandemia serão decididas novamente pelas redes sociais e pelo simples fato que esta corrida já começou faz muito tempo.

Resta ainda saber o que a excepcionalidade do momento vai acarretar em termos de proteção e zelo das liberdades civis e dos direitos políticos; afinal, já sabemos que qualquer resposta jurídica é geralmente vagarosa.

 


[1] Segundo a Lei Eleitoral (Lei nº 9.504/1997), é assegurado o direito de resposta ao ofendido por notícia falsa (art. 57). É possível também exigir legalmente que o candidato, o partido ou a coligação verifique a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela fidedignidade da informação da propaganda eleitoral, com base na Resolução do TSE.

[2] TSE, Representação no. 0601775-65.2018.6.00.0000, Rel. Min. Edson Fachin, j. 21.10.2018.